A pandemia de Covid-19 causada pelo coronavírus (Sars-Cov-2) tem provocado considerações por parte da opinião pública que colocam em questão um potencial conflito entre economia, trabalho, proteção de dados, saúde, dignidade humana e toda forma de combinação que a argumentação demonstre ser vantajosa para fundamentar as ações propostas.
É possível, nesse sentido, ouvir manifestações de que a forma proposta de proteção à saúde pública por meio de distanciamento social implicaria uma crise econômica que seria um problema ainda maior do que a questão sanitária; ou que proteger empregos é tão relevante quanto proteger vidas; ou, ainda, que é melhor mitigar a proteção de dados pessoais em prol de uma vigilância sanitária mais eficiente.
A proposta deste texto é analisar a vedação ao retrocesso social em situação de pandemia, em que é testada a capacidade de resolução de problemas com medidas que estejam dentro da constitucionalidade, pois fora da Constituição não há resposta aceitável para o enfrentamento de qualquer problema.
Primeiro, importa compreender o que se deve entender pelo conteúdo jurídico da vedação ao retrocesso social. Para Canotilho, a vedação de retrocesso estabelece que é inconstitucional qualquer medida tomada para revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios.1 Ou seja, uma vez que o Estado tenha cumprido (ainda que parcialmente) as tarefas constitucionalmente estabelecidas para realizar um direito social, passa-se não apenas a ter uma obrigação de fazer, por parte do Estado, mas também uma negativa, que passa a ser a obrigação de não fazer qualquer ato que contrarie, diminua ou cesse a realização feita anteriormente2.
Essa expressão é questionável, pois pode dar ao preceito a ideia de segurança jurídica, ou de proteção da confiança (Vertrauensschutz)3, isso porque a proibição de retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas, que representam reversibilidade fática4 do patamar em que se tornou possível uma efetividade do direito fundamental, mas não permite que retroceda em relação a direitos adquiridos. Assim, uma vez que o núcleo essencial dos direitos sociais seja efetivado por medidas legislativas, deve considerar-se constitucionalmente garantido e, apenas se houver algum esquema alternativo ou compensatório, é que poderá ser alterado.5
No caso em questão, temos uma substancial alteração socioeconômica que tensiona todos os vínculos jurídicos estabelecidos anteriormente. Nas relações jurídicas privadas, por exemplo, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor apresentam soluções para revisões ou renegociações que estabeleçam a possibilidade ou interrupção da referida relação jurídica, além das soluções que serão estabelecidas pelo PLS 1.179/20, quando for aprovado, que estabelece o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).6
Nas relações sociais trabalhistas, por sua vez, diante do desemprego em massa, algumas das alternativas propostas pelo Poder Executivo em alternativa à demissão se encontram nas medidas provisórias 927 e 928, de 22 e 23 de março de 2020, respectivamente. Com todas as críticas que possam ser feitas a elas, inclusive quanto à constitucionalidade, trata-se de uma proposta feita alternativamente para manter o núcleo dos direitos sociais trabalhistas. Nesse mesmo sentido, encontram-se as medidas do Banco Central para socorrer o mercado econômico, outra face do direito social igualmente relevante, que garante a estabilidade de contratos, empregos, capacidade econômica para consumir e sobreviver etc. Se não são suficientes, então o Poder Executivo está agindo inconstitucionalmente ao não observar o art. 219 da CF, que estabelece claramente que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população (...)”.
Por fim, temos a questão do direito fundamental à saúde, previsto pelos arts. 6º e 196 da CF. Ao conceito de saúde, podem ser atribuídos diversos conteúdos, mas seguiremos com aquele estabelecido em 1947, quando a Organização Mundial de Saúde elaborou como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”7. E seguimos tal conceito porque, ainda que seja apontado por muitos como utópico e inalcançável8 e outros ainda apontem que seja, no momento, “irreal, ultrapassada e unilateral”9, está mais que claro que o Brasil tem o compromisso de cumprir com as suas determinações ou recomendações da Organização Mundial da Saúde10, notadamente aquelas que fazem parte de uma convenção internacional, como é o caso do conceito de saúde que consta da própria Convenção que constitui a OMS.
