Substituição tributária para frente: O bode na sala da reforma tributária?
Crítica à substituição tributária para frente, destacando sua complexidade e inconstitucionalidade frente à nova reforma tributária.
sábado, 28 de dezembro de 2024
Atualizado em 26 de dezembro de 2024 14:33
Certamente, uma das mais abalizadas vozes do Direito Tributário pátrio, sobretudo no âmbito de ICMS, Roque Carrazza já afirmava e reafirmava que "o legislador não é livre para moldar o ICMS à sua vontade. Pelo contrário, deve seguir os arquétipos constitucionais desse tributo"1, mormente no que toca à sujeição passiva da obrigação tributária (capacidade tributária passiva) sempre que tal obrigação nasça com a verificação, no mundo fenomênico (em que vivemos), do fato imponível tributário, de sorte a causar uma oneração a quem, justamente, participou da ocorrência do fato típico tributário.
Essa exata compreensão há de se estender, ainda, ao denominado responsável tributário, situação em que tal responsabilidade recairá em quem não tem relação pessoal e direta com o fato imponível atinente ao ICMS, mas, de alguma forma, a ele se mostra vinculado.
No que toca à substituição tributária, que é uma das espécies de responsabilidade tributária, sua atual constitucionalização2, no que tange à famigerada substituição "para frente" sempre foi objeto de severas críticas, já que se estaria, para fins de "acautelar interesses fazendários"3, e, apenas sob vantagens do fisco, a tributar fatos que ainda nem mesmo aconteceram e que até nem podem ou poderiam acontecer.
Para Alcides Jorge Costa, nesse cenário, a substituição para frente seria, a bem da verdade, um equívoco, pois se "...na substituição a obrigação já nasce tendo o substituto como sujeito passivo, é evidente que não se pode falar em substituto passivo de uma obrigação que não existe, nem se sabe se vai existir. E como ver algum vínculo, qualquer que seja ele, entre o substituto e um contribuinte inexistente?".4
Noutras palavras, voltando ao mestre Roque Carrazza, a substituição para frente seria "um falso problema de substituição, pois nela o legislador exige tributo sobre fato que ainda não ocorreu"5, o que esbarraria na conformação originária da CF/88 (poder constituinte originário) que não antevia, antes da EC 3/93, tributação sobre fatos futuros (ou, presumidos), reportando-se tão somente a fatos concretamente efetivados, em homenagem, ao fim, à própria segurança jurídica dos contribuintes em meio ao princípio da tipicidade tributária, porquanto "supor que um fato tributário acontecerá não é jamais o mesmo que tornar concreta sua existência, de modo a conferir segurança e certeza a uma exigência tributária"6, que não aceitariam rompimento neste mecanismo de substituição calcado em meras presunções7.
Razões de praticidade ao fisco, para fins de melhor controle de arrecadação, contudo, prevaleceram sobre o texto primário da CF/88. A sanha arrecadatória venceu, nesse ponto, a pretexto de um mecanismo antissonegação fiscal.
O que nos chamou à atenção, agora, porém, foi a tentativa, a despeito de já bem rechaçada, de implementação do mecanismo da substituição tributária para frente no bojo, também, da recém aprovada reforma tributária, via PLP 68/24 tendente a regulamentá-la, em âmbitos do IBS e CBS, mormente diante dos novos regramentos que foram positivados com a própria efetivação da EC 132/23 que a instituiu.
Com efeito, como bem denunciado por Maurício Barros, sua principal ilegitimidade, ou, inconstitucionalidade, frente ao novo texto constitucional, pós-reforma, "sem sombra de dúvidas, é a violação ao princípio da simplicidade"8.
De fato, pensar-se em substituição tributária para frente, tal como presente nos moldes atuais de tributação pelo ICMS, aplicando-a no contexto em que a reforma tributária foi implantada, seria chocar de frente com as próprias razões de instituição desta própria reforma9.
As dificuldades advindas desse mecanismo de ST, porquanto de utilização quase sempre desconexa, entre 27 Estados da Federação, sempre foram notórias, tudo em vista de incrementação das finanças públicas dos Estados, ainda que em detrimento dos negócios jurídicos empresariais.
A pseudo solução à arrecadação advinda com o regime de ST para frente, virou, a bem da verdade, um gigantesco problema aos contribuintes nos últimos anos, que passaram a lidar com uma infinidade de distorções de todas as ordens que apenas lhes trouxeram prejuízos.
Para elencar apenas alguns, a ST para frente bate de frente com a competitividade empresarial (fixação de preços), já que atabalhoa com o fluxo de caixa e capital de giro dos contribuintes, aumentando o chamado custo Brasil (efeito Robin Hood às avessas10), em meio à alta complexidade procedimental que a medida impõe, a custos altíssimos de gestão e de burocracia incessantes, porquanto, como é cediço, tal sistema abriga uma infinita gama de bases de cálculos presumidas, infindáveis normas, infindáveis anexos, em exceções que superam as regras gerais, convênios etc., além de descoordenados processos de ressarcimentos de imposto eventualmente pago de forma indevida (quando a base presumida não se realiza).
Ao fim do dia, os gastos para gestão administrativa das empresas diante do ICMS-ST sempre concorreram, inadvertidamente, com os custos do próprio processo produtivo de mercadorias.
