Migalhas Quentes

O caso das chaves: ministro protesta contra mudança no STF na ditadura

Movimento de expurgo comunista e atuação jurídica foram causas de desgastes entre a Corte e o governo.

25/11/2024

O discurso da legalidade que havia afiançado a intervenção político-militar em 1955 reaparece em 1961 na luta de João Goulart pela posse e, posteriormente, em 1964 no golpe que o depôs e abriu espaço para a implementação do período militar no país. 

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Esta é mais uma matéria da série especial "STF entre poderes" que retrata como situações políticas e algumas decisões judiciais, desde a Proclamação da República, levaram o STF às paginas do debate público.

A opinião pública considerou que não havia argumento legal que impedisse João Goulart, vice-presidente eleito, a assumir a cadeira vaga de Jânio Quadros após sua renúncia. Mas, alguns ministros militares vetaram a posse, considerando que o comunismo representado por Jango se opunha à democracia.

A solução para o impasse, aprovada no Congresso, foi a mudança do regime: de presidencialismo para parlamentarismo. Assim, João Goulart assumiria, mas com autoridade reduzida.

Do ponto de vista jurídico, o historiador Rafael Dilly Patrus comentou:

"observando-se apenas o rito, o desfecho se deu inteiramente 'dentro da lei', isto é, 'conforme o direito'. Todavia, se considerada a substância constitucional – em especial a ideia de que, para que o poder seja efetivamente organizado e limitado, o jogo democrático deve ser jogado segundo regras claras, gerais e previamente definidas – uma mudança tão estrutural quanto a troca do sistema de governo não poderia ser realizada casuisticamente, às pressas, nem aplicada de imediato à conjuntura institucional (2022, p. 176)". 

A estratégia não durou muito. Depois de pouco mais de um ano, em 6/1/1963, por meio de plebiscito, o sistema presidencialista foi reestabelecido e João Goulart se achou fortalecido para realizar as reformas de base que intencionava – especialmente a eleitoral e a agrária.

Em meio a crise econômica e às dificuldades impostas pelo congresso para a sua governabilidade, o presidente preparou uma série de comícios com o objetivo de mostrar ao Parlamento a disposição popular em relação aos temas que deviam ser discutidos e sobre os quais João Goulart vinha trabalhando desde que assumiu.

Mas, para a oposição, tudo em torno dos discursos feitos na Central do Brasil em 13/3/1964 era ilegal: a utilização do espaço, a inflamação popular, a solicitação de plebiscito para decisão dos temas de reforma, pressão sobre o congresso, o tom autoritário dos aliados de Jango – notadamente de Leonel Brisola, para quem as reformas deveriam ser feitas "na lei ou na marra" – e a alegada intenção de reeleição do presidente, denunciada pelo jornal Tribuna da Imprensa.

Para o periódico, o desfecho não poderia ser outro que não o impedimento:

"Numa Nação em que o presidente da República se levanta contra as instituições legais e constitucionais e se recusa a aceitar a legalidade e a constitucionalidade, o Congresso não pode mais confiar nas armas da contemporização. Tem que assumir desde já o seu papel constitucional, sob pena de soçobrar [...] Resta agora a palavra do Congresso, para destruir a subversão, agitação, para liquidar a ousadia dos que se atrevem a rasgar em praça pública a própria Constituição. Essa palavra todo mundo já sabe: IMPEACHMENT.

A imprensa que interpretava o cenário político de forma diversa também se pronunciou, a exemplo do jornal Última Hora:

"Quem lesse o noticiário de ontem, diria que a nação foi coberta por uma cortina de pânico. Não é verdade [...]Porque o povo está tranquilo? [...] porque sabe que o governo João Goulart está procurando atender às exigências mínimas dos que vivem do seu trabalho e estabelecendo um programa máximo para a emancipação do país [...] quem está em pânico é Lacerda, é Ademar, que vêem seu plano de subversão à custa da miséria inflacionária implodir [...] São os ativistas ibadianos do Congresso [...] nazista [...] especuladores [...]. Felizmente o governo Goulart e as bases políticas, populares, militares e sindicais que o apóiam, já estão suficientemente amadurecidas para não se deixarem contaminar pelo pânico das minorias marginais."

