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Vamos escrever um conto juntos?

O texto explora o processo criativo na escrita de contos, destacando a observação cotidiana e o esforço como ingredientes essenciais.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Atualizado em 26 de dezembro de 2024 14:30

Eu gosto de escrever contos, especialidade de alguns dos grandes nomes da literatura universal, entre nós com eterno destaque para o Machadinho. Você sabe quem é ele, não? Mais conhecido como Machado de Assis. Quem não leu seus contos, que leia, é mandatório. Um dos meus preferidos é o da Missa do Galo: Dois personagens em um diálogo amorfo na exterioridade, mas cheio de sentido no coração de cada um. Algumas pausas silenciosas diziam mais do que o discurso dos dois falantes. Mas tudo o que foi importante que se dissesse entre Nogueira e Conceição foi dito e entendido sem que nada a seu respeito tivesse sido abertamente exprimido.

Os contos podem trafegar livremente pelos gêneros da comédia, do romance, da tragédia ou de uma mistura delas, valendo a nossa criatividade. Podem se ater à realidade, à história ou à ficção. E eles dão a sua mensagem de forma rápida e direta, muito mais eficientemente do que a novela da Toutinegra do Moinho, romance de mais de quinhentas páginas, escrita pelo autor francês Emile de Richebourg, passada na cidade de Auteuill em 1864, que eu contava para a minha avó em doses homeopáticas, quando adolescente, no tempo em que passava as minhas férias no Rio de Janeiro.

Veja, caro leitor, aqui o convido para uma aventura na área dos contos, em relação ao qual a inspiração é muito importante, aquele toque mágico que traz à sua cabeça um tema e desde logo o seu conteúdo e sua forma. Mas se os escritores dependessem dela todas as vezes, poderiam atravessar um deserto extremamente seco e muito extenso durante séculos, sem encontrar um oásis refrescante e produtivo. Na verdade, capacidade de observação, tenacidade e esforço são ingredientes fundamentais para o sucesso de um escritor, cabendo ao dom ou talento um lugar relevante, ainda que sozinho a nada leve.

Com a palavra os personagens, mas antes, vamos verificar os fatos que poderão ser utilizados para a construção do conto, conforme o convite feito pelos nossos observadores, que serão os seus autores.

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- Preste atenção nas circunstâncias ao seu lado, disse o primeiro, e procure ver um bom conto, que pode ser criado a partir delas. Olhe, o tempo está quente e nuvens escuras prenunciam forte chuva. Um casal dentro de um carro está deixando o estacionamento desse shopping. Vamos desde logo chamá-los de Amílcar e de Sofia, percebendo que estão procurando devagar e com calma uma brecha na confusão do trânsito que se apresenta, para chegar até a rua. E então, companheiro, o que você vê que possa servir para a criação da nossa pretendido história?

- Nada, disse o outro, apenas tenho diante de mim um grande congestionamento e pessoas passando apressadas, correndo para lá e para cá. Eu não sei que história tirar daí. Vejo isso acontecer todos os dias.

- Aí é que está. Talvez você esteja insensível para as aventuras que podem ser construídas sobre as situações pelas quais passam os circunstantes no nosso dia a dia. Mas vamos elaborar a partir disso uma narrativa, que espero que o sensibilize e faça com que possa despertar para os contos que estão diariamente ao nosso lado e mesmo dentro de nós. Então, vamos ver o que fazem Sofia e Amílcar.

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Com Amílcar ao volante, Sofia teve sua atenção despertada para três meninos que faziam malabarismos com bolas de tênis, junto ao farol, buscando chamar a atenção dos motoristas, a fim de pedir alguma ajuda. Em seguida, Sofia avistou dois outros meninos sentados, encostados na mureta do lado de fora do shopping, que conversavam animadamente. Um deles, um adolescente com seus 14 ou 15 anos e o outro, pequeno, com talvez oito ou nove anos. O que chamou a atenção de Sofia foi que este tinha em um dos pés uma meia e no outro não. E que estava descalço.

Isto compungiu o coração de Sofia, que pediu a Amílcar para parar o carro, de maneira a que ela pudesse descer e falar com aquelas crianças.

