Caso do vapor Júpiter fixou competência do STF para atos Federais
Após HCs impetrados por Ruy Barbosa, STF afirmou sua competência para controlar atos Federais, estabelecendo precedente que refletiu a independência do Judiciário na República.
Da Redação
terça-feira, 19 de novembro de 2024
Atualizado em 26 de novembro de 2024 12:54
Dando continuidade à série especial que aborda as tensões políticas em torno do STF, destaca-se o caso do navio mercante a vapor Júpiter, num dos primeiros episódios controversos a mobilizar a Corte logo após a Proclamação da República, ganhando ampla notoriedade nas páginas dos jornais da época.
O vice-presidente Floriano Peixoto continuou empregando medidas autoritárias e permaneceu na chefia do Estado em vez de marcar novas eleições. As manifestações contrárias a ele eram coibidas e punidas com ordem de prisão.
A marinha - que também reclamava maior participação no poder - passou a se levantar contra o governo, exigindo o cumprimento das regras constitucionais. Esta ficou conhecida como a Segunda Revolta da Armada (1893).
Floriano estabeleceu estado de sítio em 13/9/1893, determinando o fechamento do Congresso e exterminando garantias individuais. Com a ajuda dos EUA, Floriano conseguiu conter os opositores e se manteve no poder até 1894.
No entanto, o Direito Constitucional Brasileiro se sobressaiu, tendo como protagonista o então advogado Ruy Barbosa.
Em meio ao agitado mar de revoltas do período, o navio Júpiter foi apoderado e transformado em navio de guerra por um grupo de revolucionários militares, entre os quais o foragido almirante e senador Eduardo Wandenkolk.
O objetivo era uma viagem em sentido contrário ao governo, com destino à capital do país, Rio de Janeiro. No entanto, sob as ordens de Floriano, o Júpiter foi interceptado em Santa Catarina pelo navio de guerra República. Os 48 tripulantes - militares, reformados, estrangeiros e civis - foram presos.
Os detalhes dessa história podem ser recuperados em notícias publicadas nos jornais, a exemplo da matéria "Aprisionamento do Júpiter", do jornal O Estado de S. Paulo e a matéria "Rio Grande do Sul", do Diário de Notícias.
HC 406
Ruy Barbosa impetra, então, novos pedidos de habeas corpus.
O primeiro deles, HC 406, foi protocolado em 2/8/1893. Os jornais também noticiaram esse pedido, que foi objeto de manifestação da opinião pública.
No remédio constitucional, Ruy desenvolveu argumentos contra a prisão sobre três pilares:
- Ausência de nota de culpa, já que os presos não foram sequer informados sobre os delitos que os colocaram em prisão ou desterro;
- Excesso de prazo, por conta do extrapolamento do tempo previsto para apresentação de tal notificação; e
- Incompetência da autoridade de comando de prisão, já que os pacientes deveriam ter sido apresentados para apreciação e ordenamento de juiz. Estavam à disposição de militares, por motivos políticos, mas o código da armada não podia ser aplicado a civis e estrangeiros.
No dia seguinte foi publicada matéria do vice-presidente enviada ao senado sobre a prisão do almirante Wandenkolk.
Em defesa de seus atos, Floriano afirmava que o almirante reformado foi "preso em flagrante crime militar inaffiançavel, juntamente com os autores delinquentes a bordo do paquete nacional Jupiter [...] pelo cruzador Republica, que havia partido d'esta capital, com ordem expressa de perseguir e capturar o dito paquete".
Descrita a ordem dos fatos que culminaram na prisão, as explicações do feito vieram em seguida.
