Ministro do STF Hermenegildo de Barros fez oposição à ditadura Vargas
Protesto do ministro contra aposentadorias compulsórias de colegas representou um "grito na multidão".
Da Redação
quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Atualizado em 26 de novembro de 2024 12:55
Dando sequência à série de reportagens "STF entre poderes", serão analisadas as repercussões sociais da manifestação pública do então ministro do STF, Hermenegildo de Barros, contra medidas tomadas na primeira fase do governo de Getúlio Vargas.
Ao longo dos quarenta anos da Primeira República (15/11/1889 a 24/10/1930), treze presidentes ocuparam o cargo máximo do país, refletindo crescente clima de instabilidade política. Esse período, iniciado com a queda do Império, culminou na Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.
No início de seu governo, durante o chamado governo provisório, Vargas justificou suas ações sob o argumento de conter o avanço comunista e, com a declaração de estado de exceção, suspendeu a Constituição de 1891 por meio do decreto 19.398. Essa medida permitiu a emissão de decretos-leis, que se tornaram instrumentos fundamentais para a implementação de reformas estruturais, incluindo alterações no funcionamento do STF.
Essas ações iniciais de Vargas deram um vislumbre das transformações que viriam nos anos seguintes, marcados pelo governo constitucional de 1934 e pela consolidação da ditadura no Estado Novo, em 1937.
Embora não tenha sido dissolvido como ocorreu com o Legislativo, o Judiciário enfrentou sérios ataques à sua independência durante o início do governo de Getúlio Vargas.
O primeiro deles foi o decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, pelo qual o presidente "reorganizou provisoriamente o Supremo Tribunal Federal e estabeleceu regras para abreviar os seus julgamentos".
Entre as mudanças, destacaram-se a redução do número de ministros de 15 para 11, a criação de turmas em substituição ao modelo de julgamento único e a exclusão do presidente do STF da linha de sucessão presidencial.
Poucos dias depois, o decreto 10.711, de 18 de fevereiro de 1931, impôs a aposentadoria compulsória a seis ministros, abrindo caminho para que Vargas nomeasse novos integrantes para a Corte.
Segundo a jurista e historiadora Lêda Boechat (2002, p.31-32), essa medida foi uma resposta dos militares - que ganharam posições estratégicas no governo após apoiarem a revolução de 1930 - a decisões do STF, como os indeferimentos de pedidos de habeas corpus feitos por revoltosos da corporação ao longo da década de 1920.
É nesse contexto de intensas intervenções no Judiciário que o ministro do STF Hermenegildo de Barros, protestou contra as ações do governo, em 25 de fevereiro de 1931, durante sessão ordinária da Corte:
"Estranho a diminuição do vencimento, não tanto - e é preciso que isto fique bem accentuado - não tanto por causa dessa diminuição, porque, segundo tive opportudnidade de declarar perante o Supremo Tribunal Federal 'tão independente pode ser o juiz bem remunerado, como o que disponha de vencimentos mais modestos, a independencia do magistrado é garantida, principalmente, pela integridade de caracter'.
Isto, porém, entenda-se, se lhe conservarem a vitaliciedade, porque, sem esta, não há juiz integro que possa ser independente.
Compreende-se que o Juiz de minguados vencimentos seja independente, porque, amparado pela integridade de caracter, elle regulará suas despezas de accordo com esses vencimentos, viverá modestissimamente e sem o menor conforto, mas não se comprehende que seja independente o juiz integro, não vitalício, porque estará constantemente torturado pelo pensamento de que poderá ser demittido a qualquer hora, desde que esteja á mercê de um poder que se julgue ou seja de facto superior a elle.
Concebe-se, em ultima analyse, que o juiz não vitalicio (se é possível admittir isso na magistratura superior), mas integro e dotado de excepcional energia de caracter, possa cumprir nobremente o seu dever; mas elle o cumprirá, apesar de tudo, na certeza de que está caminhando para o suicidio moral ou para o sacrificio proprio e das pessoas que lhe são queridas, sacrificio a que se expõe o proprio juiz vitalicio. [...]
O Governo Provisório acaba de decretar, não a demissão, mas a aposentadoria de seis Ministros do Supremo Tribunal Federal, contra a vontade delles.
O effeito é o mesmo, apenas attenuado pelo recebimento de vencimentos. Neste caso, já não é uma simples estranheza que manifesto pela diminuição de vencimentos; é o protesto que formulo - tão vehemente como os que mais o sejam - contra essa aposentadoria forçada de Juízes do mais elevado Tribunal judiciario do paiz. [...]
Não se trata de aposentadoria a pedido, ou mesmo de de aposentadoria forçada, em virtude de edade avançada, prevista em lei, mas da exclusão acintosa de Ministros, que foram 'varridos' do Tribunal, sob a consideração de que 'imperiosas razões de ordem publica reclamam o afastamento desses Ministros que se incompatibilizaram com as suas funções [.]'. Afastal-os, porém, do Tribunal, com a vaga allusão a motivos de natureza relevante ou razões de ordem pública, sem que sejam especificados, equivale a condenaesses juizes sem defesa, e a deixar suspensa a espada sobre a cabeça dos que foram poupados. [...]
Pela minha parte, declaro que não tenho honra nenhuma em fazer parte desse Tribunal, assim desprestigiado, vilipendiado, humilhado, e é com vexame e constrangimento que occupo esta cadeira de espinhos, para a qual estarão voltadas as vistas dos assistentes, na duvida de que aqui esteja um juiz independente, capaz de cumprir com sacrificio o seu dever."
O discurso do Ministro foi publicado em diversos outros veículos, a exemplo da notícia "A Magistratura Federal e o Governo Provisorio".
A mídia veiculou não apenas o protesto, como também as impressões do governo a respeito das falas do ministro do STF. O escolhido para a interlocução foi o então ministro da Justiça, Oswaldo Aranha. A matéria é do jornal O Globo.
"O discurso do ministro Hermenegildo de Barros protestando, em pleno Supremo Tribunal, contra a redução dos vencimentos dos magistrados federaes e, mais, contra a aposentadoria compulsoria dos eus collegas, além de apreciar ligeiramente outros actos do governo, occupou a attenção do publico, sendo o commentario forçado de todas as palestras nestas ultimas horas. Estranhavam uns os termos do veemente protesto.
Outros, a par disso, encareciam a attitude desassombrada, daquelle membro do nosso 'mais' alto Tribunal. Que pensariam, entretanto, os mais directos prepostos do governo? Dahi termos procurado o ministro Oswaldo Aranha, para ouvir-lhe de viva voz, a impressão que guardava do alludido pronunciamento e, sobretudo, conhecer a que grupo de opinantes se fixava o minstro da Justiça; os que extranhavam a veemencia ou os que apreciavam independencia. O Sr. Oswaldo Aranha, com a franqueza de sempre, sorriu á nossa interrogação, mas sempre respondeu:
- É veemente.
- E nesse caso, ou melhor, nesses casos, Sr. ministro, póde tomar o protesto como um acto de hostilidade ao governo?
- Francamente, não creio.
- ?...
- Não extranhe, não. Eu tenho motivos formaes para acreditar que o ministro Hermenegildo de Barros não só collabora com o governo, no exercício de sua funcção, como se interessa pelo bom funccionamento da adminstração, procurando auxilia-la a ponto de cogitar de prover um dos nossos officios de pessoas de sua confiança e parente seu. A essa altura das declarações do eminente ministro, julgamos dever ponderar que a independência do ministro Hermenegildo de Barros era tradicional nos fastos da nossa vida politica.
O Sr. Aranha é agora mais categorico:
- Affirmo-lhe que um meu presado amigo, titular de uma das pastas do actual governo endereçou-me uma carta em a qual solicitava, com muito interesse, a nomeação de um genro do Sr. Hermenegildo de Barros. Respondi a esse meu amigo e a outros interessados mais directos pela nomeação do candidato, e que vieram ter ao meu gabinete, que impossivel era o aproveitamento delle, de vez que, como principio basico, havia assentado na minha gestão, não nomear parente de altos representaes quer do Governo Provisorio, quer do Judiciario. E isso assentado nada mais fiz do que ir a encontro dos principios que o proprio ministro Hermenegildo de barros sempre esposou.
E sorrindo superiormente:
- Não vejo assim como chamar de hostil ao governo o protesto daquelle ministro."
A estratégica resposta do ministro da Guerra desviou o foco do verdadeiro motivo do protesto do ministro do STF, atribuindo suas declarações a um sentimento de despeito, enquanto lançava dúvidas sobre sua imparcialidade.
No mesmo dia, "O Jornal", de Assis Chateaubriand, procurou o ministro Hermenegildo para comentar o ataque pessoal feito por Aranha e publicou sua reação:
"Diligenciamos ouvir, hontem mesmo, o ilustre juiz, que nos recebeu em sua residencia para dar-nos os esclarecimentos que desejavamos. Encontramol-o indignado com as palavras attribuidas ao titular da pasta da Justiça. Acabara s. ex. de ler a local em questão, de fórma que, ao lhe fazermos a primeira pergunta a respeito da mesma, mostrou-nos o exemplar do jornal que tinha em mãos para ler cada ponto da entrevista e contestal-os parcialmente, 'para - disse-nos - nada deixar sem resposta."
Na data, o próprio jornal O Globo também se posicionou.
Em nota, lembrou que o protesto do ministro do Supremo estava sobre a aposentadoria compulsória de seis de seus colegas e que as falas do ministro de Guerra pretenderam redarguir, isto é, lançar acusações em resposta. Todavia, não havia dúvidas sobre a conduta independente do magistrado, sempre mantida como um ponto de inflexível resistência a todos os abusos do poder.
"No proposito de clarear os factos, o GLOBO consignou, hontem, palavras ouvidas ao ministro Aranha sobre a attitude do ministro Hermenegildo de Barros, no Supremo Tribunal, protestando contra o acto de aposentadoria administrativa de seis collegas seus.
O ministro Aranha declarou que recusara solicitação em benefício dum genro daquelle eminente magistrado. Hoje, por intermedio dum collega, que o provocou, o ministro Hermenegildo de Barros oppoz desmentido peremptorio, energico e altivo á hypothese de ter havido qualquer intervenção sua em benefício de quem quer que seja, junto ao ministro do Interior. Fel-o de modo exhaustivo.
Apenas aconteceu que o jornal, que ouviu o desmentido, publicou as declarações do ministro Hermenegildo de Barros como sendo contrárias a 'palavras attibuídas' ao ministro Aranha. Ora, nós não attribuimos mais áquelle ministro. Reproduzimos palavras suas. Gato ruivo do que usa, disso cuida, e só assim encontramos explicação para o caso.
No que respeita á attiude do ministro Hermenegildo de Barros o GLOBO já se definiu, considerando um grito na multidão partido duma consciência limpida e posta a provas em diversos ensejos. Ninguém poderia levantar duvidas sobre a conducta daquelle magistrado, no momento, uma vez que seu protesto teve um caracter energico, de corajosa independencia. Os antecedentes deram ainda mais força á attitude do ministro Hermenegildo de Barros, que foi sempre, no Supremo Tribunal, um ponto de inflexivel resistencia a todos os abusos do poder.
Ministro Aranha foi buscar nas circunstancias duma pretenção contrariada, de pessoa da família do ministro Hermenegildo de Barros as origens da sua attitude. Dando a publico as palavras do ministro Aranha, sabíamos que ás mesmas se opporia logo a palavra do ministro Hermenegildo. Percebe-se que o que houve foi o proposito de redarguir o protesto do ministro Hermenegildo de Barros.
Sobre o protesto e suas expressões, no momento, nós já tinhamos opinado, sem prejuizo dos deveres, que nos impõem os compromissos assumidos para com o publico de tudo divulgar, entregando a gregos e troyanos a responsabilidade das acusações que fazem. Ha jornaes que attenueam palavras a toda a gente. Sabemos disso. O GLOBO, porém, registra palavras e quando tem de opinar opina, sem segundos intuitos e sem tergiversações suspeitas!"
Entre trocas de declarações, "O Jornal" novamente concedeu espaço para a defesa do ministro Hermenegildo, que respondeu detalhadamente às acusações feitas por Oswaldo Aranha.
Desta vez, as alegações envolviam a redução dos vencimentos dos ministros do STF e supostos pedidos de cargos em favor de parentes. Também nesse contexto, Aranha utilizou a estratégia de redarguir, isto é, lançar acusações em resposta.
"Damos abaixo a declaração que o ministro Hermenegildo de Barros faz, em resposta ao communicado da Agencia Brasileira, aqui publicado anteohontem, e por ella recebido do ministro da Justiça. O illustre e honrado juiz do Supremo Tribunal Federal attende a todos os pontos desse communicado, usando, como sempre, da maxima franqueza e lealdade num assumpto para o qual se despertou a curiosidade geral.
Assim se pronuncia o ministro Hermenegildo:
'Emprazei o ministro da Justiça a declarar qual foi o acto da collaboração por mim praticado com o governo provisorio da Republica. Affirmei, de modo positivo terminante, que a este governo, ou a outro qualquer, nunca pedi, não peço, nem jamais pediria a favor, quer directamente, por mim, quer indirectamente, por interposta pessoa.
O jornal 'O Globo', que publicou a entrevista do ministro da Justiça, a proposito do meu protesto no Supremo Tribunal - entrevista á que dei replica imediata - o jornal declarou que 'o ministro Hermenegildo oppoz o desmentido peremptorio, energico e altivo á hypothese de ter havido qualquer intervenção sua e benefício de quem quer que seja, junto ao ministro do Interior. Fel-o de modo exhaustivo'.
Que oppoz á minha replica o ministro da Justiça?
Disse a um representante da Agencia Brasileira que 'não lhe causara surpresa o protesto dos sr Hermenegildo de Barros quanto á diminuição de vendimentos, pois que esse ministro do Supremo Tribunal, depois de ter recusado o recebimento de vencimentos elevados pelo Congresso, foi recebel-os no Thesouro, não somente 8:000$000 do exercicio, mas 54:000$000 'de exercícios findos' (o grypho é meu), sem que tivesse sido aberto, pelo Congresso, o credito especial para esse fim, como seria legal. Bem se vê que a resposta não está de accordo com a pergunta.
Em todo caso, vou aprecial-a. O ministro da Justiça quiz fazer acreditar que me preocupou, principalmente, a diminuição de vencimentos, quando eu delcarei que 'protestava vehementemente' contra a aposentadoria forçada dos ministros do Supremo Tribunal e apenas 'manifestava estranheza' sobre a diminuição dos vencimentos, attentas as razões que expuz e que o ministro não pôde rebater, como não rebateu nenhum dos pontos do protesto.
Entre os telegramas dessa ultima categoria transcrevo, com muita honra para mim, o seguinte:
'O instituto da Ordem dos Advogados Mineiros em sessão de 26 deste approvou unanimente moção de plena solidadriedade no protesto de v. ex. proferido no Supremo Tribunal Federal a proposito da aposentadoria compulsoria de ministros daquella alta Corte de Justiça. Por boca de v. ex. falou a consciencia juridica nacional, quando verberou o processo adoptado. A independencia do poder judiciario brasileiro exigia na verdade que o afastamento compulsorio de qualquer de seus membros só se verificasse mediante processo regular como pena em paiz policiado. O poder judiciario se deve sentir ao abrigo de poderes discricionarios ainda de governo de facto. Saudações affectuosas. Jair Lins, vice-presidente em exercicio [...]".
O desfecho dessa história incluiu o reconhecimento de falhas de ambos os lados. Contudo, ficou exposto como falsa a acusação de que o ministro Hermenegildo teria solicitado, pessoalmente, cargos para parentes ou que tivesse conhecimento de tais pedidos feitos por familiares. As declarações finais do ministro Aranha encerraram o episódio.
"Creio que tudo está encerrado, porque a verdade, nua e crua, não deixa logar a duvidas nem a discussões."
Além do ressentimento dos militares e do posicionamento conservador de certos ministros, a autora Carla Nascimento (2023, p. 163-166), em sua tese de mestrado, aponta outro fator relevante para a análise da composição da Corte durante o Governo Provisório: as redes de apoio dos seus integrantes.
Entre os nomeados, destacavam-se aqueles envolvidos em disputas políticas no Rio Grande do Sul, Estado natal de Vargas; nomes indicados por lideranças mineiras, que apoiaram a Revolução de 1930; ou ainda pessoas com as quais Getúlio mantinha relações pessoais. A autora explica:
"Da intervenção na cúpula do Judiciário dependia o sucesso das demais medidas autoritárias, obtendo do Supremo a garantia de que os atos do governo não seriam anulados pelo judiciário. A escolha de ministros alinhados ao novo pensamento constitucional ou dispostos a se acomodar ao novo regime permitiu a paulatina efetivação das variantes do regime autoritário - desde restrições de direitos individuais (políticos) constitucionalmente justificadas (autoritarismo constitucional), atribuídas às turbulência internas e internacionais e encaradas como estado de sítio e intervenção federal, passando pelo "mero legalismo" ou mero rule of law, nos estertores da vigência da Constituição de 1934, até retornar ao autoritarismo em estado puro estabelecido com a Constituição de 1937 (Ibidem, p.168)."
Este é um aprendizado tanto para o presente quanto para o futuro: é essencial dirigir o olhar não apenas às mudanças propostas ao Judiciário, mas também àqueles que as promovem, ao contexto histórico em que surgem e aos objetivos que buscam alcançar.
Ainda que algumas dessas mudanças possam ser implementadas em detrimento da liberdade, da independência e da democracia, sempre haverá uma voz que se eleva no meio da multidão, clamando por atenção e resistência.
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Referências
NASCIMENTO, Carla Ramos Macedo do. O Supremo Tribunal Federal na Era Vargas: pensamento constitucional, desenho institucional e performance jurisprudencial. 2023. 377 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.
RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo IV: 1930-1963. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 31-32.