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- Amílcar, pare, disse Sofia. Veja essas crianças, quero falar com elas.

- Falar o que, perguntou Amílcar? Não dá para parar aqui. Não tem onde estacionar. Sobre o que você quer falar com eles?

- Não sei, disse Sofia, pois nem ela sabia, mas queria chegar até os meninos.
Impedidos de estacionar o carro, e incomodados por enervantes sons de buzinas e de reclamações atrás deles, tiveram de seguir adiante.

- Amílcar, nós poderemos voltar amanhã para vermos se os encontramos novamente, deixando o carro no estacionamento.

- Sim, concordou ele. E assim foram embora.

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- Amigo, você que é um candidato a contista, o que lhe ocorre na sequência do que está vendo? Faça um esboço.

- Tudo pode acontecer. Não sei se eles voltarão para cá amanhã.

- Pode ter certeza de que voltarão. Sofia está bem determinada. Ela não desistirá do seu intento e o conto seguirá adiante.

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No dia seguinte, Amílcar e Sofia voltaram ao mesmo local. O desejo no coração de Sofia de rever os meninos continuava forte e logo na entrada do estacionamento ela gritou:

- Veja, Amílcar, há um grupo de crianças fazendo malabarismos com as bolinhas e vejo outras crianças menores sentadas nas muretas da calçada do shopping. Acho que estão tomando conta das suas mochilas e das sacolas de plástico com as doações que eles e seus colegas devem ter ganhado.

Sofia desceu imediatamente do carro, enquanto Amílcar foi guardá-lo, tendo ela corrido ao encontro das crianças, apresentando-se a elas.

- Posso falar com vocês? Não se preocupem, não sou assistente social, apenas vi vocês e gostaria de conversar. Vocês vêm aqui todos os dias?

- Não, disse um deles. A gente vêm aqui nos sábados, às vezes nos domingos e nos feriados para tentar ganhar algum dinheiro e ajudar em casa.

- Eu percebi ontem que um de vocês estava com um só pé de meia e o outro pédescalço. Quem era ele?

- Ah, era o Dandan, ele é meio maluquinho. Não veio hoje.

- E ele não tem o que calçar, perguntou Sofia?

- Ele tem sim, mas estava com um pé machucado. O tênis dele estava guardado na mochila.

- E vocês estão com fome?

- Sim, disseram.

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Amílcar tinha chegado e Sofia lhe pediu que fosse comprar algumas coisas para eles em uma lanchonete ali perto, o que foi feito. Enquanto Amílcar se ausentara, Sofia continuou sua conversa com os meninos.

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- E vocês estão precisando de alguma coisa? Me digam.

- Sim, estamos, tendo cada um relacionado alguns itens escolares. O Luizinho disse que precisava somente de um caderno porque o seu havia ficado molhado na chuva, tendo dito que já havia lido todo o livrinho enquanto conversavam, perguntando se podia ficar com o maior e dar o outro para o Dandan.

Aproximando-se de Sofia, deu-lhe um abraço apertado, ingênuo, inesperado, como um agradecimento. Um abraço vindo do céu, que calou profundamente no coração de Sofia.

- Eu me chamo Luiz Henrique. Já fiz dez anos e estou no quarto ano. Já sei ler tudo.

Aproveitando a oportunidade, Sofia deu a ele dois livrinhos de história da Bíblia para crianças, com ilustrações, que tinha levado consigo. Luizinho logo começou a ler e disse aos demais:

- Vejam, aqui tem dinossauros! Eles realmente existiram!

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Então as outras crianças se aproximaram para ver o livro e a conversa continuou. Amílcar havia observado que eles não estavam maltrapilhos, e um deles vestia um casaco de agasalho de um dos times de futebol da cidade, em bom estado de conservação.

Para resumir a conversa de Sofia e Amílcar com as crianças, ficamos sabendo que, de todos eles, somente um não estava indo à escola. O faltante disse que iria retornar às aulas. Todos precisavam de algum material escolar. Moravam com as suas famílias em um bairro distante e aos sábados e em feriados faziam ponto naquele farol, que demorava bastante tempo fechado, dando condições para fazerem os seus malabarismos e passarem entre os carros depois para recolher o dinheiro dos motoristas que aceitavam dá-lo. Não era muita coisa, mas servia para ajudar um pouco em casa. Pelo menos eles sempre conseguiam alguma coisa para comer.