"Considerando:
Que, segundo a legislação e jurisprudencia patria, os officiaes reformados assim como gozam das honras e privilegios concedidos pelas leis militares, continuam sujeitos á observancia de seus preceitos e a ser considerados como cidadãos - ao serviço militar, - por isso que essas leis impõem serviços e obrigações aos reformados;
Que a Constituição da Republica no art. 77 não distingue para os seus effeitos os militares em serviço activo dos reformados; nem dos crimes militares politicos dos não politicos;
Que o codigo penal da armada, declarando sujeita ás suas disposições todo o individuo ao serviço da marinha de guerra, não exclue militar reformado nem qualquer outro que não estiver em serviço activo, porquanto sempre que é seu pensamento só comprehender o que estiver em actividade, expressamente o declara, como se vê dos arts. 176, 180 e outros;
Que entre as infracções do mesmo codigo em que está indiciado o almirante Wandenkolk, se inclue a do art. 80, que constitue crime militar, ainda que o delinquente não seja militar; a qual se estava consummada em relação ás praças de marinha alliciadas no Rio Grande, não se póde affirmar que não continuasse em relação ás que aprisionou e recolheu ao navio, cujo commando assumio:
Que embora, pela relação de meio affirmo a essas diversas infrações somente seja applicável a mais grave das penas em que haja incorrido o delinquente é certo que excede dos limites da fiança a penalidade maxima comminada nos arts do codigo penal da armada, em que estão qualificados os actos do dito almirante arts. 80, 87, 90 e 108, abstrahindo mesmo dos outros crimes connexos com os militares.
Entendi que me cumpria a prisão, attentas ás circunstancias já expostas, em que foi effectuada, parecendo-me que encontrado no commando do mesmo paquete armado em guerra com a insignia de almirarnte, cheio de petrechos bellicos e de gente armada, em prosseguimento do plano delictuoso, aliás publico e notorio antes do ataque á cidade do Rio Grande pelo manifesto publicado na propria imprensa d'esta capital (Jorna do Commercio de 10 de junho), o almirante Wandenkolk foi regulamente preso em flagrante delito militar e inaffiançavel, como podem e devem ser todos os militares que se levantam contra as leis e autoridades constituidas e são econtrados com as armas na mão. [...]"
E, na mesma folha, em coluna ao lado, sob o título "Supremo Tribunal Federal", estava a notícia "Habeas Corpus", dando conta de que na data anterior entrara em julgamento a petição de HC 406, tendo como impetrante o ilustrado sr. dr. Ruy Barbosa.
Consta que o advogado "pronunciou um brilhante discurso, defendendo a petição" e que fora, naquela ocasião, "estabelecida a competencia do tribunal para julgar o assumpto".
O desfecho foi que pela primeira vez o STF admitiu o controle de constitucionalidade dos atos Federais, em correta interpretação ao art. 59 da Constituição de 1891, e determinou ao governo, em 9/8/1893, a apresentação dos presos para julgamento.
Por maioria de votos, o entendimento foi o de que as prisões eram ilegais, já que as acusações não caracterizavam crimes sujeitos ao foro militar.
- Veja o acórdão.
Insatisfação
Mas, como se pode imaginar, nem todos ficaram felizes com a decisão.
Representando o governo, o ministro de guerra enviou ao STF ofício que embora com data do dia 10, foi entregue à secretaria do STF apenas no dia 12. Os jornais publicaram o conteúdo do ofício no dia 13, antes mesmo da Corte ter conhecimento oficial.
Nele, havia uma crítica a respeito do acórdão que proferira habeas corpus aos paisanos presos no Júpiter.
"Ministerio dos negocios da guerra. - Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1893.
Sr. presidente do Supremo Tribunal Federal. - O sr. presidente da Republica, a quem apresentei o vosso officio de 9 do corrente, acompanhado da cópia do accordão da mesma data, pelo qual o Supremo Tribunal Federal concedeu a soltura dos paizanos aprisionados a bordo do JUPITER, resolveu mandar immediatamente soltal-os.
Entendeu assim dar mais uma prova de consideração ao orgão superior da Justiça Federal. Lamenta, porém, que sua decisão não fosse fundamentada, apezar de envolver graves questões de ordem publica e de surprehendente impugnação das leis applicaveis.
Respeita os motivos pelos quaes a sentença se limitou a declarar 'illegal a conservação de prisão em que se achavam os pacientes, desde que se verificava pelos autos e informações que os factos que lhes são imputados não constituem crimes que os sujeitem ao fôro militar.
Ficou, porém, na ignorancia da razão por que, não tendo o Supremo Tribunal reconhecido a illegalidade da prisão, preferio ordenar a soltura dos presos a designar o juiz a quem deveriam ser remetidos. Nada diria sobre o silencio guardado pela sentença a respeito dos factos e das razões de convição, se d'esse silencio e da conclusão dogmatica não se pudesse inferir que estão revogados o art. 47 do decreto n, 848 de 11 de outubro de 1890 e art. 3º paragrapho unico de 190 do codigo penal da armada, invocados no officio que vos dirigi em data de 8 do corrente.
