Na série de reportagens acerca dos diversos ataques sofridos pelo Supremo Tribunal Federal ao longo da história, terminamos a matéria anterior contando que o país mergulhou por mais de duas décadas num período tenebroso, a partir da ditadura militar.
Foram mais de vinte anos de violência e repressão. E, como todo ciclo histórico, esse chegou ao fim a partir da pressõa social. De fato, a movimentação de resistência e luta por eleições diretas encaminhou a sociedade para o processo de abertura política e volta ao sonhado regime democrático.
Com este propósito, em 15/1/1985, o Congresso Nacional elegeu Tancredo Neves para ser o primeiro civil a retomar a presidência do país. Como se sabe, por motivos de doença e depois falecimento, quem assumiu e deu seguimento ao processo de redemocratização foi o presidente José Sarney.
Começa aí a nova República, que precisaria de uma nova Constituição – deixando para trás o texto de 1967 feito pelos militares. Para isso, é convocada uma Assembleia Nacional Constituinte. Os trabalhos, com ampla participação popular, desenvolveram-se por quase dois anos. E, ao final, estava elaborada aquela que ficou conhecida como "Constituição Cidadã" – promulgada em 5 de outubro de 1988.
A Carta, considerada uma das mais avançadas e democráticas do mundo, foi cuidadosamente redigida, prevendo princípios fundamentais a serem preservados e a admissão de alterações na lei a fim de acompanhar as mudanças da própria sociedade. Estavam aí protegidos e apoiados tanto a democracia como o povo:
"Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. [...]
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
[...] Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável. Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cinco anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los."
Veja a íntegra do discurso de Ulisses Guimarães na promulgação da CF de 1988:
STF e o povo
Nesse novo cenário, o STF entendeu logo que era preciso estar mais próximo da sociedade. E os esforços nesse sentido começaram um pouco antes.
Quando o ministro Albuquerque assumiu a presidência da Corte, em 1981, constatou: "o povo não conhece o Supremo".
O que se seguiu, então, foi um encontro entre os agentes da Corte e os agentes da mídia, a fim de resgatar o tribunal "das páginas mais modestas da imprensa para as mais destacadas e condizentes com sua importância institucional", como explicou o magistrado à Folha de S.Paulo, em 14/4/1982 na matéria intitulada "Revalorizar a Justiça".
De fato, com o desempenho cada vez maior do STF na vida política do país a partir da promulgação da CF/88, a própria imprensa passou a destacar o papel imprescindível da instituição como agente moderador, deixando para trás a imagem pública de distanciamento e alheamento da realidade que lhe foi atribuída em tempos de ditadura – a exemplo da notícia "STF impõe Constituição e muda imagem", publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 8/7/1990:
"[...] o País descobriu no STF um alarme capaz de frear um presidente que tem pressa em cumprir as metas de governo e um congresso mais voltado para o recesso parlamentar que para suas tarefas. [...] O alarme que toca cada vez que um dos poderes desrespeita um dos 315 artigos da Constituição, tem servido aos brasileiros como uma aula prática de como devem funcionar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário."
Reconhecido como poderoso e autônomo, as notícias sobre a atuação e as decisões do STF foram gradativamente migrando do viés técnico-jurídico para a um viés político-jurídico. A Constituição, devido ao seu caráter abrangente, passou a ser interpretada não apenas como uma Carta política, que assegura direitos individuais, mas também como uma garantia de direitos sociais em áreas como educação, saúde, trabalho, entre outras.
Esse papel ampliado do Supremo decorreu, em parte, da falta de resolução desses temas em suas esferas de origem, como o Legislativo e o Executivo, e, de outro lado, do descrédito da população em relação a esses poderes, frequentemente associados a crimes políticos e corrupção.
