Em pleno século XXI, vimos as nações pararem por conta de um vírus. Escolas suspenderam suas atividades, locais públicos, tais como museus, bibliotecas e teatros foram fechados e empresas estão se adaptando para evitar a circulação de pessoas em suas dependências.
Episódios como o do enfrentamento da pandemia do coronavírus certamente nos proporcionam momentos de reflexão.
Há aqueles que se voltam às reflexões internas, relacionadas ao emocional, ou até mesmo à religião. Outros, preferem fazer ponderações políticas, analisando as medidas tomadas pelo Governo neste momento tão difícil. E há os que, por atuarem em áreas fundamentais para o funcionamento da sociedade, não podem se afastar do trabalho.
Nessa última categoria de pessoas, entendo que se enquadram os advogados. Em períodos de crise, esses profissionais são altamente demandados: empregados e empregadores procuram orientações trabalhistas; empresas precisam de amparo nas áreas cível e tributária para a continuidade de suas atividades; e pessoas físicas também consultam sobre seus direitos.
Como advogada, em meio a esse cenário de trabalho intenso para responder aos questionamentos dos clientes, a reflexão que me tocou remeteu-me aos bancos acadêmicos.
Lembrei-me, como se fosse ontem (embora exerça a minha profissão há exatos 14 anos), das minhas aulas de Direito Civil, com o estimado prof. Carlos Alberto Ferriani, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Por ser absolutamente extensa e complexa, a matéria por ele lecionada, para ser absorvida adequadamente pelos alunos, depende de muitos exemplos práticos. Mas, por vezes, ele recorria a exemplos hipotéticos, simplesmente porque, para tratar do assunto do dia, não havia nada concreto para ser apresentado como modelo.
Esse artifício foi utilizado na aula sobre “força maior”.
O instituto da força maior é especialmente estudado no campo do “Inadimplemento das Obrigações”. Diz-se que a “força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Essa é a exata dicção do parágrafo único, do art. 393, do Código Civil.
Nos bancos acadêmicos, assim como o prof. Ferriani, todos os docentes, para explicar o fenômeno da “força maior”, lançam mão de hipóteses relacionadas a fenômenos da natureza, tais como terremotos ou furacões. Ora, tais eventos, embora possam até ser previstos, não podem ser impedidos.
No entanto, por termos o privilégio de morar em um país em que essas catástrofes naturais são improváveis, ficamos sem ter como analisar exemplos concretos. E assim, iniciamos a nossa atuação profissional sem saber, ao certo, qual a aplicabilidade prática de um instituto como o da “força maior”.
Passados 14 anos de exercício da advocacia, percebi que tempos de exceção, como este que vivemos por conta do coronavírus, permitem que os profissionais do Direito passem a revisitar institutos jurídicos, antes vistos somente nos bancos acadêmicos.
A pandemia do coronavírus é, sem dúvida, exemplo prático e concreto de “força maior”. Trata-se de um evento da natureza, que não pode ser evitado ou impedido. E as consequências jurídicas de sua ocorrência são inúmeras e refletem diretamente na vida de nossos clientes.
Abre-se, assim, a oportunidade para que o Direito seja estudado, para apresentarmos as soluções jurídicas mais adequadas para cada caso específico.
Na esfera das obrigações, o fenômeno da força maior é considerado como uma excludente de responsabilidade. Isto porque, nos termos do art. 393, caput, do Código Civil, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes da força maior, se expressamente não houver por ela se responsabilizado.
A aplicabilidade dessa excludente de responsabilidade já foi objeto de inúmeras consultas formuladas pelos clientes do meu escritório.
Tive a oportunidade de analisar, por exemplo, se diante desse cenário imposto pelo coronavírus é possível que haja a redução ou a suspensão de contratos de prestação de serviço.
No caso específico, a empresa que solicitou a redução do objeto contratual e, consequentemente, do valor a ser pago mensalmente, teve que diminuir a sua operação e, com isso, não precisaria dos serviços de manutenção em suas máquinas, da forma como antes contratada.
Analisado o contrato entre as partes, foi possível verificar a ausência de qualquer cláusula que pudesse impor, à empresa que solicitou a redução do valor mensal, o ônus de arcar com a integralidade do contrato, mesmo diante da ocorrência de evidente força maior. A execução do contrato, nesse caso, tornar-se-ia, para essa empresa, excessivamente onerosa, gerando um manifesto desiquilíbrio contratual.
Pudemos, então, resolver o impasse invocando o art. 478, do Código Civil, que dispõe que “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Ora se a lei permite que em situações como essa o contrato seja extinto, nada impede que o contrato seja reduzido.
Também, precisei analisar a situação de empresa brasileira que depende de insumos vindos da China. Como manter o seu regular funcionamento se a China, forçosamente, parou a produção dos componentes necessários para a fabricação de seus produtos?
A preocupação girava, especialmente, em torno do cumprimento dos prazos contratuais. Sem os insumos necessários para a fabricação dos produtos, como a empresa cumpriria os prazos dos contratos firmados antes da instalação da pandemia? Se, pela falta dos insumos a empresa precisasse fechar as portas e amargar com o descumprimento de diversos contratos firmados antes da instalação da pandemia, como ficaria essa questão? A empresa seria obrigada a responder pelos danos decorrentes da inexecução contratual?
Analisado o contrato específico, firmado com outra empresa brasileira que havia solicitado os produtos, foi possível verificar, assim como no exemplo anterior, a ausência de qualquer cláusula que expressamente responsabilizasse a empresa fornecedora pelos danos decorrentes da inexecução contratual em casos de força maior.
Assim, desde que devidamente comprovado que a impossibilidade de distribuição de produtos ou de execução dos serviços pela empresa brasileira se deu pela suspensão das atividades de fornecedores chineses, poderá alegar a força maior como excludente de responsabilidade dos contratos que não puder cumprir.
Foi preciso, ainda, avaliar se o impedimento para o regular cumprimento contratual seria temporário ou definitivo. Isto porque, a depender do dessa variante, o cumprimento da obrigação deveria ser apenas suspenso ou, de fato, resolvido. No caso, o descumprimento do prazo inicialmente acordado faria com que a compradora não tivesse mais necessidade daqueles produtos, o que justificou a resolução e não a suspensão do contrato, com o restabelecimento do status quo ante.
Fui questionada, também, sobre a necessidade de suspensão de atividades recreativas em escolas particulares. No caso apresentado, a escola oferecia, como extra, um período de recreação para as crianças cujos pais não podiam se ausentar do trabalho para buscar o filho no horário de saída. Como ficaria esse tempo extra, sendo que não é possível compensá-lo em momento futuro e nem enviar conteúdo por e-mail?
Já um cliente que tinha viagem marcada para Gramado, em maio, perguntou como é que ficava a questão da passagem aérea, tendo em vista que o hotel em que iria se hospedar já havia enviado e-mail esclarecendo que a reserva estava sendo cancelada pelo fato de o prefeito da cidade ter publicado um Decreto determinando a suspensão de serviços de hotelaria por 60 dias.
Essas duas últimas consultas também são muito interessantes. Mas, tendo em vista as peculiaridades dos casos que envolvem direito do consumidor, serão abordadas em outra oportunidade.
Enfim, inúmeras dúvidas surgirão e o Direito precisará ser analisado para cada caso concreto.
E assim, ao ser forçada, pelo coronavírus, a revisitar institutos jurídicos que antes só havia estudado nos bancos da faculdade, vou escrevendo os meus próprios exemplos práticos.
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