O sr. vice-presidente da Republica tem a necessidade de declarar que a soltura dos prisioneiro do JUPITER não significava a convição da inconstitucionalidade d'esses decretos, arguida na discussão do HABEAS-CORPUS; mas confirma o empenho manifestado no dito officio - de proceder de ccordo com os outros dous orgãos de soberania nacional no caso extraordinario do JUPITER, em que depõem os tripolantes haverem sido elles e o paquete victimas do assalto que os submetteram ao poder do almirante Eduardo Wandenkolk, ao passo que as circumstancia os revelam co-autores e cumplices dos factos praticados pelo mesmo almirante.
O governo considera em pleno vigor as limitações postas pelo art. 47 do decreto n. 848 ao direito de concessão de HABEAS-CORPUS, e o codigo penal da armada.
O decreto n. 848 e o de n. 949 de 5 de novembro de 1890, que promulgou o codigo penal da armada, foram expedidos e publicados pelo governo provisório da Republica na plenitude de seus poderes. É certo que a execução de ambos foi suspensa, a do primeiro pelo art. 244 do decreto 1030 de 1890, e a do segundo pelo decreto de 4 de fevereiro de 1891, publicado no DIARIO OFFICIAL n. 37 de 7 do mesmo mez, á pagina 518.
Ambos foram postos em execução depois de promulgada a Constituição da Republica, um pelo decreto de 26 de Fevereiro, outro pelo decreto n. 18 de 7 de Março de 1891. Este ultimo fez modificações no codigo penal da armada, que de novo promulgou, mas autorisadas pelo decreto de 14 de Fevereiro de 1884, o qual foi publicado no DIARIO OFFICIAL n. 49, de 20 do mesmo mez, e fls 684, e tem força de lei por ter sido expedido pelo governo provisorio da Republica.
Se em virtude do art. 83 da Constituição e attibruições legislativas por ella conferidas ao Congresso, estivessem revogados os decretos n. 848 de 1890, n. 1 de 1891 e os de 14 de Fevereiro e de 7 de Março de 1891, estaria também revogada a maior parte da legislação por que se rege a Republica.
O código penal da armada tem sido applicado pelos conselhos de guerra e Supremo Conselho Militar, sem contestação da sua constitucionalidade, desde que foi publicada a ordem do dia do quartel-general da armada de 9 de Junho de 1891.
No projecto approvado pelo senado sobre revisão de processos militares é invocado o art. 53 do codigo da armada, que, assim como o codigo penal commum, está sendo revisto por comissão nomeada pela camara dos deputados.
O governo não póde, pois, deixar de manter em vigor esse codigo, e o Supremo Tribunal Federal se dignará de ter em consideração quanto é inconveniente ao serviço público e aos direitos dos cidadãos a incerteza da lei e da legitimidade dos actos das autoridades.
Saude e fraternidade.
- ANTONIO ENÉAS GUSTAVO GALVÃO ".
A posição da Corte sobre o ofício também apareceu no noticiário, mais precisamente nas considerações sobre a sessão do tribunal no dia 16/8.
"Aberta a sessão e lida e a approvada a acta, o sr. presidente Freitas Henriques disse o seguinte: que antes de entrar na ordem dos julgamnetos tinha de apresentar ao Tribunal um officio do ministro de guerra, embora datado de 10 do corrente e trazer a nota de urgente, somente foi entregue na secretaria do Tribunal no dia 12. Por isso não deu conhecimento ao Tribunal de tel-o recebido na referida data e d'ahi a razão pela qual os jornaes o publicaram no dia 13, antes de ter o Tribunal conhecimento official.
Considera os termos desse officio como uma intenção inconcebível de avassalamento do Tribunal no poder executivo e uma manifestação da quebra da harmonia que deve haver entre os poderes executivo e judiciario, não sendo nenhum superior ao outros e ambos igualmente independentes. [...]
Esse aviso provocou um protesto do conselheiro Andrade Pinto, hoje membro do Supremo Tribunal Federal, que apresentou a seguinte moção:
'O Supremo Tribunal de Justiça, por si e como orgão mais elevado do poder judiciario, protesta solemnemente contra o aviso-circular que foi ante-hontem dirigido ao seu presidente pelo ministro da justiça por ser attentatorio da soberania e independencia do mesmo poder, não reconhecendo superioridade no excutivo, de igual categoria política e com separada esphera de attibuições, para receberem deste outro poder, os juizes e tribunaes judiciarios, censuras e ordens sobre o modo por que devem elles exercer as funções de sua exclusiva competencia e com a unica inferioridade de hyerarquia judicial.' [...]
O Governo nos falla de cima para baixo, infligenos censuras, indica qual a jurisprudencia que se deve seguir, declara-nos que cumprio um decreto judicial deste Tribunal sobre habeas-corpus por consideração com o mesmo Tribunal e assim nos reduz à posição de uma corporação ou repartição administrativa sujeita à inspecção senão ao poder disciplinar do Executivo. Pensa, pois, ser inconveniente oppôr ao arrazoado do Governo um outro arrazoado do Tribunal."
Embora o STF tenha ensaiado resposta ao ofício, decidiu que não deliberaria mais a respeito da matéria, fazendo registro em ata da seguinte declaração:
"Não cabendo ao Poder Executivo fixar competência dos tribunaes, dar-llher instruções ou determinar a jurisprudência que devão seguir, a não ser pela forma regulamentar e em virtude de exceção de lei, o Supremo Tribunal Federal resolve não tomar conhecimento da materia do officio que em 10 do corrente lhe foi dirigido pelo ajudante general do exército em nome do Vice Presidente da Republica, visto como o mesmo officio não é compatível com os princípios constitucionaes que devem harmonisar as relações entre o Poder Executivo e o Judiciário - José Hygino."
HC 410
Ruy Barbosa também impetrou o HC 410 em favor de Mário Aurélio da Silveira, remanescente do julgamento anterior por falta de informações.
A arguição repetiu o exposto no HC 406. O julgamento foi realizado em 12/8/1893 e o pedido foi deferido. Ficou estabelecido que o paciente deveria ser apresentado ao Supremo na sessão do dia 16.
Na data, ainda que o governo não tivesse cumprido as exigências da Justiça quanto à prestação de informações e às ordens necessárias para o comparecimento do paciente, o julgamento foi realizado e o acórdão publicado.
Nele, o STF declarou a inconstitucionalidade do Código Penal da Armada, de 7/3/1891, a partir do qual o governo sustentava as razões da prisão.
Tratou-se também de decisão histórica, pois, pela primeira vez, o STF afirmou seu poder de controle da constitucionalidade das leis Federais.
A seguir, um trecho do acórdão em matéria intitulada "Habeas corpus" d'O Estado de S. Paulo.
"E considerando que incumbe aos tribunaes de justiça verificar a realidade das normas que têm de aplicar aos casos occorrentes o negar effeitos jurídicos áqueles que forem incompatíveis com a constituição, por ser esta a lei suprema e fundamental do paiz; Que este dever não só decorre da índole e natureza do poder judiciário, cuja missão cifra-se em declarar o direito vigente, applicável aos casos occorrentes regulamente sujeitos á sua decisão se não também é reconhecido no art 60, lettra A da constituição, que inclui na competência da justiça federal o processo e julgamento das causas em que alguma das partes fundar a acção ou a defesa em disposição constitucional [...] a prisão militar e a incompetência do foro onde o paciente responde constituem constrangimento ilegal [...]; e tem, portanto, cabimento habeas corpus, conforme o preceito do art. 72 paragrafo 23 da constituição, que manda sempre que alguém sofrer ou estiver em iminente perigo de sofrer coação ilegal."
- Veja o acórdão.
Os jornais publicaram, em seguida, a mensagem de Floriano Peixoto ao Senado sobre a prisão do senador Wandenkolk, as questões de Direito que se levantavam de maneira inédita no país e a divergência de entendimento entre o STF e Floriano:
"A singularidade do caso Jupiter e as graves questões de direito que pela primeira vez suscitam-se no paiz, tanto quanto a complexidade dos factos occorridos em terra e mar, dentro e fora do território nacional, e a controvérsia de circunstâncias essenciais a sua classificação, me convenceram de que o concurso das luzes do supremo tribunal federal seria de suma utilidade para a justa solução, mormente á vista dos depoimentos dos tripulantes e do protesto do comandante daquelle paquete, de cuja apreciação, em confronto com as outras provas, dependia o conhecimento de serem elles co-autores ou cúmplices nos actos praticados pelo almirante Wandenkolk, ou vítimas de um acto de pirataria.
[...] O Supremo Tribunal Federal proferiu no dia 9 a sentença que offereço à vossa consideração, e á qual foi dado immediato cumprimento. Ella se limitou a ordenar a soltura dos prisioneiros paisanos, por ser illegal a conservação da prisão em que se achavam, desde que se verifica pelos autos e pelas informações prestadas, que os factos que lhes são imputados não constituem crimes que os sujeitem ao fôro militar.
A ordem da soltura dos paisanos fundou-se exclusivamente na incompetencia do fôro, desde cuja verificação, no alto juizo do Supremo Tribunal, tornou ilegal, não a prisão, mas a conservação nella. Foi implicitamente reconhecida a legitimidade da captura do Jupiter, armado de guerra contra o governo da Republica, sob o commando do almirante Wandenkolk. [...]
Eis, no mais lisonjeiro resumo, os factos que prendem a situação revolucionária que quiz crear o almirante Wandenkolk e seus companheiros, procurando attentar directa e francamente contra o governo da nação.
Detido na fortaleza de Santa Cruz, iniciou-se o processo sob a jurisdicção militar, de que nenhuma razão isenta os autores de taes factos, pelo conselho de investigação que, não obstante julgar-se incompetente para tomar conhecimento da causa, todavia não desconheceu a existencia de um ato político.
Em vista de tal resolução, que não deixou de affectar a questão da jurisdicção militar, a defeza particular levou ao recinto do Supremo Tribunal o pedido de habeas-corpus em favor dos civis que, com co-autores do dito almirante, envolveram-se nos acontecimentos.
E vós, srs. senadores, deveis conhecer, pela troca de officios entre aquelle tribunal e o vice-presidente da Republica, as peripecias da questão e a diversidade de doutrinas em que divergiram os dois poderes. [...]
Por muito que mereçam as opiniões do Supremo Tribunal á Republica, o chefe da nação, como supremo representante de um poder constituído, não pode abdicar da faculdade de também interpretar a lei, faculdade que é implicita á attribuição de executá-la. D'ahi a justificativa do officio de 10, que em seu nome dirigio o ministro da guerra áquelle tribunal.
Não póde também concordar com a affirmativa que não deixou de inspirar o aresto judiciário que o codigo penal da armada não esteja em vigor. E basta um ligeiro histórico para provar o contrario. [...]"
No dia 25, os jornais publicam o parecer das comissões de Justiça e Legislação e de Constituição e de Poderes, do Senado, que "conclue opinando para que a Casa conceda a licença solicitada pelo governo - para que seja devidamente processado o Almirante Wandenkolk"
Em 29 de Agosto, O Paiz publica sobre as divergências de entendimento e opinião no Senado.
"Annunciada a discussão, foi dada a palavra ao Sr. Aquilino do Amaral, anteriormente inscrito.
Começou S. Ex. modestamente dizendo que, se fosse um grande talento, ainda assim seria immensa ousadia de sua parte occupar a tribuna, depois de haver retumbando naquelle augusto recinto o voz do Sr. Ruy Barbosa, que é como uma clava, que fere, que mata, ao mesmo tempo que convence e persuade. [...]
Sentiu pulsar vibrantemtne o seu coração, ouviu-lhe a voz, e veiu erguer bem alto o seu protesto contra o parecer que fere os mais rudimentares e comesinhos princípios de direito, que é falho de ponta a ponta!
E que occorre todas as vezes que não se respeita o direito, a justiça e a lei, porquanto no seio da commissão, composta de homens de reconhecido talento, ha autoridades em jurisprudencia. A materia de que se trata é gravíssima. Não se vai procurar somente saber qual é o crime de que se accusa o Sr. senador Wandenkolk, mais também de se firmar a honra do senado e da própria Republica. [...]
Não acha competencia no Sr. vice-presidencia da Republica, segundo pede na sua mensagem, para solicitar licença afim de que seja processado o Sr. almirante Wandenkolk.
Pede aos seus collegas que abandonem as questões politicas, para tratrarem calmamente com toda a imparcialidade, sem odios, do assumpto que se discute. Elle é facilimo; qualquer principiante no estudo do direito criminal discuti-o-ha com facilidade."
HC 415
No dia 30 de agosto é protocolado, por fim, o HC 415 que tratava de Wandenkolk e outros oficiais reformados.
Ruy Barbosa alegou demora na formação de culpa, imunidade parlamentar no caso do senador e, quanto aos demais, abordou a incompetência do foro militar para julgar o caso, já que eram reformados - e, portanto, deveriam ser encaminhados para a Justiça comum.
O STF realizou o julgamento em 2/9 e indeferiu o pedido.
- Veja o acórdão.
Em 4/9 os jornais publicavam a indignação de parte do Congresso com o resultado no STF.
"O Sr. Seabra diz que não ha 48 horas que mostrava seus receios e suas preocupações em relação ao resultado do habeas-corpus que o eminente sr. Ruy Barbosa ia requerer ao supremo tribunal federal. Não ha 48 horas que via o poder executivo entrar no supremo tribunal federal e impor uma decisão injusta e iniqua.
Estas previsões e esses receios realizaram-se. A intimidação produziu seus effeitos: o supremo tribunal, no dia desgraçado de 2 de setembro de 1893, negou ordem de soltura ao almirante Wandenkolk e aos dois officiaes reformados, presos no navio Jupiter! Que ha mais de esperar das instituições republicanas? [...]
Não ha mais esperanças de salvar a Republica, si é que existe a Republica. Quando o advogado de todos os perseguidos, quando o advogado da lei, e do direito, e da justiça, e da reivindicação dos principios republicanos requereu habeas-corpus em favor em favor dos presos políticos do Jupiter, e esse habeas-corpus foi concedido, parecia que tinha surgido no horizonte da patria uma nova aurora republicana. Os espiritos como que se purificaram, as consciencias se tranquilizaram, porque parecia que o poder judiciario, compenetrando-se do seu dever, do papel que deve representar no mechanismo político da nossa patria, havia querido oppor obstaculos á acção deleteria do poder executivo. [...]
A legalidade é isto que nós vemos. A concessão do habeas-corpus aos presos do Jupiter provocou, por parte do poder executivo, a reprimenda, que nós conhecemos, partida de s. ex. o marechal Floriano Peixoto, uma ordem do dia, porque tal é o aviso que transmitiu pelo quartel-general, uma ordem do dia ás justiças deste paiz, de que emendasse as mãos, porque uma outra ordem de habeas-corpus não seria cumprida.
Mas, a voz do Sr. Glicenio se levanta:
- É uma injuria o que v. ex. está fazendo ao tribunal.
O Sr. SEABRA: - Narro os factos, e si desta ação resultar alguma coisa desagradavel a alguem, assumo a responsabilidade.
O sr. GLYCENO: - Ante-hontem v. ex. disse que chorou de prazer pela hombridade com que procedeu o tribunal; e, pois como hoje duvida dessa hombridade? O tribunal não se curva deante de ordem do dia.
O sr. SEABRA: - Acabou de dizer que todas as esperanças concentradas no tribunal hoje desappareceram.
O sr. GLYCENIO: - É muito respeitável.
O sr. SEABRA:- Seria respeitavel, si respeitasse a lei; respeitavel quando respeita a justiça; respeitavel quando respeita a equidade; maldito quando calca aos pés os seus deveres.
O sr. GLYCENIO: - V. ex. está desrespeitando o poder judiciario; o poder legislativo não pode.
O sr. BRASILIO DOS SANTOS: - O nobre deputado não é o poder legislativo; é um membro da camara; e, neste paiz, todos os depositarios do poder publico estão sujeitos á nossa critica. Desrespeitar é negar cumprimento ás ordens legaes, como fez o sr. Floriano Peixoto. Criticar é direito nosso. [...]
O sr. SEABRA: - Devemos respeitar esta decisão, não nos podemos insurgir contra o julgado, devemos obedecer, obedecemos; mas temos o direito de protestar. Nós obedecemos, mas temos o direito de investigar os motivos que determinaram o julgado. É direito de qualquer cidadão, quanto mais de um representante da nação!"
Visto que esses diálogos se repetem nas páginas dos jornais de hoje, por ocasião de outros conflitos políticos, com quais falas o interessado leitor em casos de direito se identifica? Traria ao debate argumentos diferentes?
A principal lição da história parece estar no fato de que as disputas pelo poder podem ensejar o incremento da Justiça!