O avanço do STF em questões originalmente atribuídas a outros Poderes naturalmente gerou reações. De fato, surgiram debates sobre o processo de nomeação dos ministros, as disputas internas no tribunal e o perfil de atuação de seus integrantes, com destaque para posições ideológicas e eventuais alinhamentos políticos. Como consequência, não tardaram a aparecer tensões entre os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ademais, a visibilidade do STF aumentou consideravelmente a partir dos anos 2000. Nesse sentido, é importante lembrar da criação da TV Justiça (lei 10.461/02), quando os julgamentos da Corte passaram a ser acompanhados ao vivo – e a cobertura jornalística do Judiciário tornou-se mais acessível, acompanhada pelo crescente interesse e participação da população em redes sociais.
É nessa época que o espaço de interpretação das leis passou a se converter, de certo modo, em espaço público – à medida que todos podiam se expressar a respeito da interpretação constitucional do STF, e a relação comunicativa podia se estabelecer de maneira mais abrangente, profunda e amplificada.
Nesse cenário, a partir de 2005, a atuação do STF em casos de corrupção e crimes políticos começou a se multiplicar nas páginas dos jornais, com um pico em 2012 no famigerado julgamento do caso Mensalão.
Estudos apontam que entre os anos 2011 e 2014 a crítica da politização havia atingido o seu ápice até aquele momento. Para a doutora em Ciências Sociais, Fabiana Luci de Oliveira, (2017, p. 958), "a intervenção em uma série de assuntos de relevo na política nacional fez com que a crítica da politização superasse o elogio da centralidade política do tribunal, sendo frequentes, no período, a leitura de usurpação de poder, o questionamento da hipertrofia do Judiciário, e, nas críticas mais severas, chegou-se a falar de 'golpe branco'" – conforme se pode acompanhar em matéria da Folha de S.Paulo:
"[...] é inegável que a democracia brasileira vem sendo fustigada pela hipertrofia do papel do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal. Há quem chame isto de judicialização da política. Ou quem sabe ensaio de golpe branco em vários níveis da administração."
Esse crivo de leitura não apenas prosperou na mídia ao longo dos anos como alcançou um viés diferente, com a exposição de ataques mais acentuados visando restringir o nível de influência da Corte e dos magistrados, como mostram os trechos a seguir de matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 1o/10/2024:
"Nos últimos 10 anos, ao menos 30 propostas de emenda à Constituição (PEC) mirando modificações no Tribunal foram protocoladas. Nenhuma delas prosperou, mas a mudança no foco dos projetos indica uma beligerância crescente do Parlamento contra o Supremo [...]. A característica das sugestões mudou nos últimos anos: se antes focavam em questões técnicas [...], o embate de integrantes do Tribunal com a bancada bolsonarista no Congresso a partir de 2019 levou a tentativas de reduzir o poder e a influência de seus membros. [...] Entre 2015 e 2018, 19 PECs foram propostas para reformar o Judiciário, mas nenhuma delas visava combater a influência do STF [...] Com a atuação da bancada bolsonarista, a partir de 2019, as proposições se voltaram contra o poder dos magistrados que interferiam no projeto político do então presidente Jair Bolsonaro. Das 11 PECs apresentadas, cinco têm como alvo a capacidade decisória dos ministros."
Ataques ao Supremo
E foi assim que se chegou, em outubro de 2024, à aprovação do chamado "pacote Anti-STF", pela CCJ da Câmara, na PEC 8/21, que limita decisões monocráticas no STF e outros Tribunais Superiores e no PL que possibilita impeachment de magistrados do STF quando usurparem competências do Congresso Nacional.
O que acontece, de acordo com a senadora Damares Alves, em entrevista à CNN, em 11/10/24 (1'43'') – sendo ela uma das autoras das propostas que buscam mudar a correlação de forças entre os Poderes – é que o Congresso se ressente:
"A experiência dos últimos 2, 3 anos foi muito negativa para o Congresso Nacional. O Congresso Nacional se sentiu realmente ultrajado [...], sentiu que a nossa autonomia ela realmente está ameaçada, as nossas atribuições estão realmente sendo usurpadas."
