“A sociedade aprendeu a levar os conflitos para os tribunais. Com as leis aprendeu a evitar a violência, a guerra e a cobrança de seus interesses, necessidades e direitos, com as próprias mãos. Mas esqueceu como resolver conflitos em meio a essas mesmas necessidades e interesses delegando poderes que só ela por si pode exercer. Esqueceu-se como conquistar e administrar a paz.”1
A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) trouxe, no âmbito jurídico, uma avalanche de opiniões, artigos, textos, webinars e outras formas de encontros virtuais, todos propostos com o intuito de analisar as questões legais decorrentes das diversas formas de relações públicas ou privadas atingidas pelas medidas governamentais de redução ou cessação de várias atividades econômicas, que impactaram de forma global a economia e provocaram um profundo – e possivelmente não longo – período de recessão. Seja na esfera tributária, trabalhista, criminal, no direito de família, no direito administrativo, enfim, onde se possa imaginar há opiniões a respeito.
Existe, todavia, uma faceta do direito em que as preocupações parecem estar, de um modo geral, divergindo de uma verdadeira proposta de apaziguamento de conflitos, em especial se observadas as características multissetoriais da crise. Ao contrário, em muitas relações puramente privadas envolvendo direitos patrimoniais e disponíveis, o que se vê é o apontamento de regras legais de caráter protetivo, individualista, manejando-se a interpretação da norma para que esta seja favorável a uma parte em detrimento da outra, e não à preservação dos interesses econômicos de ambos.
Em 3 de abril foi aprovado pelo Senado Federal o projeto de lei 1.179/20, que, dentre outras regras, impede o despejo liminar de locatários residenciais em algumas hipóteses, inclusive na falta de pagamento do aluguel em contratos desprovidos de garantia (artigo 59, IX, da Lei do Inquilinato). O projeto de lei original, do senador Antonio Anastasia, previa a possibilidade de moratória no pagamento desses contratos, parte que findou subtraída na votação final pelos senadores, a partir do substitutivo da relatora, senadora Simone Tebet.
O artigo 17 desse projeto de lei pronuncia que “não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário”. Ao referenciar tais hipóteses como situações agora expressamente excluídas da teoria da imprevisão (e que nos poderiam ter poupado tantas discussões em décadas de outrora), parece que a proposta legislativa tem olhos só para o passado, e não para o futuro. É certo que o Projeto de Lei trata de outras questões importantes do direito privado, mas a movimentação legislativa ainda é pequena, e mesmo que venha a se colocar em pé, inevitavelmente tardia.
Mais abrangente e sensato nos parece o projeto de lei 1.379/20, de autoria do deputado Federal Hugo Leal, subsidiado por comissão de juristas, que em seu artigo 4º suspende por 60 dias a execução de garantias reais ou fidejussórias (inclusive alienação fiduciária), o despejo por falta de pagamento (em qualquer modalidade), a resolução unilateral de contratos bilaterais, os pedidos de falência e a cobrança de multas contratuais, mas que encontra seu verdadeiro valor quando dispõe, o parágrafo único do mesmo artigo, que “durante o período de suspensão previsto no caput deste artigo, o devedor e seus credores deverão buscar, de forma extrajudicial e direta, a renegociação de suas obrigações, levando em consideração os impactos econômicos e financeiros causados pela pandemia de Covid-19”. Essa proposta legislativa vai mais além, instituindo um inédito procedimento de jurisdição voluntária chamado de “negociação preventiva”, ao qual terá direito “o devedor que comprovar redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) de seu faturamento comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior”.
Embora louvável nos trechos citados, o projeto de lei 1.379/20 propõe mudanças sobre a recuperação judicial e extrajudicial de certa forma preocupantes, alterando-se regras no meio do jogo sem a necessária e equilibrada contrapartida. São institutos que já contemplam um ambiente de negociação aberta, talvez sendo desnecessário, ou mesmo prematuro, pensar-se em alterações pontuais sem maior reflexão sobre seus efeitos.
Ainda não se sabe se o PL 1.179/20 receberá alterações pela Câmara dos Deputados, ou mesmo aprovação, nem qual será o futuro do PL 1.379/20, então, por enquanto, nos sobra lidar com a legislação vigente – o Código Civil – que para alguns já pareceria suficientemente apta a resolver o “problema” jurídico da pandemia. Invoca-se a força maior, a onerosidade excessiva, a teoria da imprevisão, a rebus sic stantibus, a moratória – legal ou não. Talvez não seja a hora de nada disso; os elementos objetivos para uma boa negociação estão aí postos, notórios e claros, e não há fake news que contaminem o consenso geral e vigente de que os prejuízos serão universais. Ninguém pode duvidar da existência deles, e este é o grande instrumento para uma boa negociação.