Combinaram que se encontrariam outra vez no próximo sábado e iriam tomar o lanche no parque situado ali perto, quando trariam para os meninos o que eles haviam pedido.

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- Crianças, disse Sofia, vamos combinar umas coisas. Nós compraremos o que vocês precisam e traremos aqui no sábado da semana que vem e conversaremos um pouco mais. E poderemos aproveitar e irmos todos fazer um lanche no Parque da Água Branca, aqui perto.

- Isso mesmo, disse Amílcar, mas terá de ser por volta de umas quatro da tarde porque logo escurecerá e não dará para ficar muito tempo no parque.

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- Colega, que faremos agora com o nosso conto, perguntou o primeiro dos nossos pré-personagens ao seu amigo?

- Há pelo menos duas possibilidades que eu chamaria de naturais, respondeu o segundo. Sofia conversará com eles um pouco mais na próxima oportunidade, os quais falarão um pouco de si mesmos, de suas famílias e das suas dificuldades. Então Amílcar e Sofia prometerão vê-los mais vezes e ajudá-los como puderem. E assim acontecerá durante algum tempo, até que alguma circunstância mude esse quadro, achando eu que ele não será estável. A outra possibilidade estará em que o casal consiga alguma ajuda institucional e crie algum programa mais duradouro para ajudar as crianças.

- Bravo, meu amigo! Vamos lá!

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Tendo sido feita a combinação entre Amílcar, Sofia e as crianças, aqueles foram embora conversando no caminho sobre os acontecimentos. Tendo comentado sobre o assunto com um grupo de amigos, fizeram uma vaquinha e compraram 12 mochilas, nas quais colocaram material escolar e mais uma Bíblia infantil ilustrada. Mas Amílcar tinha algumas dúvidas.

- Sofia, precisamos ser mais práticos. Acho que dar o que eles precisam e o lanche no sábado é uma atitude muito boa e correta, mas isso não terá futuro. Lembre-se de que raramente passamos o sábado em São Paulo, o único dia em que podemos encontrá-los.

- Sei disso, disse ela. Precisamos pensar em alguma coisa mais duradoura. Conseguir um local permanente aqui perto para nos reunirmos mais adequadamente com eles e da ajuda de outras pessoas. Poderia ser em uma igreja ou em uma entidade social. É necessário que os conheçamos melhor quanto às suas famílias e em um horizonte melhor que elas possam ter.

- Sem dúvida, Sofia, você está pensando grande, mas devo lembrar que por enquanto só tivemos contato pessoal com eles hoje, tirando a semana passada em que apenas os vimos de longe.

- Eu sei, Amílcar, mas nós não poderemos ficar impassíveis e deixarem as coisas continuarem correndo nesse rumo infeliz para elas. É uma vida da qual elas somente podem sair com uma interferência externa. Vamos pensar em alguma coisa.

- Tem de ser aqui perto, onde eles costumam chegar. Lembre-se, Sofia, que eles vêm para cá de ônibus, não sei com que dinheiro e seria difícil irem para outro lugar.

- Amílcar, você sempre mostra o seu lado pessimista.

- Não é pessimista, apenas estou mostrando uma realidade.

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- É isso mesmo, disse o segundo coautor. Isso não tem saída. Na semana que vem eles se encontrarão e não haverá sequência na história. Ela morrerá por si mesma.

- Você é pessimista como o Amílcar. Vamos dar tempo ao tempo. Tenho certeza de que Sofia não ficará inerte. Faz parte da natureza dela.

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No sábado da semana seguinte, no mesmo horário, aquele casal fez o que havia sido combinado e agora estavam saindo do shopping em direção à calçada, para encontrar as crianças. Mas não havia qualquer delas no local. No lugar delas havia um grupo de adultos, homens e mulheres, fazendo malabarismos e colocando pacotes de balas nos espelhos retrovisores dos automóveis. Olhando para aquela cena, Amílcar e Sofia ficaram surpresos, consternados e ao mesmo tempo indignados.