As críticas advêm de um cenário em que a Corte é percebida como excessivamente interventora em questões políticas e sociais, ultrapassando suas funções ao tomar decisões que deveriam caber ao Legislativo e a até mesmo ao Executivo.
As reações às propostas são controversas. Para uns: as medidas visam restabelecer o equilíbrio entre os Poderes; buscam afirmar que a força do STF está na sua colegialidade, e não na individualidade de seus ministros. Para outros, no entanto: as medidas são inconstitucionais, avançando sobre a separação dos Poderes. Estes últimos argumentam que mudanças devem se originar da própria Corte, não podem simplesmente ser propostas e aceitas ao sabor das emoções e dos ciclos políticos.
A questão envolvendo tensões políticas e o controle do Judiciário não é nova na história recente do país. Nesse sentido, lembramos uma fala do saudoso ministro Sepúlveda Pertence em entrevista à Folha de S.Paulo em 14/5/1995:
"Essa história de controle externo só vem a tona, não a propósito de uma reflexão séria sobre os problemas do Judiciário, mas sempre depois de uma decisão polêmica dos tribunais, particularmente do Supremo. O que dá para desconfiar. Apesar da desculpa óbvia de que não se pretende controlar as decisões do Judiciário, no dia em que houvesse um órgão controlador externo, seria sobre ele quem recairiam as críticas que hoje se fazem à Justiça. No ano passado, por exemplo, o Supremo foi chamado de demagógico e populista por um político conservador (Pertence não quis citar o nome). Poucos meses depois, um político de esquerda protestou contra uma decisão chamando-a de reacionária e antipopular. Curiosamente, os dois concluíam que era necessário o controle externo do Judiciário. Volto a insistir: dá para desconfiar dessa intenção."
A situação atual, todavia, foge à normalidade das disputas políticas que se esperam ver num regime democrático. De fato, se voltarmos no tempo referido pela senadora Damares Alves, chegaremos à segunda metade do governo Bolsonaro (2019-2022), do qual ela integrava como ministra.
Sobre a atuação do militar reformado à frente do Executivo, o cientista político Cláudio Gonçalves Couto (2023, p.2) explica:
"Seu governo nunca foi o de um típico chefe de governo do presidencialismo de coalização brasileiro desde o início da redemocratização em 1985. Até 2018, houve governos melhores ou piores, mais bem-sucedidos ou fracassados, de presidentes populares ou impopulares, chefiados por políticos habilidosos ou desastrados; o que ainda não existira é um governo marcado pelo signo da anormalidade, transformada em regra. Em se tratando do governo Bolsonaro, sequer é o caso de se falar em crise, já que esta supõe descaminho em relação a um rota; neste caso o descaminho foi estatuído como a própria rota."
No âmbito do Direito, estudos dos professores Oscar Vilhena Vieria, Rubens Glezer e Ana Laura Pereira Barbosa (2022, p. 592) apontam a mesma direção:
"Ao longo de seus quatro anos de mandato, Bolsonaro hostilizou o STF e seus ministros por cumprirem a função que lhes cabia, de garantir a aplicação da Constituição. Nesse período, a democracia constitucional brasileira foi submetida ao maior teste de resiliência desde 1988. Jair Bolsonaro, um líder populista autocrático, promoveu um método singular de erosão institucional, exigindo uma postura combativa do STF, Corte dotada de múltiplas competências que lhe permitiram exercer de forma ampla a defesa da democracia brasileira."
Os atritos entre Bolsonaro – e seu círculo político mais próximo – e o Judiciário são anteriores à sua chegada ao Poder. Em plena campanha eleitoral de 2018, quando questionado sobre uma possível intervenção do exército caso seu pai fosse impedido de assumir a presidência por decisão do Supremo, Eduardo Bolsonaro falou: "se quiser fechar o STF sabe o que você faz? Você não manda nem jipe. Manda um soldado e um cabo [...] O que é o STF?".
