1. Introdução
Em 06.02.20 foi publicada a lei 13.979/20 que dispõe sobre as medidas a serem tomadas no âmbito público e privado, para proteção da coletividade no que tange ao enfrentamento emergencial de saúde pública decorrente do coronavírus.
Em termos legais, constituem medidas de proteção:
I - isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e
II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
Regulamentando referida legislação, a portaria do Ministério da Saúde 356, de 11.03.20, estabelece como medida de isolamento a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local, a qual somente pode ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 (quatorze) dias, podendo se estender por até igual período, conforme resultado laboratorial que comprove o risco de transmissão.
Já a hipótese de quarentena é determinada por autoridades públicas mediante ato administrativo formal, devidamente motivado, com o intuito de garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado, bem como reduzir a transmissão da doença.
Na seara laboral, diversos são os impactos que esta epidemia vem ocasionando desde a confirmação de casos positivos da doença, levando a aproximação entre empregadores e empregados com o intuito de discutirem medidas de proteção e contenção da disseminação do coronavírus no ambiente de trabalho.
Tal fato fez com que nós, operadores do Direito, debruçássemos com mais afinco para responder às indagações empresariais e apresentássemos alternativas sem impactar os direitos dos trabalhadores, e sem comprometer o deslinde produtivo empresarial, enquanto esperávamos a atuação do governo, pois as normas até então existentes não permitiam soluções imediatas de forma desburocratizada.
Em 22.03.20 foi publicada pelo Poder Executivo a medida provisória 927/20 contendo medidas direcionadas à área trabalhista para enfrentamento do estado de calamidade pública, reconhecido pelo decreto 6, de 20.03.20, com duração prevista até 31.12.20.
Com isso, longe de esgotar os questionamentos e os impactos que a adoção das medidas de proteção podem ocasionar nas relações contratuais, este trabalho propõe identificar e apresentar mecanismos a serem utilizados pelas empresas no decorrer da suspensão das atividades, consoante atual legislação.
Importante lembrar que as medidas adotadas pelos empregadores no período de 30 dias anteriores à entrada em vigor da MP 927/20, desde que não contrariem seu texto, consideram-se convalidadas (art. 36).
2. Medidas previstas na MP 927/20 que podem ser implantadas nas relações de emprego
Com intento de preservar o emprego e a renda do trabalhador urbano, rural, terceirizado e domésticos, para este último somente se houver compatibilidade com a atividade, a MP 927/20 estabelece as seguintes medidas que podem ser adotadas durante o estado de calamidade pública:
a) teletrabalho;
b) antecipação de férias individuais;
c) concessão de férias coletivas;
d) aproveitamento e antecipação de feriados;
e) banco de horas;
f) suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
g) diferimento do recolhimento do FGTS.
2.a – Teletrabalho
A regra implementada pela lei 13.467/17, denominada reforma trabalhista, autoriza que, por mútuo acordo e mediante aditivo contratual, haja a alteração do regime presencial para o teletrabalho (art. 75-A a 75-E, da CLT).
No entanto, para simplificar e agilizar a implementação de medidas na seara laboral, as formalidades celetistas foram flexibilizadas pela MP 927/20, possibilitando a adoção do regime de teletrabalho, assim como o retorno ao regime presencial, por ato unilateral do empregador, independentemente de ajuste prévio, exigindo-se apenas a notificação do empregado com antecedência de, no mínimo, 48 horas, por escrito ou meio eletrônico.
A fim de não caracterizar natureza salarial, a medida provisória ainda assentou que o fornecimento de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura pelo empregador serão regulados conforme as regras de comodato (art. 579 a 585, do CC), previsto em contrato escrito que pode ser firmado previamente ou no prazo de 30 dias, contado da data da mudança do regime de trabalho.
Apesar das facilidades supramencionadas, a MP 927/20 não caminhou bem ao realizar distinção, a meu ver, bastante equivocada com relação aos empregados submetidos ao regime de teletrabalho que fazem uso de tecnologia e infraestrutura cedidos pelo empregador, e o trabalhador remoto ou em domicílio que desenvolve tarefas no âmbito residencial com ferramentas próprias.
Isto porque a medida provisória manteve o afastamento das regras referentes à duração de trabalho para o teletrabalhador, nos termos do art. 62, III, da CLT, enquanto que para o trabalhador em domicílio, que não utiliza ferramentas do empregador, permitiu o controle da jornada e, consequentemente, o pagamento de horas extras, adicional noturno e intervalos.