Os ânimos estavam bem acirrados. Tanto a direita como a esquerda buscaram explorar a repercussão do comício da Central do Brasil de acordo com seus interesses políticos e o tema das reformas foi gradativamente dando lugar à questão da legalidade, que se manteve no centro das discussões daí em diante.

Nos eventos que se seguiram – como a marcha da Família com Deus pela Liberdade; o caso de tolerância com rebeldes da marinha; o discurso do presidente no clube do automóvel –, a figura de João Goulart foi encarnando o aspecto de uma ameaça à democracia.

Para o opinião pública, isso se dava nem tanto pelas reformas que o presidente queria aprovar, mas pela maneira como ele conduzia o processo de implementação delas – esvaziando, de certa forma, a atuação do Congresso.

De tal modo que em 2/4/1964, depois de tumultuada sessão extraordinária, o presidente do senado Auro de Moura Andrade declarou vaga a cadeira da presidência, transferindo o cargo para o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.

A situação já estava tomada. Dias antes, de Minas Gerais, haviam saído tropas militares em rebelião, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, e outras adesões foram despontando – a exemplo do governador Magalhães Pinto em Belo Horizonte, o general Amauri Kruel em São Paulo e o governador Carlos Lacerda na Guanabara.

Na tarde daquele dia 2/4, o Última Hora – depois de ter sido invadido e depredado – publicou em tiragem reduzida sobre as investidas militares e os esforços de reação de João Goulart:

"As primeira horas de hoje, o presidente João Goulart chegou a Porto Alegre. Depois de ficar algum tempo, seguiu viagem. Antes examinou com autoridades militares, amigos correligionários, as condições de resistir ao processo golpista e decidiu dispensar sacrifício do povo gaúcho e brasileiro que compareceu em massa a sede da prefeitura de Porto Alegre para resistir contra os golpistas. Fizemos tudo para manter a legalidade."

A fim de evitar uma guerra civil, João Goulart renunciou. De modo geral, os jornais apoiaram o gesto golpista como meio para o "retorno da ordem constitucional":

"Na verdade, o que aconteceu é que em 1961, não com falso, mas com verdadeiro zelo pela Constituição [...] defendemos com sinceridade e patriotismo a posse do Sr. João Goulart que o preceito constitucional obrigava [...] A diferença é apenas esta. Em 1961 com a Constituição defendemos o sr. João Goulart no seu direito de posse. Hoje, ainda com a Constituição, tivemos de nos opor ao Sr. João Goulart no caminho torto que tomou [...]Em 1961 valeu-se da Constituição para pleitear a sua posse. Em 1964 investiu contra a Constituição, descumpriu-lhe os mandamentos e as leis da República [...]Perdeu o respeito pelo cargo, e por isto perdeu o respeito pelo país."

Por outro lado, alguns periódicos se posicionavam contra a instalação de um regime de exceção, já sentindo o peso de abusos contra a liberdade de expressão e direitos individuais.

"Não toleramos agora o terrorismo nem o fanatismo da reação. Não combatemos a ilegalidade para tolerar a contra ilegalidade. A reação já comete crimes piores do que os cometidos: depõe governadores, prende ministros e deputados, incendeia prédios, persegue sob o pretexto tolo de anticomunismo a tudo e a todos. Não admitiremos. A estes fanáticos e reacionários opomos a mesma atitude firme de ontem: a eles também diremos: Basta e fora!"

Já outros, viam no golpe militar a oportunidade que precisavam para se instalar no poder. Faltava apenas legalizar a situação!

