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Ministério da Saúde comete equívoco ao dizer que todo aborto é crime

Pasta divulgou orientações a profissionais da saúde afirmando que "todo aborto é crime".

15/6/2022

O Ministério da Saúde lançou, por meio da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, uma cartilha para orientar profissionais da área com relação ao aborto. Segundo o guia, "todo aborto é um crime”.

"Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados."

Segundo o órgão, o manual traz diretrizes elaboradas com evidências científicas para possibilitar um acolhimento respeitoso e atenção qualificada às mulheres.

Mas, como a cartilha não é feita para juristas, que dominam os conceitos do Código Penal, é preciso esclarecer que há, sim, hipóteses em que a prática não é criminalizada : nos casos de aborto necessário, em que não há outro meio de salvar a vida da gestante; e no caso de gravidez resultante de estupro.

Isso sem falar no aborto espoontâneo. De modo que o conceito de "aborto legal", embora possa não ser o mais perfeito, é o mais fácil de ser entendido pelos leigos, e deve continuar a ser usado, apesar da vontade ministerial. 

Ademais, o STF também já debateu o tema, considerando ainda inconstitucional criminalizar a hipótese de aborto de feto anencéfalo.

Quem explica o tema é a advogada Ana Carolina Moreira Santos, criminalista e mestranda em Direito Médico. Para ela, o ministério comete equívoco ao criminalizar todo tipo de aborto. Além disso, chama a atenção o fato de que a cartilha apresenta orientações – ou juízos de valor – de natureza jurídica, o que foge da competência da pasta.

Assista à entrevista:

Hipóteses não criminalizadas

A criminalista explica que o art. 128 do CP traz duas hipóteses em que a prática deixa de ser crime: o inciso I traz a possibilidade de aborto para salvar a vida da mãe, que seria o aborto terapêutico; e, no inciso II, há o aborto para casos de gestação decorrente de estupro, que a profissional chama de aborto humanitário, já que é com vistas à dignidade da pessoa humana – a gestante. 

“Ele não é legalizado porque não há uma lei que diz que é legal. Mas ele não é criminalizado, é isso o que diz [a lei]. Então hoje, nossa doutrina chama isso de ‘aborto legal’.”

Nestas duas hipóteses, a criminalista explica que a gestante não precisa de aval da Justiça ou sequer boletim de ocorrência, devendo buscar diretamente o sistema de saúde. “A gestante vai fazer todo o procedimento necessário para que aquela intervenção médica seja abarcada pelo artigo 128 no próprio hospital onde ela vai realizar a intervenção."

Em relação ao crime de estupro, para que o procedimento seja realizado, é verificada a narrativa da gestante, o período de gestação, e os indícios de veracidade dessa narrativa. 

A advogada explica que, se for verificado, a posteriori, que houve alguma alteração dos fatos por parte da gestante, ou que, por exemplo, não ocorreu alegado estupro, a mulher poderá, é claro, ser investigada pela prática do crime que é previsto no CP. 

Entretanto, para a realização do procedimento, até como forma de não causar ainda mais sofrimento à mulher em decorrência do ato de violência do qual ela foi vítima, a legislação prevê que não é necessário sequer boletim de ocorrência.

Incompatibilidade com a vida

A advogada destaca que há, ainda, uma terceira hipótese, que seria nos casos de incompatibilidade com a vida. Embora não haja previsão legal para estes casos, o próprio STF já reconheceu esta possibilidade.

Em 2012, a Corte analisou a possibilidade de interrupção de gravidez de feto anencéfalo. Para a Corte, é inconstitucional a interpretação de que a interrupção de gravidez de feto anencéfalo seja conduta tipificada pelo CP.

Em hipóteses como esta, é necessário um aval da Justiça que permita a realização da interrupção da gestação.

Cartilha do Ministério da Saúde

Para a criminalista, o manual do governo chama a atenção porque sua finalidade é justamente orientar profissionais de saúde que fazem atendimento a essas mulheres.

Ela esclarece que a cartilha trata do aborto como um todo. Mas, para ela, chama a atenção o fato de que a cartilha apresenta orientações – ou juízos de valor – de natureza jurídica que, “além de não ser competência do ministério da Saúde”, as orientações são dirigidas a profissionais de saúde que estão na atenção básica para fazer o acolhimento dessas mulheres, que estão em situação de inequívoco sofrimento, e absoluta vulnerabilidade.

“Esse entendimento de que todo aborto é crime, passar essa orientação a esses profissionais da saúde, da atenção básica, que vão fazer o acolhimento dessas mulheres, me parece que não é a melhor forma de colocar a questão do aborto legal, que é uma das funções do SUS.”

Vale frisar que a cartilha ressalta que “são poucas” as condições que realmente colocam em risco a vida da mulher, que justifiquem o aborto. 

Assista:

Embora lembre que o Direito é uma ciência humana, na qual cabe interpretação, Ana Carolina afirma que, em sua visão, como estudiosa da área, há sim um equívoco na cartilha. “Mais do que um equívoco, me preocupa muito o fato de esse manual estar sendo dirigido a profissionais de saúde, que não têm conhecimento técnico jurídico necessário para fazer a interpretação.”

Ministério Público

Para a advogada, as questões postas na cartilha podem vir a ser discutidas no Judiciário, inclusive por iniciativa do Ministério Público Federal, visto que há interesse da sociedade e da coletividade no sentido de que profissionais de saúde sejam bem orientados para fazer o trabalho de acolhimento dessas mulheres.

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