Observo, nesse sentido, que a MP 927/20 padece de inconstitucionalidade, pois fere o princípio da isonomia ao tratar de modo desigual trabalhadores que se encontram em situações de trabalho semelhantes.
Com efeito, outra disposição igualmente incongruente é aquela que afirma que o tempo de uso de aplicativos ou programas de comunicação fora da jornada normal não constitui tempo à disposição, prontidão ou sobreaviso, exceto se houver acordo individual ou coletivo em contrário.
Verifica-se que ora permite o controle de jornada para empregados em domicílio que contam com recursos próprios para prestação dos serviços, ora entende que o uso de determinadas tecnologias não configuram tempo à disposição, portanto o tempo gasto não será remunerado como trabalho extraordinário.
De outro lado, houve precaução ao definir que não será aplicável ao teletrabalho o regramento previsto para o teleatendimento e telemarketing, devido às especificidades destas profissões.
Por fim, o regime de teletrabalho foi autorizado aos estagiários e aprendizes durante o estado de calamidade pública.
2.b) Antecipação de férias individuais
A MP 927/20, flexibilizando as exigências contidas na CLT, inaugura, durante o estado de calamidade pública, a viabilidade para concessão de férias individuais, reduzindo para 48 horas o prazo de comunicação ao empregado, por escrito ou por meio eletrônico.
Ademais, possibilita o pagamento das férias até o 5º dia útil do mês subsequente ao início do gozo. Já em relação ao acréscimo constitucional de 1/3, a medida provisória faculta o pagamento até o vencimento da gratificação natalina, ou seja, até 20 de dezembro, a fim de permitir aos empresários estruturar o caixa de suas empresas.
O ato de concessão continua sendo opção do empregador, o qual deverá priorizar aqueles que estiverem no grupo de risco (Clique aqui).
No que tange ao período, as férias não podem ser concedidas por prazo inferior a 5 dias corridos.
Neste aspecto, observo aparente conflito entre o texto da MP 927/20 e a convenção 132, da OIT, promulgada pelo decreto 3.197/99, pois ao estipular que as férias não podem ser concedidas por tempo inferior a 5 dias corridos, a medida provisória colide com a norma internacional que institui, no caso de fracionamento de férias, seja respeitado o mínimo de 2 semanas ininterruptas. Deste modo, pode-se cogitar, apesar de polêmico, eventual controle de convencionalidade da norma interna face à convenção 132, da OIT.
Também inovou a medida provisória ao dispor que as partes, empregado e empregador, mediante ajuste escrito, possam antecipar períodos de férias futuros.
Quanto ao direito previsto pela norma celetista de o empregado abonar 1/3 das férias, somente será devido, durante o estado de calamidade, se houver concordância do empregador.
Parece-me salutar esta anuência, pois, além de permitir ao empregado ficar mais tempo em casa cumprindo a quarentena e evitando sua exposição e de outras pessoas ao risco, tem o intuito de equilibrar os gastos empresariais abalados pela redução ou paralisação das atividades.
Importante ressaltar que trabalhadores pertencentes ao grupo de risco ao coronavírus (pessoas acima dos 60 anos e aquelas com doenças crônicas, como diabetes e doenças cardiovasculares) terão prioridade quanto ao gozo de férias, sejam individuais ou coletivas.
De outro lado, considerando a importância do trabalho daqueles que prestam serviços na área da saúde e outras atividades também consideradas essenciais, a medida provisória permite a suspensão de férias individuais ou de licenças não remuneradas, mediante comunicação formal escrita ou por meio eletrônico, com antecedência de, pelo menos, 48 horas, em prol dos princípios da prevalência da saúde pública e da solidariedade.
2.c – Concessão de férias coletivas
De acordo com a CLT, as férias coletivas podem ser concedidas a todos os empregados da empresa ou determinados estabelecimentos ou setores, mediante comunicação prévia de 30 dias de antecedência, podendo ser fracionadas em dois períodos, desde que nenhum deles seja inferior a 10 dias corridos.
Todavia, evitando desburocratizar esta formalidade durante o estado de calamidade pública, as férias coletivas não mais estarão sujeitas ao limite máximo de períodos anuais, nem ao limite mínimo de dias corridos. Ademais, estão dispensadas a comunicação prévia ao órgão local do Ministério da Economia e aos sindicatos.
2.d – Aproveitamento e compensação de feriados
Enquanto durar o estado de calamidade pública, o empregador poderá antecipar o gozo dos feriados não religiosos, notificando, por escrito ou por meio eletrônico, os empregados que serão beneficiados, com antecedência de 48 horas e indicação expressa dos feriados que serão aproveitados em cumprimento à quarentena.
Estes feriados poderão ser compensados do saldo em banco de horas.
Com relação ao feriados religiosos, a antecipação para posterior compensação dependerá de anuência expressa do empregado, em respeito à liberdade de consciência e de crença, assegurada no art. 5º, VI, da CF.
2.e – Banco de horas
O banco de horas, nos moldes da legislação celetista, pode ser previsto em norma coletiva para compensação no período máximo de um ano, desde que não exceda à soma das jornadas semanais de trabalho, nem ultrapasse o limite máximo de dez horas diárias. A reforma trabalhista (Lei 13.467/17) ainda permitiu a instituição de banco de horas por acordo individual escrito, para compensação do excesso no prazo de seis meses, bem como regime de compensação individual, tácito ou escrito, para aproveitamento das horas positivas no mesmo mês.
A regra, portanto, é no sentido de que a instituição de banco de horas ou regime de compensação devem ser acordados previamente, para posterior compensação.
Contudo, objetivando atender a situação emergencial, a MP 927/20 permitiu a paralização das atividades empresariais e a constituição destes instrumentos por acordo coletivo ou individual, para posterior compensação de horas.
Desta forma, o empregado não prestará serviços, mas o empregador continuará obrigado ao pagamento de salários, depósitos de FGTS e recolhimento previdenciário, podendo ocorrer a compensação das horas de trabalho interrompido no prazo de até 18 meses, contado do encerramento do estado de calamidade pública.
Esta compensação será realizada, por determinação do empregador, independentemente de instrumento coletivo ou individual, mediante prorrogação da jornada por até 2 horas, observado o limite de 10 horas diárias.
Se ao final do período previsto para compensação restar saldo positivo no banco de horas, tais horas deverão ser remuneradas com acréscimo do adicional legal ou convencional previsto para o trabalho extraordinário.
2.f – Suspensão das exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho
A medida provisória em questão suspende a obrigatoriedade da realização de exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto os exames demissionais que somente poderão ser realizados no prazo de 60 dias após o encerramento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus.
O exame médico demissional poderá ser dispensado caso o empregado tenha realizado exame ocupacional há menos de 180 dias.
Como medida de saúde e segurança no trabalho, a MP 927/20 ainda determinou a suspensão da obrigatoriedade de treinamentos de atuais empregados, a fim de conter a propagação do vírus. Esta capacitação será realizada no prazo 90 dias após o encerramento da situação de calamidade.
Contudo, a MP 927/20 permite que sejam realizados treinamentos à distância, sob fiscalização do empregador, a fim de garantir que as atividades sejam executadas com segurança.
2.g – Diferimento do recolhimento do FGTS
Fica suspensa a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelo empregador referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimentos em abril, maio e junho de 2020, respectivamente, permitindo-se a quitação em até 6 parcelas mensais, com vencimento no 7º dia de cada mês, a partir de julho de 2020, desde que feita declaração de informações, na forma do art. 20, § 2º, da MP 927/20.
3. Demais disposições previstas na MP 927/20
3.a – Prorrogação da jornada 12x36 em estabelecimentos de saúde
Mediante acordo individual escrito, a MP 927/20 autoriza aos estabelecimentos de saúde, inclusive para atividades insalubres e para jornadas de 12x36, a prorrogação da jornada, nos termos do art. 61, da CLT, bem como a adoção de escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, observado o repouso semanal remunerado.
Por instituição de banco de horas, este período suplementar poderá ser compensado no decorrer de 18 meses, a partir do encerramento do estado de calamidade, ou remunerado como hora extra.
3.b – Trabalhador infectado por coronavírus
O trabalhador infectado deverá afastar-se do trabalho, conforme determinação médica, sendo os primeiros 15 (quinze) dias abonados pelo empregador.
A partir do 16º dia de afastamento o encargo será suportado pela Previdência Social, através da concessão do benefício de auxílio-doença.
Nesse sentido, a MP 927/20 foi expressa ao assentar que os casos de contaminação por coronavírus (covid-19) não serão considerados doenças ocupacionais, salvo se houver comprovação do nexo de causalidade. Uma vez provado o nexo, a hipótese será de acidente do trabalho, gerando todas as consequências da estabilidade no emprego.