Jair Bolsonaro também divulgou em campanha a intenção de controlar a Corte, elevando o número de ministros de 11 para 21. Aliás, é forçoso lembrar que durante a ditadura militar o Supremo chegou a ter 16 ministros, numa manobra que visava indicar nomes alinhados ao governo a fim de obter maioria sobre as decisões.
O ano de 2019 seria realmente marcante, não apenas pelo início do governo Bolsonaro à frente do Executivo, mas também pela abertura do Inquérito das Fake News – inicialmente com o ministro Dias Toffoli e depois relatado pelo ministro Alexandre de Moraes – a fim de investigar conteúdos falsos e ataques contra a Corte, notadamente o chamado "gabinete do ódio" bolsonarista. Já nesse ano, Jair Bolsonaro começava a apoiar manifestações de rua contra o STF.
Em 2020, justamente por ocasião do cumprimento de mandados de busca e apreensão pela PF no âmbito Operação Fake News – atingindo pessoas próximas a Bolsonaro – aquele citado rebento do então presidente disse em transmissão ao vivo por rede social que seu pai estava prestes a tomar uma "medida enérgica" de ruptura institucional, segundo noticiado pela BBC: "não é mais uma opinião de ‘se’, mas de ‘quando' isso vai ocorrer" [...] Não se enganem: quando chegar ao ponto em que o presidente não tiver mais saída e for necessária uma medida enérgica, ele é que será taxado como ditador".
Em meio à pandemia, Bolsonaro endossava aglomerações a favor de seu governo e contra o STF e o Congresso. Em placas, era possível ler: "Supremo é povo", "Abaixo a ditadura do STF", "Fake news não é crime".
Em 2021, em manifestação do 7 de setembro na Praça dos Três Poderes, Bolsonaro disse: "nós não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade [...] a partir de hoje uma nova história começa a ser escrita aqui no Brasil" – vale lembrar que em fevereiro daquele ano, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, havia sido preso o deputado bolsonarista Daniel Silveira por ataques e acusações sem prova contra ministros do Supremo em publicação de vídeo que circulou nas redes sociais. Silveira era investigado tanto nos inquéritos das fake news como nos dos atos antidemocráticos abertos pelo STF entre 2019 e 2020. Em agosto de 2021, o presidente chegou a pedir o impeachment de Alexandre de Moraes, o que foi rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
Os protestos, que ocorreram em Brasília e em São Paulo, eram contra o Congresso e pediam o fechamento do STF. Em cartazes, era possível ler: "Apoiamos o Bolsonaro"; "Brasil diz não ao comunismo"; "os brasileiros exigem a saída dos juízes da Suprema Corte"; "Sim à liberdade de expressão". Ao longo de 2021, outros apoiadores de Bolsonaro também foram presos por ameaças aos ministros e ele próprio se tornou alvo de inquéritos no STF e no TSE.
Durante a campanha para reeleição em 2022, Bolsonaro manifestou novamente intenção de reformular o STF, com aumento no número de ministros, mudança no tempo de mandato, redução da idade de aposentadoria compulsória e limitação para decisões monocráticas.
Pouco antes das eleições, o ex-deputado de extrema direita Roberto Jefferson e aliado de Bolsonaro não apenas descumpria as ordens relativas à sua prisão domiciliar – incluindo aí a publicação de ofensas à ministra Carmem Lúcia – como respondeu à ação da PF para uma nova detenção decidida pelo STF com tiros de fuzil e granadas.
Em novembro de 2022, os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso foram hostilizados por bolsonaristas em Nova York – onde estavam por ocasião de uma conferência. Em dezembro, após a derrota nas urnas, bolsonaristas acamparam em frente as bases do exército em todo país pressionando por um golpe à democracia.