"Para que a Revolução de 1º de abril seja completada [...] está faltando ainda algo essencial: a sua lei básica. Isto é, o ato institucional, a ser promulgado pelo comando revolucionário [...] E o Comando Revolucionário que se legitimou [...] simultaneamente legitimou essa mesma revolução. É competente, portanto, para fazer e promulgar o ato institucional [...] O que ele pode fazer de fato também pode fazer de direito [...] só através do ato será possível redemocratizar os quadros administrativos brasileiros, extirpando deles a infiltração comunista e afastando definitivamente os negocistas [...] o institucional será a Revolução em marcha[...].

Golpe ou revolução?

Aqui começa a história que queremos contar. Pois, uma vez decretado o ato institucional nº 1, a investida militar contra João Goulart se legitimava como revolução em vez de golpe:

"A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destituiu o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e o apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular."

Assim, a Constituição de 1946 foi mantida, porém com modificações em relação aos poderes do Presidente da República, com o argumento da necessidade de instrumento jurídico rápido, adequado à crise que o país passava até que se fosse indicado o próximo presidente.

Sobre o comportamento dos ministros do STF naquele momento, o ministro Evandro Lins (2009, p. 49,50) explicou:

"Caiu um governo, desabou um governo, foi deposto um governo. Era preciso ver as consequência daquilo, até que se reinstitucionalizasse o País, e o Supremo ficou naquel expectativa, com seus juízes vitalícios, inamovíveis, aguardando. Então, veio o Ato Institucional, que era para ser o único, mas foi o primeiro, mantendo a Constituição e estabelecendo certas regras de prosseguimento do funcionamento do poder [...]. Nós decidíamos de acordo com a Constituição: ninguém podia ficar preso além do praz legal, ser perseguido politicamente se não havia cometido crime. O Supremo cumpriu rigorosamente a Constituição da República."

Presidente João Goulart, ministro do STF, Ribeiro da Costa e o presidente Humberto Castelo Branco tiveram local garantido nas manifestações da opinião pública durante a década de 1960.(Imagem: Arte Migalhas)

Intervenção no Supremo

A posse de Humberto Castelo Branco, o primeiro presidente militar, se deu em 15/4/1964. Apesar da boa relação que este se esforçava para manter com a Corte, começava a correr nos jornais uma campanha de intervenção no Judiciário, notadamente no STF, que até então havia sido poupado do expurgo comunista:

"Comenta-se, nos meios forenses e políticos de São Paulo, que a operação de depuração geral por que está passando o País, orientada segundo as diretrizes mestras da luta contra a corrupção e contra o comunismo, deverá ampliar-se, também, no âmbito do Poder Judiciário, a exemplo do que ocorre nos campos do Executivo e do Legislativo. Recorda-se, a propósito, que enquanto montava o seu ‘dispositivo sindical-militar, o sr. João Goulart, manobrando de acordo com os comunistas e filocomunistas, voltou também suas vistas para o Supremo Tribunal Federal, órgão de cupula do Poder Judiciario, levando para a nossa mais alta corte de justiça os srs. Hermes Lima e Evandro Lins, cuja orientação política é notória, que foram seus ministros e que se empenharam profunda e publicamente na campanha de agitação 'reformista' [...]."

No mesmo periódico, alguns dias depois, outra matéria com o mesmo intuito:

"Cercear ao Poder Judiciário o expurgo que se está processando no congresso Nacional, no Poder Executivo e nas Forças Armadas, além de ser uma odiosa discriminação, é tentar frustrar a revolução, é negar-lhe o poder que o Ato Institucional lhe outorgou, de impedir que, um dia, pelos votos dos acusados, voltem, por ‘habeas corpus’ ou outra medida jurídica, os expurgados da vida nacional."