Vê-se que a substituição tributária para frente faria retroceder a própria razão de ser da reforma tributária, calcada que foi na simplificação do que até então vem coexistindo, isso, ainda, dentro de uma tremenda dificuldade de destinação, pensando-se no IBS, do próprio produto arrecadado, aos Estados ou ao município de destino final do bem, de acordo com a conformação imposta pela nova ordem instituída pela reforma (princípio do destino).
O mote da reforma, de "simplificar" o que outrora foi complicado pelo poder tributante, que, por precisar de caixa, deturpou o regime tributário, não poderia quedar inerte no novo sistema inaugurado, não mais apoiado na produção, mas, agora, no consumo.
A derrubada da possibilidade de substituição tributária para a frente diante do futuro imposto sobre valor adicionado, portanto, restou acertada. Ao menos, nesse ponto, sai vitorioso o standard da reforma tributária, menos burocrática e mais acessível aos contribuintes. Mais compreensível, eficiente e transparente, e com menos riscos, com as obrigações tributárias calcadas em mais clareza, praticidade e previsibilidade, o que, por certo, mitigará as possibilidades de litígios.
Ao menos, o manicômio jurídico-tributário de Becker11, nesse quesito da substituição tributária para frente, não se estendeu à reforma tributária, evitando-se que, definitivamente, agora no novo sistema reformado se atingisse o plano máximo da ideia de inferno, trazida por Dante12, a se punir os contribuintes conforme os pecados maiores do próprio Estado.
Que a tentativa de inserção da substituição para frente no contexto da reforma, o que foi repelido, repise-se, não tenha sido, enfim, um vão ensaio do governo em apenas colocar e tirar o bode da sala13, para, uma vez retirando-o, distrair os contribuintes diante das demais agruras a que a deverá passar, ainda, a recém instituída reforma tributária, em todos os seus aspectos. Quem viver, verá.
1 Roque Antônio Carrazza. ICMS. 16ª edição, revista e ampliada, até a EC 67/11 e de acordo com a LC 87/96, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 371. Destaques originais.
2 Desde a EC 3/93. Essa possibilidade está condicionada à garantia de o contribuinte originário (substituído) realizar a devolução de eventual indébito tributário, na hipótese de não ocorrência do fato imponível.
3 Roque Antônio Carrazza. Idem ob. citada, p. 373.
4 Alcides Jorge Costa. ICMS e Substituição Tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, 2. São Paulo: Gráfica Palas Athena, 1995, p. 85.
5 Idem ob. cit., p. 374.
6 José Eduardo Soares de Melo. ICMS - Teoria e Prática, 8ª edição. São Paulo: Dialética, 2005, p. 114.
7 A regra que deveria imperar como natural em situação de livre economia seria a de que o investidor, que se dispôs a aplicar o que é seu para produzir, tenha tempo de realizar o seu objetivo, de dar nascimento à riqueza, de obter lucro, para, então, em consequência, pagar tributo, já que ninguém colheria antes mesmo de plantar, valendo lembrar que nem sempre o aumento da carga tributária poderá representar um crescimento do total arrecadado pelo Estado (Curva de Laffer). O efeito poderá ser nocivo, funcionando o remédio como veneno - efeito pharmacon (cf. citado por Rafael Pandolfo. Substituição tributária, limites constitucionais e pharmacon. In: Ferreira Neto, Arthur M., Nichele, Rafael (coords.). Curso avançado de substituição tributária. São Paulo: IOB, 2010, pp. 125-139.
8 Maurício Barros. Substituição tributária do IBS e CBS e a Constituição. Valor Econômico, 17/12/24 - E2 - Legislação e Tributos.
9 Art. 145, § 3º, da CF/88, com redação decorrente da EC 132/23: "O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente".
10 Aumento do custo naquilo que se pode chamar, no contexto da substituição tributária para frente, de "Efeito Robin Hood às Avessas", cf. Antonio Sergio Valente. In: https://proafr.wordpress.com/articulistas/antonio-sergio-valente/robin-hood-as-avessas-parte-v/ - acesso em 23/12/24.
11 "(...) O Estado constrói, atabalhoadamente, quantidade enorme de novas leis de tão péssima qualidade que revela ignorância de troglodita na arte de criar o instrumento apropriado. Em construção de regras jurídicas tributárias, apenas se começou a sair da Idade da Pedra Lascada. O sofrimento dos contribuintes não é tanto pela amputação em sua economia; o tipo de instrumento cirúrgico é que os faz soltar os berros pré-históricos". Alfredo Augusto Becker. Teoria Geral do Direito Tributário, 3ª edição. São Paulo: Lejus, 1998, p. 10
12 Divina Comédia.
13 Parábola do bode na sala.
Celso Alves Feitosa
Advogado, consultor jurídico e sócio fundador de Alves Feitosa Advogados Associados. Graduado pela Universidade Mackenzie (1971). Especialista em Direito Tributário, Administrativo e Empresarial, pela PUC-SP. Atuou como Juiz do TIT/SP - Câmaras Ordinária e Superior, entre 1988 e 2015. Foi Conselheiro do Primeiro Conselho de Contribuintes (IRPJ) e da Câmara Superior de Recursos Fiscais (1987 a 2004). Autor de diversos artigos tributários publicados em mídias especializadas.
Walter Alexandre Bussamara
Advogado no escritório Alves Feitosa Advogados Associados. Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP.