Instituto jurídico milenar, já presente no Direito Romano o casus fortuitus se caracterizava como escusa no cumprimento de obrigação frente a acontecimento imprevisto, decorrente de ação humana, como as guerras, ou decorrentes da natureza, como os fenômenos meteorológicos (grandes tempestades, furacões, etc). Era o embrião do que hoje chamamos de caso fortuito. E convivia, também no período romano, ao lado do causus majores (vis major est cui humana infirmitas resistire non potest) entendida como aquela força mais forte, que a ação humana não pode resistir: a propalada força maior.
Muitas codificações da Europa continental não distinguem o emprego das expressões “caso fortuito” e “força maior”, ora mencionando um conceito ora outro, de forma indistinta, para as mesmas situações. O atual Código Civil Brasileiro (“CC”) restou por unir os dois conceitos no parágrafo único do art. 393, como se a mesma coisa fossem, cabendo à doutrina e à jurisprudência fazer a diferenciação.
Em linhas gerais, em direito obrigacional, tanto o caso fortuito como a força maior podem ser entendidos como ações de causas que se situam fora do alcance da vontade de uma parte, obrigada a realizar uma certa prestação, impedindo-a de seu cumprimento. Tem como requisito, tudo que não pode ser previsto quando da criação da obrigação, e mesmo que fosse previsto, é sempre aquele acontecimento cujos efeitos não seria possível evitar ou impedir.
Produz como consequência a isenção de responsabilidade da parte impedida da execução da obrigação, excluindo-se a sua culpa. Vale dizer, interrompe-se o nexo de causalidade entre inadimplemento e dano ocasionado à outra parte que sofreu a inexecução. E se não há o nexo de causalidade, não há o dever de indenizar.
As causas de casos fortuitos e de força maior são tipicamente decorrentes de grandes acontecimentos da natureza, de atos governamentais ou de atos extraordinários vinculados a uma ação coletiva (como as guerras, extensas paralisações das cadeias logísticas, abrupta redução da atividade econômica, etc). Interessante notar que a jurisprudência tem oscilado na caracterização dos eventos como sendo de caso fortuito ou força maior, não havendo muitas vezes reconhecimento de fatos como secas ocasionais ou greves de determinadas categorias profissionais, pois esperados de tempos em tempos no desenvolvimento de certas atividades econômicas.
Também alguns doutrinadores caracterizam o caso fortuito como inerente ao “risco profissional”, relacionado ao risco da atividade econômica, afastando-se a irresponsabilidade. Para muitos, a força maior se diferenciaria do caso fortuito, ocorrendo quando o risco não fosse intrínseco à atividade econômica, e sempre independente da vontade do devedor, impedindo-o da execução, colocando-o em situação de impossibilidade para o cumprimento da obrigação. De toda sorte, deve haver sempre uma relação inequívoca entre o evento de força maior e a inexecução.
O caso fortuito e a força maior não devem ser evocados por aqueles que já estavam inadimplidos, ou prestes a inadimplir antes da ocorrência de seu evento, prevalecendo sempre o princípio da boa-fé. E não pode um devedor, valendo-se da situação de caso fortuito ou coisa maior, contribuir para sua inexecução, ou seja, não pode, de forma intencional tomar medidas que concorram para aumentar as consequências do inadimplemento. Muito pelo contrário, deve o devedor, pelo princípio da boa-fé objetiva, que norteia as relações contratuais, usar tudo que há a seu alcance para evitar a inexecução.
Os efeitos da pandemia da COVID-19, causada pelo coronavírus, estão se apresentando na forma de uma crise sem precedentes, com características e efeitos econômicos semelhantes aos das duas grandes guerras do Século XX - aliás, diga-se de passagem, foram nas grandes guerras que os doutrinadores e os tribunais de todo o mundo se debruçaram na conformação da teoria da imprevisão e dos conceitos de caso fortuito e força maior. Medidas governamentais drásticas como o fechamento do comércio, interrupção dos transportes públicos, isolamento social e a quarentena ameaçam os negócios e a cadeia logística, levando muitas famílias e empresas a perderem a perspectiva de geração de receita e de caixa. É inequívoca, para muitos afetados, a situação de absoluto impedimento no cumprimento de obrigações, caracterizando-se o caso fortuito e a força maior.
Mas o simples não cumprimento da obrigação por caso fortuito ou força maior não pode acarretar o enriquecimento sem causa nas relações, de tal forma que o devedor, que já recebeu a coisa ou os préstimos do credor, fica obrigado a restituí-los, fazendo com que a situação entre as partes retorne ao status quo anterior. Aquele vendedor que recebeu o preço, mas não entregou a coisa, deve restituir o comprador.
Interessante notar que nem sempre o caso fortuito ou a força maior acarretam o término contratual de forma direta (diferentemente da resolução por onerosidade excessiva, e que também pode ser ocasionada por um evento de força maior) pois a consequência prevista no art. 393 do CC, como dito, torna apenas sem efeitos as perdas e danos decorrentes do não cumprimento obrigacional. Pode também afastar a mora, em uma interpretação sistemática do art. 396 do CC. Há casos em que as obrigações previstas em contratos são múltiplas, sendo a obrigação atingida pelo caso fortuito ou de força maior, secundária, podendo as obrigações principais serem cumpridas a despeito da obrigação afetada pelo caso fortuito e a força maior.
Torna-se fundamental, nesse cenário, a análise detida dos mais diversos tipos de situações e contratos, dada a particularidade de cada modo de cumprimento de obrigações, inclusive porque pode ter o devedor se obrigado contratualmente perante o credor de forma incondicional, mesmo presentes o caso fortuito ou a força maior.
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