Sobre essa situação, o próprio ministro Evandro Lins (2009, p. 50) relata:

"Havia expectativa, por exemplo, de que pudessem ser atingidos os Ministros do Supremo, como começaram a ser atingidos todos aqueles adversários do sistema. Todos começaram a sair. Com o Ato Institucional, foram cassados imediatamente Jango, Jânio, todos os políticos, inclusive dois magistrados, Aguiar Dias e Osny Duarte Pereira, logo na primeira relação. Muita gente esperava que eu e Hermes Lima, sobretudo, fôssemos atingidos, porque tínhamos servido ao Governo João Goulart. Cheguei a admitir que pudesse ser cassado, mas, depois que houve a visita do Presidente Castelo Branco ao Supremo, passei a achar mais difícil que isso acontecesse.

Outro ponto que levaria o STF a sofrer ataques foi justamente sua atuação técnica. De acordo com o professor de Direito Rafael Queiroz (2015, p. 328):

"Desde o golpe, os militares recorreram aos Inquéritos Policiais Militares, e às prisões cautelares no âmbito desses IPMs, como mecanismos para tirar rapidamente de cena seus adversários políticos mais agudos. As investigações invariavelmente envolviam acusações de alguma forma de tentativa de subversão da ordem e, mais especificamente de crimes contra a segurança nacional. Os atingidos corriam ao Judiciário, e eventualmente ao STF [...] buscando amparo. Faziam-no com base em duas teses: a primeira, excesso de prazo na prisão cautelar; a segunda, incompetência da justiça militar. O Supremo com alguma frequência acatava à primeira; e firmou jurisprudência pacífica em favor da segunda. Essa orientação jurisprudencial tornava-se particularmente incômoda ao governo quando casos de grande repercussão eram julgados. Nos meses anteriores ao AI-2, houve ao menos dois: o habeas corpus em favor de Mauro Borges, então governador de Goiás; e o habeas corpus em favor de Miguel Arraes, em que quase se trocou a prisão do exgovernador pela do comandante do I Exército por desobediência ao tribunal."

Sobre Mauro Borges, lemos em matéria de capa no jornal O Estado de S. Paulo:

"O Supremo Tribunal Federal, concedeu ontem à tarde, por unanimidade, o 'habeas corpus' impetrado em favor do governador Mauro Borges Teixeira, de Goiás. A decisão surpreendeu os círculos militares mais chegado ao gabinete do ministro da Guerra, em Brasília, que receberam o resultado com visível decepção. Alguns oficiais declararam, na ocasião, que as consequências da deliberação judicial 'são imprevisíveis', pois as Forças Armadas não podem permitir a continuidade da subversão que existe no governo goiano'."

Os detalhes sobre o julgamento do habeas corpus foi publicado na mesma edição, dando conta de que "o presidente acompanhou os trabalhos do Supremo" e interveio com orientações escritas, conduzindo ao desfecho de cumprimento à ordem judicial:

"O presidente da República acompanhou o julgamento no Supremo Tribunal Federal através de seus assessores, que lhe transmitiram, um a um , qual o voto proferido por cada ministro. Pouco depois do julgamento, o chefe do Gabinete Civil, ministro Luiz Viana Filho, e o secretario de Imprensa, jornalista Jose Wamberto, foram chamados ao Gabinete presidencial. Meia hora mais tarde, de lá retornou este último, trazendo a declaração do chefe do Governo, consubstanciada em duas laudas dactilografadas. A declaração foi mimeografada e liberada a divulgação exatamente às 17h, 1 hora e 25 minutos após decisão do STF."

O caso de Miguel Arraes ocorreu em menos de seis meses depois e também ganhou destaque no jornal O Estado de S. Paulo. Outra vez, por intervenção de Castelo Branco, a decisão da Suprema Corte foi cumprida. 

"A liberação do ex-governador teve a interferência direta do presidente Castelo Branco, que garantiu o cumprimento do 'habeas corpus' concedido na última segunda feira pelo Supremo Tribunal Federal'. As controversias sobre a libertação do sr. Arraes tiveram início quando, na segunda feira, o STF concedeu ‘habeas corpus’ a seu favor.

Em telegrama que enviou anteontem ao presidente daquela Côrte, o general Edson de Figueiredo, que responde pelo expediente do I Exército, argumentou que havia acatado a decisão do STF, mas que o sr. Arraes continuaria preso para responder a novo IPM [...].

O ministro Ribeiro da Costa, também por telegrama, respondeu ao general Figueiredo que a manutenção do ex-governador na prisão era um descumprimento da decisão da Côrte a que preside. Considerou a interpretação do general sobre a concessão do 'habeas corpus' 'restritiva e rebelde á soberania do Poder Judiciário', e concluiu: 'Acate pois aquela decisão, tal como lhe foi comunicada'. [...]

Ainda anteontem, o presidente Castelo Branco manteve contato telefonico com o ministro Ribeiro da Costa, e foi informado pormenorizadamente sobre a decisão do STF. Ponderou o marechal Castelo Branco que havia um novo inquerito contra o sr. Arraes, no Rio, mas o presidente do STF retrucou que a decisão da Suprema Côrte fôra ampla, com relação a todas as acusações e, substancialmente, no sentido do fôro especial para o julgamento do ex-governador, que deveria ser o Tribunal do Estado, e não a Justiça Militar. O chefe do governo informou então que trataria pessoalmente do problema."

Esses casos deixam entrever como as relações foram se desgastando entre o STF e o governo militar. Em pouco mais de um ano, Ribeiro da Costa, o ministro que havia estado presente na cerimônia de posse de Ranieri Mazzilli, passava a se tornar um empecilho nos planos da revolução vitoriosa.

Uma reforma sobre o judiciário começaria, então, a avançar – encabeçada pelo ministro da Justiça Milton Campos, elaborada por Orozimbo Nonato, Prado Kelly e Dario de Almeida Magalhães.

Rapidamente, o presidente do STF tratou de criar uma comissão interna para tratar a questão e exigiu que houvesse interlocução com os trabalhos da comissão governamental. Embora nem tudo fosse desacordo entre as equipes, um tema era alvo de disputa: a alteração no número dos membros do Tribunal.

Conforme explica o professor de Direito Rafael Queiroz, "os membros mais exaltados do governo, entre os quais Costa e Silva, não concebiam a hipótese de ter de conviver por anos a fio com o órgão de cúpula do Poder Judiciário recheado de ministro indicados por Goulart, Juscelino e Getulio Vargas. Ribeiro da Costa, por sua vez, não admitia presidir um Judiciário cuja independência não se preservasse (2015, p. 331)."

Nesse momento, conta a história – no livro "O julgamento da Liberdade", do jornalista Ézio Pires, e também no documentário "As chaves da democracia - a resistência do Supremo Tribunal Federal em tempos de opressão" – que Ribeiro da Costa teria dito ao general Castelo Branco: "Ai da revolução que aviltar a Justiça. Fecharei a casa e lhe entregarei as chaves.

A mais alta Corte do país nunca chegou a ser fechada, pois os militares precisavam da instituição a fim de conferir legalidade à revolução. Mas, houve enfrentamento.

No auge da crise com Executivo, Ribeiro da Costa declarou sua posição sobre a reforma do STF. Sobre o aumento no número de membros – o que daria ao governo a maioria necessária para aprovação dos temas de seu interesse – destacamos alguns trechos do texto do ministro publicado na Folha de S. Paulo: 

"Em verdade, nada mais contundente absurdo, esdrúxulo e chocante com os princípios básicos da Constituição [...]. Se, entretanto, viesse a vingar esse procedimento, o que nos parece de todo inviável, teríamos praticamente instaurado grave conflito entre os poderes da República, dois contra um, ou seja, Executivo e o Legislativo, de mãos dadas, a fim de invadirem área específica ou privativa do Judiciário, com quebra de princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes (Constituição, art. 7º, n. VII, letra B).

[...] É que, de modo expresso, pertence privativa e exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, propor o aumento do número de seus membros, consoante dispõe o art. 98,  parte segunda, da Constituição. É isso atributo que espelha e diz com sua própria independência.