Em 2023, no ato que ocorreu em 8 de janeiro, a Praça dos Três Poderes foi tomada por uma turba de bolsonaristas. Em vídeos que viralizaram na internet mostrando a destruição dos prédios públicos e a intenção de um golpe de Estado é possível ouvir os seguintes brados: "Vamos para guerra, é guerra", "agora vamos pegar o Xandão", em referência ao ministro Alexandre de Moraes – principal alvo de Bolsonaro no STF.
Também em janeiro, Barroso foi hostilizado por extremistas em Miami. Em junho, por decisão do TSE, Bolsonaro se tornou inelegível por 8 anos, contados a partir das eleições de 2022, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação em reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada.
Em julho, Moraes e sua família sofreram ataques em Roma.
Em 2024, às vésperas do aniversário de proclamação da República, um homem ligado à extrema direita, detona um carro carregado de explosivos próximo a Câmara dos Deputados e implode a si próprio diante o prédio do STF.
Ao comentar o fato, Moraes afirmou: "não é um fato isolado do contexto [...] Mas o contexto se iniciou lá atrás, quando o 'gabinete' do ódio começou a destilar discurso de ódio contra as instituições, contra o STF, principalmente contra a autonomia do Judiciário."
Poucos dias depois, em 19 de novembro, ganha as páginas dos jornais a existência de uma trama golpista arquitetada em 2022 a fim de manter Bolsonaro no poder. Segundo as investigações da PF, o plano envolvia a execução do presidente eleito Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
Esses são apenas alguns exemplos de como a atuação da extrema direita, insuflada pelo ex-presidente, busca desestabilizar o sistema e subvertê-lo.
Como isso começou?
O descontentamento popular com a corrupção, intensificado pelos casos do Mensalão e, posteriormente, da Lava Jato – frequentemente apresentados pela mídia como a raiz de todos os males da nação – combinado com uma economia em estagnação, não apenas ampliou as críticas à esquerda, mas também fomentou o surgimento de movimentos apartidários. Esses movimentos, rapidamente cooptados por interesses específicos, contribuíram para pavimentar o caminho que levou à ascensão ao poder do ex-militar, até então um desprezado deputado do baixo clero.
Conforme afirma Cláudio Couto (2023, p. 5):
"[...] a perda de dinamismo da economia durante os anos de Dilma Rousseff também foi um fator crucial para o debacle petista, aguçando a insatisfação popular e motivando a ida massiva às ruas a partir de junho de 2013. Comandados por jovens de esquerda do Movimento Passe Livre (MPL), protestos contra o custo dos transportes rapidamente deram espaço a manifestações multitudinárias sem foco definido, em que se protestava basicamente contra tudo, da corrupção à qualidade dos serviços públicos e à realização da Copa do Mundo no Brasil, bem como contra o sistema político estabelecido – com especial atenção aos partidos políticos. Repetiam-se situações em que, diante da aparição de militantes partidários nas marchas, portando suas bandeiras e emblemas, populares bradavam: 'Sem partido!' 'Abaixa a bandeira'!
Notável naquele movimento foi a presença de grandes faixas amarelas em que se proclamava: 'Meu partido é meu país'. Em pouco tempo, elas deram lugar a camisetas, igualmente amarelas, com a consigna levemente alterada: ‘Meu partido é o Brasil’. Essa indumentária celebrizou-se ao ser envergada em aparições públicas por Jair Bolsonaro e seus filhos. O rechaço aos partidos políticos, seja por brados, seja por letreiros, deslindava o animus daquelas jornadas: contra o sistema político e suas instituições, como se uma nação mobilizada espontaneamente se bastasse a si mesma e fosse mais autêntica, dispensando estruturas organizacionais hierárquicas e oligarquizadas como soem ser as representativas, partidárias e sindicais. Esse paradoxal ativismo político antipolítico de negação da política profissional e seu principal instrumento (os partidos), bem como das mediações institucionais da democracia liberal, abria espaço para o avanço do populismo. Associado ao antipetismo e marcado pelo conservadorismo (senão reacionarismo), esse ativismo oferecia terreno fértil para o populismo de extrema direita."