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- Não tem ninguém, disse Amílcar.

- Não mesmo, respondeu Sofia. Acho que aqueles marmanjos os assustaram e espantaram. Isso não se faz!

- Concordo. Vai ver que eles mudaram de ponto. Vamos dar uma olhada nos faróis próximos.

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- Então, caro coautor, o jogo está sendo jogado, mas as coisas não estão andando como Sofia e Amílcar haviam esperado. Como acha que ele deverá prosseguir?

- Dependerá de muitas circunstâncias, especialmente das iniciativas do casal, um pouco limitadas, segundo percebo. Daí que o nosso conto fica agora em um impasse.

- Você tem razão em parte, mas não acho que as possibilidades diante do andamento do nosso conto sejam tão restritas. Será que poderá acontecer mais alguma coisa entre eles que possa dar seguimento à trama? Acho que muito depende de Sofia, que é mais atirada, enquanto Amílcar é mais realista, digamos assim.

- Você me convidou para escrever esse conto e, para mim, desde o início, os fatores adversos aos desejos de Amílcar e de Sofia pareciam negativos e agora eles estão sem saída. Os dois sempre estiveram em uma situação adversa, fatídica, diria eu. Não sou tãoletrado como você mas me lembrei de um conto de Guy de Maupassant, chamado de "Bola de Sebo".

- Eu conheço sim, redarguiu o outro.

- Lembremo-nos rapidamente do enredo. A heroína da história, que recebeu aquele apelido porque era muito gorda, se viu em uma situação que somente poderia redundar em um único final.

- Isso mesmo! Ela era uma prostituta que tomara uma carruagem para fugir dos inimigos do seu país que avançavam rapidamente, a mesma carruagem em que se acomodaram outros passageiros, nobres ilustres.

- Para mim, nem nobres nem ilustres eles eram. Veja que "Bola de Sebo" era a única dos passageiros que trouxera alguma comida e a ofereceu aos seus companheiros de viagem, que não se fizeram de rogados, mesmo que a desprezassem. E sua nobreza foi posta em cheque quando a carruagem foi parada em um posto da fronteira e o capitão do destacamento, vendo de quem se tratava, disse que todos poderiam seguir com vida, desde que uma condição fosse aceita: A de que ele passasse uma hora, apenas uma hora, com Bola de Neve em um quarto da estalagem local.

- É, bem me recordo do conto. Ela não tinha como deixar de aceitar o "convite" do capitão e, quando retornou à carruagem, que seguiu o seu caminho, foi ainda mais desprezada, não considerando os demais passageiros que deviam a sua vida a ela.

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O que o segundo dos nossos autores estava desejando dizer é que a partir do momento em que o autor colocou Bola de Sebo naquela carruagem, os fatos estavam determinados, tal como aconteceram, sem possibilidade de mudança no conto de Maupassant. Isso servia como comparação ao sucedido com Sofia, Amílcar e as crianças. Amílcar se havia apercebido disto.

Nosso primeiro autor tem toda a razão. Quando criamos um personagem forte, frequentemente eles saem do controle do autor e adquirem vida própria, tomando caminhos e atitudes que o seu criador não imaginava para eles. É sabido que AgathaChristie, a partir de um dado momento, passou a detestar Hercule Poirot, mas ficou escravizada a ele por décadas. E no cinema alguns atores encarnam certos personagens que os perseguem por muito tempo. E nem o recurso de matá-los adiantava, porque os seus criadores eram obrigados a ressuscitá-los por imposição dos fãs. Muitas vezes tal retorno à vida se revelava verdadeiramente ridículo. Mas tudo indicava que Sofia e Amílcar estavam diante de uma imutabilidade.

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- Amílcar, disse Sofia, vamos providenciar o que as crianças pediram. No sábado vindouro faremos o lanche combinado com elas, entregamos os presentes e conversamos um pouco mais para as conhecermos melhor e resolveremos os próximos passos.