[...] Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedor quebra de sagrados deveres, os sargentos instigados pelos jangos e brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar e estes, que sob o sagrado compromisso juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição. Se ao Supremo Tribunal Federal cabe o controle de legalidade e constitucionalidade dos atos dos outros poderes, por isso mesmo ele é investido de excepcional autonomia e independência, tornando-se intolerável a alteração do número de seus juízes por iniciativa do Executivo e chancela do Legislativo. [...]."

Ministro do STF, Ribeiro da Costa, publicou artigo na Folha de S.Paulo a respeito do aumento de componentes da Corte.(Imagem: Folha de S.Paulo)

A resposta militar veio num discurso dirigido ao Exército, proferido pelo ministro da Guerra, Artur Costa e Silva, em Itapeva – e publicado no jornal O Estado de S. Paulo:

"Quero referir-me, srs., ao gesto de agressão que acaba de ser dirigido aos militares do Brasil pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. Como se fossemos donos do Poder da República, s. exa. se volta contra os militares, praticando sem dúvida a maior das injustiças já praticadas contra o soldado brasileiro. [...] Este presidente nos coloca no mesmo plano daqueles homens que nós combatemos ontem, devolvendo á Nação a tranquilidade, a paz, a integridade que estava ameaçada pelos comunistas. [...]

Srs., aí estão as palavras com que nós militares somos brindados por s. exa. o sr. presidente do Supremo Tribunal Federal que nós, militares, tendo á nossa mercê, nos primeiros de abril de 64, preservamos de qualquer mutilação, crente que estavamos – e que ilusão! – que este alto tribunal saberia compreender a Revolução que acabamos de tornar vitoriosa, quando atendendo ás aspirações e inspirações par acabar com o comunismo que procurava implantar-se neste País. [...]

Agora somos mandados pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, somos mandados recolhermo-nos aos quartéis. Mas por que saímos dos quartéis? Saímos dos quartéis a pedido do povo, a pedido da sociedade que se via ameaçada. E só voltaremos para os quartéis quando o povo assim o determinar. [...]

Srs., não queria me exaltar neste momento, mas, ofendido e agredido na minha classe, não posso deixar de revidar esta afronta, aconteça o que acontecer. [...]

É preciso, srs., que os homens desta República cresçam, cresçam a altura da grandeza imensa deste País. Este País exige homens grandes, de alto espírito público, e não de homúnculos que venham degradar por interesses pessoais, por interesses partidários, por interesses de classe ou de clã, prejudicando o desenvolvimento deste País, que só pede  que o deixem progredir, que o deixem marchar. E nós havemos de dar ao Brasil, com a pessoa de s. exa., o sr. presidente Castelo Branco, que é um da nossa formação, nós devemos dar ao Brasil – e daremos – a oportunidade de marchar, de progredir, e de atingir os seus altos destinos."

Uma semanas depois do texto publicado pelo ministro Ribeiro da Costa, mais precisamente em 27/8/1965, o governo militar lançaria o Ato Institucional nº2.

Entre outras providências, aumentava de onze para dezesseis o número de membros do STF – que passava a funcionar em três turmas de cinco ministros cada uma – e retirava do povo brasileiro o direito de voto para presidente e vice, a serem eleitos de modo indireto pelo Congresso Nacional, no qual dominavam aliados do regime em vista das intervenções de expurgo comunista já realizadas. Os  vinte anos que se seguiram foram os mais sombrios da história do país.

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Referências

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Memória jurisprudencial: Ministro Evandro Lins. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2009. 406 p.

PATRUS, Rafael Dilly. O manto diáfano da fantasia: o discurso moderno da legalidade e o Brasil de João Goulart (1955, 1961 e 1964). Belo Horizonte: UFMG, 2022.

QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Cinquenta anos de um conflito: o embate entre o ministro Ribeiro da Costa e o general Costa e Silva sobre a reforma do STF (1965). Revista Direito FGV, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 323-342, jan./jun. 2015.

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