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Tese 1.198 do STJ: da aventura processual abusiva à desventura processual

A litigância abusiva e a Tese Repetitiva 1198 do STJ.

terça-feira, 18 de março de 2025

Atualizado às 16:01

Meu tio, Diógenes da Cunha Lima, respeitado advogado, ao perceber o incômodo do advogado da parte contrária com a expressão "aventura jurídica" atribuída à demanda por ele ajuizada, disse, com bom humor: "Toda demanda é uma aventura, mas pode ser uma ventura ou uma desventura."De fato, a Constituição (art. 5º, XXXV) assegura ao autor o direito "de se aventurar" (de demandar), ainda que o desfecho dessa "aventura" (demanda) seja desconhecido.

Desta forma, a improcedência não faz do autor um litigante abusivo, assim como a procedência não faz do réu um litigante abusivo.

Isso não quer dizer que o processo é um vale-tudo. Direito não se confunde com abuso de direito. Não é à toa que o CPC considera litigante de má-fé aquele que usa o processo para conseguir objetivo ilegal, bem como aquele que procede de modo temerário (CPC, art. 80, III e V).

Também estabelece o CPC que o abuso do direito de defesa pode ter como consequência a possibilidade da concessão da tutela da evidência em favor do autor (CPC, art. 311, II), desde que seja provável a existência do seu direito.

Há muito, em meu *"Condições da Ação: enfoque sobre o interesse de agir"*, defendi a ausência do interesse de agir nas ações abusivas: "As ações ajuizadas com abuso do direito, fins subalternos ou ilícitos não produzirão um resultado útil da jurisdição, especialmente sob a óptica do Estado."

Mais recentemente, eu e Zulmar Duarte publicamos aqui no Migalhas o artigo intitulado *"Assédio processual: o abusivo exercício do direito de demandar e o interesse processual"*. Nele, sustentamos que o exercício abusivo do direito de demandar (assédio processual) acarreta a falta do interesse de agir: "(...) é possível que em tal exame o magistrado verifique a ocorrência do abuso processual no ato de demandar e impeça o trâmite processual, a par da ausência de interesse processual nas dimensões da necessidade e da utilidade.

O tema passou a preocupar seriamente o Poder Judiciário.

O CNJ, por exemplo, editou três Recomendações (127/2022, 129/2022 e 159/2024) com o objetivo de prevenir ou de coibir aquilo que foi chamado inicialmente de litigância predatória e depois de litigância abusiva ("que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão;" "ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão;" "ajuizamento de ações com aparente caráter de urgência infundada, em expediente normal ou plantão judiciário, com o intento de questionar projetos, leilões ou contratos de infraestrutura que se encontram em fases de desenvolvimento;" "desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça;" "condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras").

A propósito, no anexo A da Recomendação 159/2024, há uma lista exemplificativa de condutas processuais potencialmente abusivas.

Também foi criado, no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça, o Painel de Informações para o Enfrentamento da Litigância Predatória, que se junta aos NUMOPEDEs (Núcleos de Monitoramento de Perfil de Demandas) e aos Centros de Inteligência dos Tribunais.

Nessa mesma direção, o Plenário do STF, no ano de 2024, julgando as ADIns 6792 e 7055, firmou a seguinte tese:

"1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa;

2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio;

3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)."

Portanto, segundo o Supremo, a competência pode ser modificada como consequência processual do assédio processual.

Por sua vez, a Corte Especial do STJ, sob o regime dos repetitivos, formulou a Tese Repetitiva 1198, cujo teor é o seguinte:

"Constatados indícios de litigância abusiva, o juiz pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, a emenda da petição inicial a fim de demonstrar o interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova."

Nem sempre é fácil a identificação da litigância abusiva. O mero ajuizamento, por um único advogado, de inúmeras ações a respeito de um mesmo tema, não caracteriza, por si só, a abusividade, até porque advogados comumente se especializam e a advocacia de massa não constitui desvio de finalidade.