Sobre a atuação de Bolsonaro no governo, Cláudio Couto (2023, p.10) ainda explica:
"Como outros líderes nacionais de perfil similar no período recente, Bolsonaro não atuou declaradamente para romper a estrutura institucional democrática, o que poderia fazer por meio de um autogolpe ou da decretação de um Estado de Sítio ou de Emergência que escalasse mais rapidamente rumo à implantação de uma autocracia plena ou um regime iliberal. Em vez disso, agiu de modo a estressar continuamente a estrutura de freios e contrapesos, desgastando outros atores institucionais, convertendo-os em inimigos políticos e produzindo um processo continuado de deslegitimação. Assim, tornou cada vez mais alto o custo de lhe impor freios e impedir ações suas voltadas ao desrespeito da institucionalidade democrática – mesmo quando perpetradas em nome de uma suposta defesa da ordem constitucional, ou, na peculiar linguagem política bolsonaresca, dentro das “quatro linhas da Constituição."
Nesse cenário, o que acontece com o jogo político e o movimento de resistência contra os ataques ao sistema?
"As reiteradas transgressões dos limites constitucionais, a tentativa de invadir competências alheias, a abdicação do papel coordenador da presidência em sua relação com o Congresso, as omissões repetidas quanto a atribuições governamentais, o assédio institucional e o desmantelamento da burocracia pública vão tornando caóticas as relações políticas. Tais violações fazem com que o sistema de justiça seja chamado a agir numa frequência e numa intensidade extraordinárias. Caso não fizesse, permitiria que se dessem as condições para uma concentração de poder excessiva nas mãos do Executivo, que por si mesma já seria uma nova disfunção, bastante danosa ao funcionamento da democracia, senão capaz de a destruir definitivamente. Porém, ao atuar como essa força de contenção, os atores judiciais caem numa armadilha circular: precisam agir mais porque mais provocados; ao agir mais, são acusados de invadir competências alheias; isso os leva a terem de se defender, o que suscita novas acusações de excessos judiciais e de parcialidade, numa espiral de radicalização."
Eis aí o quadro que se apresenta nos dias de hoje.
É verdade que a caminhada proposta por Ulysses Guimarães – que é a caminhada da própria democracia – teve seus momentos de tensão e distensão.
Em quase 40 anos de exercício, dois movimentos de impeachment já colocaram à prova a saúde do regime. Inicialmente com Fernando Collor, o primeiro presidente eleito por voto direto na redemocratização. O outro, com a inédita mulher eleita para a presidência, Dilma Roussef, logo no início de seu segundo mandato.
Em ambos os casos – desenvolvidos por acusação de crime de responsabilidade – o respeito aos procedimentos devidos foi o diferencial para o pronto restabelecimento do ritmo democrático. Os atores políticos discordaram? Sim. Divergiram? Sim. Mas tanto em 1992 como em 2016, buscaram nos dispositivos legais seus instrumentos de defesa e aceitaram o resultado do processo instituído. Ou seja, souberam perder.
Para os que agora buscam o descaminho é sempre bom lembrar que a movimentação política tem regras – escritas como o povo e para o povo.
E sobre esse copilado chamado Constituição insta-se uma vez mais: Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Como se vê, as instituições democráticas cumprirão o seu papel. E resistirão.
Oxalá!
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Referências
COUTO, Cláudio Gonçalves. O Brasil de Bolsonaro: uma democracia sob estresse. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, FGV EAESP, v. 28, p. 1-13, 2023.
DE OLIVEIRA, Fabiana Luci. Judiciário e política no Brasil contemporâneo: um retrato do Supremo Tribunal Federal a partir da cobertura do jornal Folha de S. Paulo. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 60, n. 4, p. 937-975, 2017.
VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Supremocracia e infralegalismo autoritário. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 591-605, 2022.