- Penso, disse Amílcar, que poderíamos comprar mochilas escolares, estojos com canetas, lápis, borracha, apontador e mais alguma coisa de que possamos nos lembrar. Vamos comprar uma dúzia, por enquanto, e veremos quantas crianças aparecem. E também veremos o que será necessário para o lanche.

- E colocaremos em cada mochila uma Bíblia para crianças.

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Dito e feito. E tendo conversado com amigos sobre os seus planos, foi feita uma vaquinha entre eles, tendo tudo sido adquirido rapidamente pela internet. E chegou então o sábado, tendo o nosso casal seguido para o lugar do encontro. Mas, desta vez não havia qualquer criança, nem sinal delas. Amílcar e Sofia circularam pelas proximidades, mas não viram ninguém. No farol onde as crianças faziam os seus malabarismos havia agora adultos, ocupando o lugar daquelas.

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- Amílcar, deve ser por causa dessas pessoas aqui que as crianças não estão. Acho que elas foram espantadas. Estou com muita raiva, disse Sofia.

- Sofia, não se pode fazer nada, a rua não tem dono e não sabemos o que aconteceu. Elas podem ter migrado para outro farol.

- Então vamos dar umas voltas pelo bairro e veremos se as encontramos. Mas isso não se faz. Tiraram o dinheirinho das crianças e nós não estamos podendo ajudá-las.

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Foram dadas voltas no bairro naquele dia e nos dias e semanas subsequentes e jamais as crianças foram vistas outra vez, tendo Amílcar e Sofia ficado muito frustrados e tristes, especialmente esta, que vira um sonho desvanecer-se.

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- Eu sabia, disse o segundo pretendido autor. Eu sabia que não ia dar em nada. Perdemos o nosso tempo procurando inutilmente escrever um conto.

- Sabe o que aconteceu, o que é frequente na vida dos escritores? A realidade externa, dura e fria se fez sentir e a realidade paralela que Sofia e que Amílcar haviam imaginado desenvolver não se concretizou. Esse mundo paralelo era quase um mito. Em termos estatísticos, era muito difícil que acontecesse, pois as mudanças dependiam de muitos fatores não realizados. Mas colega, você está muito enganado. O conto está escrito. O que acontece é que o contista não deve confundir o conto escrito com o resultado que ele esperava elaborar.

- Mas o escritor não tem direito de criar essa outra realidade? Ele é um escravo?

- Sim, nós poderíamos perfeitamente ter feito isso, mudando os fatos daquele fatídico sábado e seguir adiante costurando os planos de Sofia e de Amílcar. Mas de um conto realístico, fundado em mudanças radicais necessárias, teríamos passado para o plano da ficção e essa, no tocante ao tema do nosso conto, esvaziaria a mensagem que surgiu ao longo dessas linhas.

- E que verdade é essa?

- Que, em primeiro lugar, notamos o vácuo provocado pelo Estado no cuidado das crianças e dos adolescentes nas esquinas onde pedem dinheiro. É nas creches e escolas de tempo integral que deveriam passar manhã e tarde e não abandonados nas ruas. Deveriam ser direcionados para uma vida produtiva e não a de miseráveis, favorecidos pelo pão amargo e pelo circo que o Estado às vezes lhes dá. Seus pais deveriam ser levados a se tornarem agentes produtivos, adquirindo a dignidade do sustento próprio e de suas famílias, e não eternos dependentes de quem deles apenas deseja, verdadeiramente no fundo, o voto que perpetua o patrimonialismo.

- E ficamos por aqui, com os Amílcar e Sofia desenganados?

- Infelizmente. Mas temos um conto, sim, escrito em camadas, como as cascas de uma cebola. A primeira camada é o nosso narrador. A segunda somos nós, os observadores, que damos voz aos personagens. A terceira são estes mesmos, na sua imensa diversidade. Passando por essas camadas, temos o núcleo da nossa história.

- Veja, passaram-se muitos dias desde que o casal viu pela primeira vez aquelas crianças. Está bem, temos um conto sem final feliz. E já estamos no final deste ano. Como chamaremos este conto?

- "O Natal que não veio". Mas gostaria de saber o que aconteceu àqueles meninos, especialmente o Dandan e Luiz.

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*Com a colaboração de Maria Regina Corrêa Verçosa

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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