A lei do distrato e a proteção do comprador de imóveis na planta
A lei do distrato trouxe regras claras para rescisão de contratos imobiliários, mas sua aplicação ainda gera debates. O artigo analisa impactos, jurisprudência e possíveis ajustes na legislação.
sábado, 29 de março de 2025
Atualizado em 28 de março de 2025 14:14
1. Introdução
A aquisição de imóveis na planta sempre foi um dos principais modelos de acesso à casa própria no Brasil, especialmente para aqueles que desejam um preço mais acessível e condições de pagamento facilitadas. No entanto, a ausência de uma regulamentação específica sobre o distrato imobiliário gerava grande insegurança jurídica tanto para compradores quanto para incorporadoras.
Antes da lei do distrato (lei 13.786/18), não havia regras claras para a rescisão contratual de imóveis na planta. A jurisprudência oscilava, e os consumidores, ao desistirem da compra, enfrentavam situações diversas: em alguns casos, recebiam parte significativa dos valores pagos; em outros, enfrentavam retenções abusivas, sem uma previsão legal expressa sobre os percentuais máximos a serem retidos pelas construtoras.
Diante desse cenário, a lei do distrato foi sancionada com o objetivo de padronizar regras sobre a rescisão de contratos de compra e venda de imóveis na planta, estabelecendo limites de retenção, prazos para devolução de valores e penalidades para ambas as partes. Entretanto, mesmo com a nova legislação, os tribunais continuam ajustando sua interpretação em casos concretos, o que reforça a necessidade de análise jurisprudencial constante.
Apesar da tentativa de uniformização legislativa, contratos antigos continuaram sendo objeto de disputas, o que levou o STJ a fixar diretrizes jurisprudenciais para esses casos. O Tema Repetitivo 1.002 do STJ estabeleceu que, nos compromissos de compra e venda de unidades imobiliárias anteriores à lei 13.786/18, em que é pleiteada a resolução do contrato por iniciativa do comprador de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros de mora somente incidem a partir do trânsito em julgado. Essa decisão foi fundamental para pacificar divergências interpretativas e garantir um critério uniforme na aplicação da norma.
Mesmo após a edição da lei, os tribunais continuam interpretando e adaptando sua aplicação. A padronização legislativa representou um avanço, mas a necessidade de ajustes ainda é evidente, com a jurisprudência desempenhando papel essencial na adequação da norma à realidade contratual e econômica do mercado imobiliário.
Este artigo busca analisar a evolução legislativa e jurisprudencial sobre o distrato imobiliário, os principais pontos da lei do distrato e seu impacto no mercado imobiliário, além de discutir os desafios ainda presentes na sua aplicação prática.
2. Evolução legislativa e contexto da lei do distrato
Antes da edição da lei do distrato, havia um vazio legislativo sobre o distrato imobiliário, o que gerava insegurança jurídica e decisões judiciais divergentes. A ausência de um marco normativo específico deixava tanto consumidores quanto incorporadoras à mercê de entendimentos variados nos tribunais, resultando em incerteza sobre os percentuais de retenção, prazos de devolução dos valores pagos e as consequências do descumprimento contratual.
A jurisprudência, nesse período, formava-se de maneira fragmentada, com precedentes oscilantes. Em alguns casos, os consumidores conseguiam reaver a quase totalidade dos valores pagos, enquanto em outros enfrentavam retenções que chegavam a 50% dos valores desembolsados, mesmo sem uma previsão legal expressa.
A lei do distrato surgiu, portanto, com a proposta de conferir maior previsibilidade e segurança jurídica ao setor. Entre as principais inovações, destacam-se:
- A previsão expressa sobre os percentuais de retenção (25% para contratos comuns e até 50% para contratos sob o regime de patrimônio de afetação);
- O estabelecimento de prazos para a devolução dos valores ao comprador;
- A obrigatoriedade de um quadro-resumo no contrato, para garantir transparência nas informações essenciais.
3. Irretroatividade da lei e contratos anteriores
Apesar da padronização trazida pela lei, um dos pontos de maior discussão foi sua aplicabilidade aos contratos firmados antes da sua vigência. O princípio da irretroatividade das leis impede que normas novas alterem situações jurídicas consolidadas sob regras anteriores, salvo disposição expressa em sentido contrário.
Um exemplo prático é um contrato de compra e venda de imóvel firmado em 2016, mas rescindido em 2019. Apesar de a rescisão ter ocorrido após a vigência da lei do distrato, as regras aplicáveis à retenção de valores e incidência de juros de mora devem seguir a jurisprudência consolidada antes da lei, conforme entendimento do STJ.
O acórdão 1.789.799 do TJ/DFT reforça essa perspectiva, estabelecendo que a lei do distrato não pode retroagir para atingir contratos assinados antes da sua vigência. Dessa forma, os distratos relativos a contratos mais antigos devem ser analisados à luz da jurisprudência então existente, sem a imposição automática das novas regras.
A tese do Tema 1.002 do STJ também reforça essa diferenciação ao determinar que, nos contratos anteriores à lei do distrato, os juros de mora só incidem após o trânsito em julgado quando há modificação da cláusula penal originalmente pactuada. Essa decisão foi essencial para evitar distorções na aplicação da norma e garantir maior previsibilidade jurídica.
4. O regime de patrimônio de afetação
O patrimônio de afetação foi criado como um mecanismo de proteção para os adquirentes de imóveis na planta. Trata-se de um regime jurídico em que o empreendimento imobiliário é segregado do patrimônio geral da incorporadora, funcionando como uma garantia de que os recursos pagos pelos compradores serão utilizados exclusivamente na construção do empreendimento. Esse modelo visa impedir que os imóveis adquiridos sejam afetados por dificuldades financeiras da incorporadora, assegurando que, mesmo em caso de falência, a obra seja concluída com os recursos destinados a ela.
