Diversas notícias têm sido publicadas a respeito de um suposto “confisco” ou “desapropriação”, pelo Ministério da Saúde, de bens imóveis, produtos médicos e hospitalares, necessários ao combate do Coronavírus no Brasil.
Entretanto, ao contrário de constituírem um confisco propriamente dito, tais medidas tipificam a chamada “requisição administrativa”, prevista no art. 5º, inciso XXV, da Constituição Federal, o qual estabelece a possibilidade da “autoridade competente”, em casos de iminente perigo público, usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário a indenização posterior, se houver dano.
A finalidade da requisição administrativa, portanto e como aponta a doutrina1, “é sempre de preservar a sociedade contra situações de perigo público iminente”. E ela “só não será legítima se não estiver configurada a situação de perigo mencionada na Constituição”, e se, é claro, for executada ao arrepio dos princípios mandatórios à Administração, como os da razoabilidade, impessoalidade, moralidade e legalidade.
Especificamente em relação ao cenário do Covid-19, a lei federal 13.979, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, previu, em seu art. 3º, inciso VII, que as autoridades estavam legitimadas a efetuar a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas”, assegurada a indenização posterior e justa.
O §7º deste artigo, por sua vez, estabeleceu que as medidas previstas nesta lei poderão ser adotadas pelo Ministério da Saúde e pelos gestores locais de saúde, respeitadas as condições e hipóteses lá estabelecidas.
Pois bem. O que se viu nas últimas semanas foi uma verdadeira avalanche de atos normativos prevendo a requisição administrativa em diversos âmbitos da federação. Viu-se até União e municípios litigarem sobre um mesmo bem particular, deflagrando ações judiciais de parte a parte2.
Nesse contexto, hoje, e em razão do Covid-19, vigoram ao menos os seguintes atos requisitórios, cujos objetos variam desde bens imóveis à serviços de pessoas físicas e jurídicas:
Conquanto a requisição seja eminentemente temporária (enquanto perdurar o perigo público iminente), fato é que parte desses produtos é consumível (como máscaras e álcool em gel), donde a inviabilidade de sua devolução ao particular atribui definitividade à requisição, impondo que a respectiva indenização se dê no valor integral e efetivo do objeto requisitado.
Em relação aos bens imóveis, exceto se houver sua destruição, a regra é a devolução ao particular, quando cessado o perigo iminente motivador da requisição. A indenização dar-se-á, portanto, na exata extensão do dano gerado pela ocupação.
A questão se revela mais complexa, contudo, quando a devolução do bem requisitado (camas hospitalares, colchões e respiradores, por exemplo) não mais interessar ao proprietário, quem, por exemplo, os fabrica e somente os comercializa no estado “novo”.
Vale dizer, encerrada a pandemia e quiçá reduzida drasticamente a demanda por parte desses produtos, o retorno desses bens a alguns particulares pode não ser conveniente e tampouco representar efetiva diminuição do dano gerado pela Administração Pública, a quem caberá mandatoriamente observar esta realidade no seu dever de indenizar.
Afinal, a requisição administrativa é “um direito com dupla titularidade. Estado e particular, pois, enquanto garante-se ao Poder Público a realização de suas tarefas em casos de iminente perigo público, resguardando-se dessa forma o bem-estar social, não permite que o particular seja espoliado de seus bens, e, eventualmente, sofra prejuízos”3.
Nesse contexto, aliás, é inconstitucional a tentativa de “tabelar” ou de pré-fixar a indenização ao particular, do modo que fizeram muitos dos atos de requisição administrativa atrelados ao Covid-19. Não se trata de uma licitação e/ou de uma “mera compra e venda”, sobre as quais incide a “tabela SUS” ou qualquer parâmetro predefinido pelo Estado.
Até porque, diante da altíssima demanda dos bens que dão suporte ao atendimento do Covid-19, é muito provável que grande parte dos produtos requisitados administrativamente já estivesse comprometida para atender contratos com hospitais privados, donde o ato do Estado representou frustração desses negócios.
Ora, além da clareza do texto constitucional, que alude a “indenização justa”, enfatiza a doutrina que “se o uso da res gerar um prejuízo a seu proprietário, danos emergentes e lucros cessantes -, este terá garantida a indenização, de forma a não sofrer empobrecimento por força estatal”4.
Dito isso, as pessoas físicas e jurídicas que tiverem seus bens ou serviços atingidos pela requisição administrativa decorrente do Covid-19 devem munir-se de todas as provas dos prejuízos que tal ato de império lhes causar, de forma que, na hipótese do Estado não ressarci-las administrativa e plenamente, elas possam se valer do Judiciário5 para receber a “justa indenização” prevista na Magna Carta.
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1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 640.
2 Processo 0806434-24.2020.4.05.8300, distribuído ao Juízo Plantonista da Seção Judiciária de Pernambuco, em que litigam a União Federal e a Prefeitura de Recife
Processo 5001498-66.2020.4.03.6130, em trâmite perante a 2ªVara Federal de Osasco, proposta pelo Município de Cotia contra a União Federal e outro.
3 Alexandre de Moraes - Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 8ª edição, 2011, Atlas, p. 194.
4 Alexandre de Moraes - Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 8ª edição, 2011, Atlas, p. 194
5 “É sempre um ato de império do Poder Público, discricionário quanto ao objeto e oportunidade da medida, mas condicionado à existência de perigo público iminente (CF, arts. 5º, XXV, e 22, III) e vinculado à lei quanto à competência da autoridade requisitante, à finalidade do ato e, quando for o caso, ao procedimento adequado. Esses quatro últimos aspectos são passíveis de apreciação judicial, notadamente para a fixação do justo valor da indenização” (HELY LOPES MEIRELLES em “Direito Administrativo Brasileiro”, 37ª edição, 2011, Malheiros Editores, p. 678).
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*Andréa Pitthan Françolin é advogada e sócia do escritório IWRCF Advogados.