3.c – Convenção e acordo coletivo
As convenções e acordos coletivos vencidos e vincendos no prazo de 180 dias, contado da entrada em vigor da medida provisória em comento, poderão ser prorrogados, a critério do empregador, por 90 dias após seu término.
4. Outras medidas trabalhistas sustentáveis no período de quarentena
4.a – Lay-off
O art. 476-A, da CLT permite a suspensão do contrato de trabalho, através de instrumento coletivo (convenção ou acordo coletivo de trabalho), ou seja, com a participação do sindicato, mediante aquiescência formal do empregado, a fim de que participe de curso de qualificação profissional promovido pelo empregador, por um período de 3 a 5 meses.
Neste ínterim, o empregador poderá conceder ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, com valor a ser definido no instrumento de negociação coletiva.
Com intento de equalizar a preservação do emprego e saúde financeira da empresa em momentos de crise econômica, a bolsa de qualificação profissional poderá ser custeada pelo FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), com os mesmos valores e número de parcelas do benefício do seguro-desemprego (art. 2º-A e 3º-A, da lei 7.998/90)
4.b – Empregado hipersuficiente
A reforma trabalhista produzida pela lei 13.467/17 introduziu ao ordenamento jurídico a figura do empregado hipersuficiente (art. 444, par. único, da CLT), permitindo ao portador de diploma de nível superior e que perceba salário igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social, estipular livremente regras contratuais com a mesma eficácia e preponderância de instrumentos coletivos.
Com isso, estes trabalhadores poderão dispor, por acordo individual, sobre todas as matérias enumeradas no art. 611-A, da CLT, ajustando as cláusulas do contrato de trabalho para vigorarem durante o estado de calamidade pública.
4.c – Estagiário
Nos termos da lei 11.788/08, o estágio de estudante pode ser obrigatório ou não obrigatório.
O estágio obrigatório é aquele definido no projeto do curso, cuja carga horária é requisito para aprovação e obtenção do diploma. Nesta contratação poderá ser pactuada ou não uma contraprestação ao estagiário.
De outro banda, o estágio não obrigatório compreende aquele desenvolvido como atividade opcional, acrescida à carga horária regular e obrigatória do curso, sendo compulsória a concessão de bolsa ou outra forma de contraprestação, assim como o vale-transporte.
Para ambas modalidades de estágio, desde que haja contratação por período igual ou superior a 1 (um) ano, será assegurado um recesso de 30 dias, devendo coincidir com as férias escolares.
Neste aspecto, diante da excepcionalidade epidêmica e interpretação analógica do disposto no art. 6º, da MP 927/20, possível à parte concedente antecipar este recesso aos estagiários, como medida viável para controlar a difusão do coronavírus e evitar sua exposição ao risco.
Mister salientar que a medida provisória permitiu expressamente a adoção do teletrabalho também para estagiários.
Por fim, recomenda-se aos menores de idade, sejam empregados, estagiários ou aprendizes, o afastamento de suas atividades, tendo em vista a finalidade dos instrumentos jurídicos de proteção previstos no art. 7º, XIII, da CF, lei 11.788/08 e art. 428 e seguintes da CLT.
5. Conclusão
É evidente o momento crítico que estamos vivenciando, assim como os impactos que as medidas de isolamento e quarentena estão produzindo na rotina de pessoas físicas e jurídicas, gerando muitas incertezas, principalmente quanto ao futuro.
Por isso, na atual conjuntura é imperiosa a cooperação de todos os atores sociais – governo, empregadores, empregados, sindicatos – a fim de flexibilizar, negociar e adaptar condutas, tanto pessoais como profissionais, para preservar o emprego e direitos do trabalhador, que depende dos salários para sobrevivência, mas também equilibrar a saúde financeira das empresas que tiveram que paralisar suas atividades.
O momento pede maior aproximação entre empresários e trabalhadores para, com razoabilidade e ponderação, verificar a melhor forma de implantação das medidas trabalhistas nas relações de emprego.
Por fim, a única situação que não pede flexibilização neste momento é a adoção de medidas de prevenção, contenção e combate ao coronavírus, as quais devem ser rígidas, a fim de preservamos nosso bem maior: a vida.
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*Tatiana da Silva Morim Kashio é advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho.