STF foi criticado após julgamento de HC impetrado por Ruy Barbosa
Em meio à repressão do governo Floriano Peixoto, o advogado Ruy Barbosa contestou a prisão de um general durante estado de sítio.
Da Redação
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Atualizado às 08:20
"Aqui não devem entrar as paixões que tumultuam na alma humana porque este logar é o refúgio da justiça" - Ruy Barbosa em artigo para o jornal "O Paiz", em 24/4/1892.
Na segunda matéria do especial que analisa a repercussão midiática de decisões do STF, desde a Proclamação da República, serão analisados diferentes HCs impetrados pelo então advogado Ruy Barbosa durante a presidência autoritária do marechal Deodoro da Fonseca e, posteriormente, de Floriano Peixoto.
Após proclamar o novo regime e presidir o governo provisório que estabeleceu a nova Constituição, o marechal Deodoro da Fonseca foi indiretamente eleito presidente.
Entretanto, o caráter autoritário de sua administração - que, em 3/11/1891, ordenou o fechamento do Congresso Nacional e decretou estado de sítio (decreto 641/1891) - provocou frustração e insatisfação em diversos setores da sociedade.
Entre os descontentes, estava a Marinha, que se rebelou contra o governo na Primeira Revolta da Armada. Sob intensa pressão interna e externa - especialmente dos Estados Unidos, interessados em consolidar os ideais republicanos -, o marechal Deodoro renunciou ao cargo em 23/11/1891.
A publicação a seguir do periódico O Paiz, oferece um panorama da opinião pública sobre o gesto do presidente:
"A Republica e a Legalidade estão salvas! A honra do povo brazileiro está illesa! O honrado marechal Deodoro, libertando-se á ultima hora da fatal influencia dos conselhos que quasi o arrastaram ao abysmo da execração publica, ouvindo apenas a voz do seu coração e obedecendo ás suggestões do mais alevantado patriotismo, resignou nobremente o seu cargo, transferindo o poder ao seu successor legal, o Sr. marechal Floriano Peixoto, digno vice-presidente da Republica".
O vice-presidente Floriano Peixoto assume o posto de Deodoro, convoca o Congresso e anula o decreto de dissolução (decretos 685 e 686). Também dá início à perseguição dos que apoiaram a tentativa de "golpe do Estado", com abusos de poder.
As reações vieram em sequência, a exemplo do "Manifesto dos 13 generais", veiculado na mídia no dia 6/4/1892. A reposta de Floriano, no dia seguinte, foi reformar os autores do texto.
Manifestações se seguiram no dia 10 daquele mês, dissolvidas pelo Exército e alguns foram presos. Armamentos foram descobertos e o ocorrido foi considerado tentativa de sedição.
Como consequência, Floriano decretou estado de sítio durante 72 horas, efetuando inúmeras prisões e desterrando parte dos capturados - entre os quais, militares, parlamentares e jornalistas.
O habeas corpus
Em 18/4/1892, de modo espontâneo, Ruy Barbosa - que havia participado da tecitura da primeira Constituição republicana e trabalhado nela em prol do controle de constitucionalidade por parte do STF - impetrou pedido de habeas corpus (HC 300) em favor do senador Almirante Eduardo Wandenkolk e outros, vítimas dos decretos de 10 e 12 de abril, objetivando a liberdade dos presos e desterrados.
"Onde quer que haja um direito individual violado, ha de haver um recurso judicial pra a debellação da injustiça: este, o principio fundamental de todas as Constituições livres", afirmou o advogado no HC.
As teses sustentadas por Ruy Barbosa versavam sobre a inconstitucionalidade do estado de sítio, que tornavam inválidas as medidas adotadas em sua vigência; a competência do STF para julgar a inconstitucionalidade e o direito a julgamento que para presos e desterrados após o fim do estado de sítio.
A Corte se reuniu em 23/4 para julgar o HC. O resultado do pedido foi: denegado.
A justificativa do indeferimento pelo Supremo estava no fato de que antes da manifestação do Congresso Nacional o Judiciário não poderia avaliar os atos do governo durante o estado de sítio, e que não cabia ao STF se envolver nas atribuições políticas do Executivo ou do Legislativo.
Até então, o entendimento era de que o STF poderia apenas realizar o controle de constitucionalidade de leis estaduais, ficando de fora os atos e leis Federais - entendimento revisado com a edição da lei 221, de 20/11/1894.
Como mostra o jornal "O Paiz", o viés político em torno do julgamento causou comoção:
"[...] o povo, representado em todas as classes e em todas as opiniões, começou a affluir em ondas para ouvir a palavra sempre autorizada e sempre grande do eminente advogado e estadista Sr. Ruy Barbosa e assistir a sentença do tribunal de ultima appellação sobre o pedido de habeas-corpus" [.] A ancieade dos animos era geral e para isso concorriam o merito e o calor patriotico do patrono e a frieza inalteravel da instituição que representa a razão calma, a ultima invocacão do direito nos paizes onde existe o culto da lei."
O jornal também publicou matéria a respeito da importância do HC impetrado por Ruy Barbosa:
"Publicamos hoje na íntegra a monumental petição de habeas-corpus, que em nome dos presos pelos decretos de 10 e 12 do corrente mez dirigiu ao supremo tribunal federal um dos homens que até hoje mais têm glorificado o nome brazileiro, pelo seu talento e pelo seu patriotismo, o Dr. Ruy Barbosa.
O leitor, mesmo o mais profano em materia de direito federal, poderá ajuizar, pelo exame deste documento precioso, das razões apresentadas em favor do habeas-corpus tão eloquentemente e corajosamente impetrado da sabedoria e da alta probidade do supremo tribunal, que já tanto o dignificou e nobilitou perante o espirito publico no dia em que mandou soltar os presos politicos do Estado de S. Paulo.
A redação d'O Paiz, desejosa, antes de tudo, de não embaraçar a marcha das nossas instituições, que segundo a palavra do governo, tinham sido ameaçadas nos seus fundamentos, resolvera esperar a proxima abertura do congresso, e portanto a mensagem vice-presidencial, para aquilatar serenamente a legalidade, constitucionalidade e justiça das medidas extraorinarias que o ilustre marechal Floriano Peixoto empregou na noite de 10 do corrente, usando dos poderes ilimitados que em hora de errado patriotismo o congresso lhe facultou, subrogando assim direitos que não estão na essencia do regimen republicano e que a soberania popular nem por sonhos lhe outorgou.
Esperavamos comtudo e comnosco toda a nação tem esperado, que, embora sem os documentos officiaes, o decurso dos acontecimentos fornecesse aos patriotas testemunhos flagrantes desse attentado ás nossas instituições, attentado que constituiu no decreto de 10 deste mez o fundamento do estado de sitio e a justificação das medidas discrecionarias que o governo empregou a bem da salvação da Republica.
É natural que o Sr. marechal Floriano Peixoto aguarde a reunião do congresso para a exposição dos poderosos motivos que o levaram a suspender as garantias constitucionaes, porque só ao poder legislativo elle deve prestar contas das medidas que empregou.
Quasi sempre porém os crimes como os de que foram accusados os cidadãos brazileiros desterrados por decreto, sem interrogatorio e sem defesa, deixam um rastro, de cuja existencia o publico immediatamente se apercebe, provas de uma grave delinquencia, prevista no codigo penal e em certos casos sujeita á punição extra-legal, que dentro de um estado de sitio o governo energicamente lhes impõe.
Pode ser que o congresso, mais feliz do que nós, verifique as provas do attentado; até agora, treze dias depois, nada porém chegou ao conhecimento da nação que legitime os applausos com que ella festejou o ilustre chefe do Estado, na persuasão de que as suas providencias rigorosas visavam o bem do povo e a consolidação do regimen republicano.
Ainda ante-hontem, no decreto de amnistia dos presos políticos de S. Paulo, soltos já por effeito do habeas-corpus que o supremo tribunal lhes concedeu, o Sr. vice-presidente da Republica fundamentou essa resolução nos seguintes luminosos considerandos:
- que os delictos politicos ultimamente occorridos naquelle Estado não assumiram tal caracter de gravidade que exigissem severa repressão;
- que a tentativa sediciosa descoberta naquelle Estado não chegou a traduzir-se em factos positivos de perturbação e alarma social, de modo que ameaçasse a estabilidade dos instituições e fizesse perigar a integridade nacional.
Ora, os factos conhecidos até agora sobre a tentativa de sedição e conspiração (tentativa unicamente), occorida, segundo o decreto de 10 do corrente, na Capital Federal, são classificados pelo espirito publico, desprovido do exame das peça officiaes, na categoria delictos que o ilustre chefe do Estado não achou merecedor de sua severa punição.
Seguindo a doutrina expressa pelo digno Sr. marechal Floriano no decreto de amnistia aos presos políticos de S. Paulo, a punição só deve ser feita quando a tentativa sediciosa se traduzir em factos positivos de perturbação social, de modo que ameace a estabilidade das instituições e faça perigar a integridade nacional.
Conhece a nação estes factos? Não. O governo, entendendo que só aos representantes do povo, reunidos em assembléa legislativa, deve prestar contas formaes dos seus actos violentos de desterro e detenção, ha de achar desculpavel pelo menos que o espirito publico, por alguns dos seus orgãos de opinião, estranhe o mysterio em que se envolvem as provas desses factos positivos, negro espantalho de obscuridade e terror, que até hoje ensombra os recessos da consciencia nacional, como se, em vez de guial-a numa politica republicana de liberdade e tolerancia, a regesse uma politica inquisitorial de perseguições e dictadura.
Poderá essa petição de habeas-corpus impetrado com extraordinario talento pelo grande coração do Dr. Ruy Barbosa provocar ao menos essas explicações que toda a nação, angustiada, reclama? Outra coisa não desejamos nós para honra do governo, do ilustre marechal Floriano Peixoto, esto é, para honra das instituições republicanas."
No dia seguinte à negativa, o mesmo jornal - entusiasta da República e dos movimentos de revolta contra as ações autoritárias de Floriano - registrou o seu pesar em um longo texto intitulado "Diante do Tribunal".
"[...] Para nós o dia da negação desse habeas-corpus deveria ser de luto nacional, se por acaso o pavor espantalho sobre toda a sociedade brazileira pelo absolutismo das providencias rigorosas que o governo poz em pratica, detendo e desterrando, sem interrogatorios, sem defesa, não envolvesse todas as corporações, não infiltrasse em todos os espíritos a consciencia da instabilidade, o receio muito legítimo das ameaças e dos perigos que o dia de amanhã póde trazer no bojo dos poderes ilimitados [.]."
O acórdão foi promulgado em 27/4/1892 - e diversos periódicos fizeram publicações - a exemplo do jornal Diário de Notícias, e do jornal O Estado de S. Paulo.
Esse foi o primeiro HC impetrado no STF para resolver uma questão política, testando a autonomia da Corte.
Ainda que negado, o princípio colocado por Ruy Barbosa abriu um precedente relevante, sendo oportunamente retomado em eventos sequentes e, depois, incorporado à Constituição de 1946.
Os desdobramentos e repercussão das ideias de Ruy Barbosa serão resgatados nas próximas reportagens.
- Veja aqui o HC e o acórdão que o denegou.