No Brasil, temos um Sistema de Saúde complexo, composto por uma esfera pública (Sistema Único de Saúde, regulamentado pela lei 8.080/90) e privado, que asseguram a efetividade do direito fundamental à saúde. Vislumbrando os impactos que o Sars-cov-2 causaria à saúde coletiva e ao estado atual de efetividade o direito fundamental à saúde, foi editada a lei 13.979/20, regulamentada pela portaria do Ministério da Saúde 356/20, que entre outras disposições estabelece as medidas que poderão ser tomadas para contenção da disseminação do Covid-19, incluindo a quarentena (art. 3º, II, da lei). Assim que o Brasil começou a apresentar a transmissão comunitária, imediatamente governadores e prefeitos estabeleceram por decreto a medida de “distanciamento social” (relativo à “quarentena” previstas pela lei 13.979 e portaria 356), pois está de acordo com o que consta da orientação da Organização Mundial da Saúde11.
Temos, portanto, um novo instrumento de efetividade do direito fundamental à saúde: o distanciamento social. Qualquer tentativa de modificar tal medida antecipadamente ao critério científico de saúde pública estabelecido pela OMS será inconstitucional porque representará um retrocesso social.
É falaciosa a proposta que confronta os direitos sociais de saúde, trabalho e segurança. Não há um conflito entre tais direitos sociais previstos no art. 6º da CF. O que há é a falta de vontade política de realizar a proteção aos desamparados, que também é um direito social previsto no art. 6º da CF, cuja observação desfaria o possível conflito, socorrendo todos os vulneráveis decorrentes da pandemia de Covid-19, prevenindo inseguranças jurídicas e sociais, inclusive o risco de o país sair de uma “normalidade democrática”12. Além disso, há evidências de que o isolamento social “horizontal”13 é mais benéfico à economia e sua recuperação do que um isolamento parcial14.
Do mesmo modo, a proteção de dados pessoais é um direito fundamental no Brasil, decorrendo dever de proteção os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, nos termos do art. 1º da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18). Qualquer tentativa de relativizar em prol de uma “supremacia de interesse público” decorrente da pandemia será inconstitucional e não deve ser aceita no Brasil.
Por fim, é preciso compreender que uma pandemia testa a solidez das instituições e sua capacidade de reagir dentro da moldura constitucional. Os desafios apresentados pelo momento, todavia, não podem servir de escusa para uma reação inconstitucional e que fira os preceitos democráticos de nossa República. É preciso também compreender que é um teste de caráter, em que as prioridades axiológicas de cada indivíduo se afloram, testando marcos éticos civilizatórios – e, por isso mesmo, é preciso se amarrar aos Direitos Fundamentais para não cair no canto de sereias.
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1 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336.
2 Portugal. Tribunal Constitucional. Acórdão 39/84. Diário da República 104/84, Série I de 5 de maio de 1984. Disponível em: Clique aqui.
3 NERY Jr., Nelson; ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 481.
4 QUEIRÓZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 71.
5 NERY Jr., Nelson; ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 482.
6 SENADO FEDERAL. Projeto de lei 1.179/20. Autoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG). Disponível em: Clique aqui.
7 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição da Organização Mundial da Saúde. Documentos básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol em: Clique aqui. Acesso em: 26 out. 2019.
8 BATISTELLA, Carlos. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. Escola Politécnica de Saúde e Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 29 out. 2019.
9 SEGRE, M.; FERRAZ, F. C. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 31, n. 5, p. 538-542, out./1997. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 29 out. 2019.
10 Ver a bela aula de Valério Mazzuoli a esse respeito no artigo: As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil? GEN Jurídico. São Paulo: Grupo GEN, 2020. Disponível em: Clique aqui.
11 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Responding to Community spread of Covid-19. Interim Guidance of March, 7th, 2020. Disponível em: Clique aqui.
12 Veja mais em: Clique aqui.
13 Coloquei em aspas porque, embora tenha pesquisado em algumas bases científicas, não encontrei referências ao termo “isolamento vertical” que tem sido empregado nos discursos que apoiam o fim do distanciamento social estabelecido pela OMS e adotado no Brasil por governadores e prefeitos país afora.
14 CORREIA, Sergio; LUCK, Stephan; VERNER, Emil. Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu. (March 26, 2020). Disponível em SSRN: Clique aqui.
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*Henderson Fürst é advogado, doutor em Direito pela PUC-SP. Doutor e Mestre em Bioética pelo CUSC-SP. Professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas. Presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito do CFOAB.