Assim, impor e judicializar as questões do novo coronavírus, como primeira solução, parece um erro, pois “quando o direito é instrumento de determinação de perda ou ganho em um conflito concorre sempre para a transformação dos conflitos em outros conflitos”.2
Ao que tudo indica, a duração da fase crítica da pandemia no Brasil tomará mais algumas semanas. Logicamente, as liminares judiciais trazem a satisfação (ou insatisfação) imediata e temporária, mas as decisões judiciais em caráter definitivo demorarão anos – o Judiciário é notoriamente lento, imprevisível e impessoal quanto às subjetividades presentes nas mais diversas relações contratuais. Isto sem falar da imposição de um custo muito maior, mirando para o tudo ou nada, o perde ou ganha, a incerteza da solução judicial, onde muitas vezes não se faz verdadeira justiça.
Tampouco as experiências passadas serviriam para nos balizar. Outras crises tivemos, mas o Judiciário é inconstante. Em 2003, o Superior Tribunal de Justiça findou por aplicar a equidade como forma de solução dos milhares de processos judiciais envolvendo a crise cambial de 1999 e os contratos de leasing atrelados ao dólar norte-americano. Em recurso especial que tratou da matéria (RESp 472.594/SP), o ministro Aldir Passarinho invocou a fundamentação do ministro Ari Pargendler no REsp 268.661/RJ, oportunidade na qual este afirmara em seu voto vencido que “se a onerosidade superveniente não pode ser afastada sem grave lesão à outra parte, impõe-se uma solução de equidade”. Estava a falar que os efeitos da variação cambial causaram prejuízo tanto para as instituições financeiras (que captaram recursos no exterior) quanto para os arrendatários que viram suas prestações multiplicarem da noite para o dia.
Na fundamentação do ministro, não seria justo que a instituição financeira “tenha de arcar com o ônus integral, já que igualmente vítima da drástica desvalorização do Real. Que há onerosidade excessiva, sem dúvida ela existe, porém não propriamente da cláusula em si, que é legal, mas das circunstâncias que advieram a partir de certo momento, quando em curso a relação obrigacional”. Ora, não estamos a viver neste momento circunstâncias que incidem sobre e afetam o curso da relação obrigacional sobre todas as partes?
Portanto, convenhamos, se é para aplicar a equidade, façamos isso nós mesmos, economizando dinheiro e tempo nos tribunais. Ou nos faltaria esse senso aristotélico de equilíbrio?
Uma simples moratória certamente gerará prejuízos tanto para credores quanto para devedores, não nos deixemos enganar. O êxito da negociação é essencial para conservar relações pessoais futuras e perenes. Podemos evitar a heterocomposição e a aposta em decisões que signifiquem ganhar ou perder totalmente. Embora haja uma imensidão de opiniões de juristas a respeito da aplicação do artigo 393 do Código Civil, da teoria da imprevisão, da onerosidade excessiva e da rebus sic stantibus, a verdade é que não há direitos legais claros para qualquer dos lados – pelo menos não neste momento e para a situação em concreto.
Ao judicializar a questão, perde-se o controle sobre o processo de resolução do conflito, simplifica-se o tecido complexo que envolve múltiplas partes e questões, muitas delas desimportantes para o juiz quando lhe é outorgado o poder de decidir.
Talvez o presente momento seja o catalisador para uma mudança cultural, muito mais do que as boas intenções inseridas na reforma da lei processual em 2015 a respeito da conciliação e da mediação, face ao qual o Judiciário tem feito, em muitos casos, letra morta. Mas a culpa não é do Judiciário, haja vista que se trata de meios alternativos de resolução de conflitos – autocomposição – e que são destinados justamente a não outorgar essa resolução ao Judiciário, passando seu controle absoluto às partes, que optam ou não por usá-lo. Esse é um poder muito valioso, do qual poucos se dão conta da possibilidade de seu exercício.
Por fim, ao lançar olhares sobre o Código Civil devemos lembrar que são deveres anexos ao da boa-fé objetiva a cooperação e a solidariedade, principalmente na solução de problemas mútuos. É passada, portanto, a hora de aplicar técnicas corretas de negociação, em especial no ambiente da mediação, ainda a engatinhar em nosso País. Talvez precisássemos mesmo de um choque, de um susto, grave sim, mas apto a proporcionar essa mudança cultural na resolução de conflitos – o que absolutamente ninguém desejava é que fosse ao custo de vidas humanas.
As partes contratuais têm que compreender, agora, que haverá perdas econômicas, elas são inevitáveis, e não adianta escolher somente um lado para assumi-las. E essa negociação aqui tratada pode chegar a melhor termo em ambiente com o auxílio de profissionais especializados e treinados – a mediação – que possa oferecer às partes, a partir do uso frutífero de seu conhecimento técnico, uma facilitação do consenso, tão em falta nos dias atuais.
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Juris, 1999, p. 62.
2 Ob. Cit.
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