Esse regime especial justifica a possibilidade de retenção de até 50% dos valores pagos pelo consumidor em caso de distrato. A justificativa para esse percentual mais elevado está no fato de que o empreendimento precisa manter sua viabilidade financeira, e a desistência de um comprador impacta diretamente o fluxo de caixa, podendo comprometer a conclusão da obra. Assim, a retenção maior protege tanto os demais adquirentes quanto a continuidade do projeto imobiliário.
5. Impacto para incorporadoras e consumidores
5.1. Para o consumidor
A nova legislação trouxe maior previsibilidade sobre os direitos e obrigações do consumidor em caso de desistência da compra de um imóvel na planta. No entanto, a retenção de valores pode ser questionada judicialmente, especialmente quando há indícios de abusividade.
O Tema 1.002 do STJ reforça esse direito ao estabelecer que os juros de mora só começam a contar após o trânsito em julgado quando há revisão da cláusula penal. Isso impede que incorporadoras exijam valores de forma antecipada sem uma definição final do processo judicial.
5.2. Para as incorporadoras
A lei trouxe maior segurança jurídica para as incorporadoras, ao estabelecer critérios claros para retenção de valores e prazos para devolução. Isso evita decisões judiciais excessivamente divergentes e permite um planejamento mais estruturado para os empreendimentos imobiliários.
Contudo, o impacto financeiro dessa retenção reduzida pode comprometer o fluxo de caixa das incorporadoras e influenciar os preços dos imóveis lançados. Um exemplo prático seria uma incorporadora que, ao planejar um empreendimento, precisa provisionar um fundo de reserva para cobrir eventuais desistências, impactando diretamente a viabilidade econômica do projeto.
6. Conclusão e perspectivas para o mercado imobiliário
Embora a lei tenha representado um avanço significativo, a judicialização ainda persiste. A necessidade de ajustes legislativos futuros tem sido discutida, especialmente no que diz respeito à flexibilidade das cláusulas penais e à adaptação da norma à realidade do mercado.
A normatização trouxe avanços importantes, mas o acompanhamento da jurisprudência nos próximos anos será essencial para entender se a lei realmente solucionou os problemas dos distratos ou se ajustes regulatórios serão necessários para equilibrar melhor os interesses das partes envolvidas.
Algumas melhorias que podem ser implementadas na legislação ou na regulamentação para aprimorar ainda mais a aplicação da lei do distrato e reduzir a judicialização incluem:
- Maior padronização na aplicação da cláusula penal: Criar um critério objetivo para a revisão da retenção, evitando análises subjetivas caso a caso.
- Critérios mais claros para a aplicação do patrimônio de afetação: Definir parâmetros para aferir a necessidade da retenção integral, considerando a revenda da unidade e o impacto no caixa da incorporadora.
- Redução do prazo de devolução dos valores ao consumidor: Incentivar a devolução antecipada por meio da redução da retenção para incorporadoras que pagarem antes do prazo máximo.
- Proteção contra distratos oportunistas: Estabelecer regras de proporcionalidade para diferenciar desistências motivadas por dificuldades financeiras daquelas que visam apenas ganhos especulativos.
- Ampliação da transparência no quadro-resumo: Exigir linguagem mais clara e acessível, incluindo simulações de valores e impacto financeiro do distrato.
- Regulamentação específica para distratos motivados por atraso na obra: Criar diretrizes diferenciadas para retenção em casos em que a rescisão ocorra por culpa da incorporadora.
- Criação de incentivos para acordos extrajudiciais: Estabelecer um procedimento obrigatório de conciliação antes da judicialização para reduzir litígios.
A lei do distrato trouxe avanços relevantes para o setor imobiliário, mas ainda há espaço para aprimoramentos. A principal fragilidade da norma está na falta de critérios objetivos para a flexibilização da cláusula penal e para a diferenciação entre distratos voluntários e aqueles decorrentes de inadimplemento das incorporadoras. Além disso, a transparência e a celeridade na devolução dos valores pagos poderiam ser incentivadas por meio de regras mais claras e estímulos financeiros para boas práticas no setor.
Se tais melhorias forem implementadas, a legislação poderá alcançar um equilíbrio mais eficaz entre a proteção ao consumidor e a segurança financeira das incorporadoras, reduzindo a litigiosidade e tornando o mercado imobiliário mais previsível para todas as partes envolvidas.
_______
1 BRASIL. Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018. Altera as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento do solo urbano. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13786.htm. Acesso em: 15 mar. 2025.
2 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990). Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 15 mar. 2025.
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.723.519/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 12 jun. 2019, Tema 1002. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 15 mar. 2025.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.614.721/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 22 ago. 2017. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 15 mar. 2025.
5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão nº 1789799, 5ª Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, julgado em 10 jun. 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br. Acesso em: 15 mar. 2025.
6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão nº 1895088, 6ª Turma Cível, Rel. Des. Carlos Rodrigues, julgado em 5 out. 2022. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br. Acesso em: 15 mar. 2025.
7 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão nº 1822482, 7ª Turma Cível, Rel. Des. Robson Teixeira, julgado em 18 mar. 2022. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br. Acesso em: 15 mar. 2025.
8 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Distrato Imobiliário: análise da Lei nº 13.786/2018 e sua aplicação prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
9 JUNQUEIRA, André Abelha. Distratos imobiliários e a revisão judicial das penalidades contratuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.