A declaração da pandemia do coronavírus pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou completamente o ritmo do mundo. Acordamos e nos deparamos com um cenário caótico que demanda a adoção de medidas enérgicas para tentar estacionar a disseminação do vírus e impedir o agravamento da crise.
Além das medidas de higiene, a orientação das autoridades sanitárias é clara e expressa: evitar o contato humano, principalmente em aglomerações, determinando que as pessoas saiam de suas casas somente em casos de extrema necessidade. Nessa esteira, mais e mais países vem anunciando o fechamento de suas fronteiras e os serviços não essenciais vem sendo gradativamente paralisados.
Em decorrência disso, milhares de pessoas que possuíam viagens marcadas se veem na necessidade de cancelar seus voos ou esses são cancelados pela própria empresa prestadora do serviço. No entanto, as companhias aéreas, em todos os casos, têm mostrado resistência à devolução integral dos valores pagos.
Para evitar a restituição dos valores, as empresas áreas estão forçando os consumidores a remarcar os voos, isentando de taxas, mas cobrando eventual diferença tarifária existente entre o preço da passagem previamente comprada e o preço da passagem remarcada. Ou ainda, tem induzido o consumidor a ficar com um crédito em aberto junto à companhia para uso futuro, porém limitando o prazo para sua utilização.
Diante disso, é importante esclarecer ao consumidor que tais imposições, bem como a negativa de devolução integral dos valores pagos por parte das companhias aéreas são práticas abusivas.
Não é lícito e nem plausível que as companhias imponham a remarcação das passagens como única alternativa ao consumidor, sobretudo dentro de um prazo previamente determinado, quando se vive uma crise nesta proporção e para a qual, infelizmente, não há previsão de normalização. Da mesma forma, não é justo que o consumidor seja obrigado a manter um crédito em aberto com a companhia, vez que o interesse de viajar para quaisquer destinos nos próximos meses pode não mais existir.
O consumidor não pode ser obrigado a remarcar suas passagens ou manter crédito em aberto para uso futuro, correndo o risco inclusive de, na referida data, permanecer impedido de realizar viagem ou de utilizar o crédito em razão da incerteza que se vive sobre os desdobramentos e a duração desta crise mundial.
A situação atual impõe uma análise casuística dos contratos de transporte firmados, afinal estamos diante de um caso de força maior. Por conta do risco à sua própria integridade física, deve ser assegurado ao consumidor, parte mais fraca nesta relação contratual, o direito obter os valores previamente pagos restituídos em sua integralidade, quando do cancelamento de suas passagens, ainda que tal reembolso se dê num prazo mais alargado, como tem sinalizado o Ministério de Infraestrutura a fim de evitar o esvaziamento de caixa das empresas aéreas (MP 925 de 2020)1.
É dever das empresas agir com razoabilidade, sempre considerando que o Código de Defesa do Consumidor determina que a proteção da saúde e segurança é um direito básico (art. 6º, I) e que o consumidor é a parte vulnerável da relação (art. 4º, I).
Ademais, o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor é enfático ao afirmar que é direito básico do consumidor a modificação ou revisão de cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, in verbis:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
O Código Consumerista ainda institui como prática abusiva vedada ao fornecedor exigir vantagem manifestamente excessiva (art. 39, V).
Cumpre frisar que já há recomendação do Ministério Público Federal para que a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC oriente as companhias e assegure aos consumidores a possibilidade de devolução integral dos valores pagos por passagens aéreas nacionais e internacionais, em razão do novo coronavírus.
O judiciário, atento à questão, já vem deferindo liminarmente a suspensão integral dos contratos de transporte firmados nesses casos sem a cobrança de quaisquer encargos ao consumidor, como bem decidido pelo 9º Juizado Especial Cível de Vitória nos autos do processo 0012835-52.2020.808.0347.
Ainda, caso o consumidor opte pela remarcação, as companhias não podem cobrar valores extras e nem mesmo impor um prazo para tanto, sem que antes ocorra a estabilização da situação e uma mínima normalização das atividades do país de destino, como já decidido por juízes do Rio de Janeiro/RJ e Porto Alegre/RS (0053470-40.2020.8.19.0001 e 5015072-79.2020.8.21.0001).
Portanto, havendo dúvidas sobre seus direitos, deve o consumidor procurar os órgãos competentes ou consultar um advogado de sua confiança.
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*Letícia Machado Braga é advogada do escritório Pedrosa Soares Esteves Advogados.