Mas não se pode negar a existência da litigância abusiva, muitas vezes caracterizada pelo ajuizamento de demandas apoiadas em alegações flagrantemente inverossímeis, com evidente desvio de finalidade, sem que se possa inferir, ao menos em abstrato, efeitos concretos para o autor, exceto cercear a liberdade de expressão, descredibilizar o adversário ou dificultar ou onerar excessivamente a defesa.

Também se considera litigância abusiva o ajuizamento de demandas carentes de autenticidade, propostas, muitas vezes, sem o conhecimento dos próprios autores ou por meio de uma captação ilícita de clientela, para a obtenção de vantagens ilegítimas.

A litigância abusiva é um desafio complexo que exige a atuação conjunta de todos os atores do sistema judicial. O combate a essa prática deve ser pautado pelo respeito aos princípios constitucionais infraconstitucionais do Processo, como o acesso à justiça, o contraditório, o dever de motivação, a cooperação e a boa-fé, mas também pela necessidade de preservar a eficiência e a integridade do Poder Judiciário.

Desta forma, entendo que:

a) um eventual requerimento de reunião das causas abusivas é perfeitamente justificado pelo CPC, art. 55, § 3º: "Serão reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles" (como lembra José Miguel Garcia Medina, "a possibilidade de reunião de causas para julgamento conjunto, no contexto brasileiro, não se restringe à hipótese em que se configura a conexão *stricto sensu*");

b) havendo indícios de litigância abusiva, é adequada e indispensável a concessão de prazo ao autor para que se manifeste a respeito e, se for o caso, junte documentos (inclusive documentos atualizados que certifiquem a autenticidade da demanda, como, por exemplo, as cópias do CPF do autor e do seu comprovante de residência), o que se justifica pelo dever de consulta, previsto no CPC, art. 10, como decorrência dos princípios do contraditório substancial e da cooperação, previstos no CPC, arts. 6º e 7º; e pelos deveres de esclarecimento e de prevenção (explicitado na regra que assegura o direito à emenda ou à complementação da inicial, prevista no CPC, art. 321), decorrentes igualmente do princípio da cooperação;

c) constatada a litigância abusiva, deve o juiz proferir sentença sem resolução do mérito em razão da falta do interesse de agir, conforme dispõe o CPC, art. 485, VI, porque demandas abusivas não se mostram imprescindíveis, nem objetivamente úteis.

Andou muito bem o STJ ao condicionar a extinção do processo, em razão da ausência do interesse de agir, ao prévio contraditório e ao dever de fundamentação adequada, como garantias do devido processo legal.

Talvez as expressões "com observância à razoabilidade do caso concreto" e "respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova" acarretem alguma dificuldade. A primeira, porque é vaga, e a segunda, porque somente no saneamento do processo o juiz especificará os meios de prova admitidos, distribuirá o ônus da prova e fixará os pontos controvertidos (CPC, art. 357).

A adequada fundamentação pode resolver o primeiro problema. É preciso que o juiz explique o motivo concreto da aplicação do vetor da razoabilidade (CPC, art. 489, § 1º, II). Caso isso não aconteça, caberão embargos de declaração (CPC, art. 1022, parágrafo único, inciso II).

Quanto ao segundo problema, é importante lembrar que: é requisito da inicial indicar "as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos" (CPC, art. 319, VI); ordinariamente incumbe ao autor instruir a inicial "com os documentos destinados a provar suas alegações" (CPC, art. 434, caput); a teoria estática deve ser aplicada em regra quanto à distribuição do ônus da prova. Desta forma, salvo decisão judicial em contrário, o ônus da prova será do autor apenas quanto aos fatos constitutivos do seu direito (CPC, art. 373, I) e não me parece adequado distribuir de maneira diversa, ao despachar a inicial (CPC, art. 357, III), para que se demonstre a ausência da abusividade.

Importante que o juiz não se limite à leitura das teses, porque os precedentes vinculantes estão na *ratio decidendi* dos acórdãos.

E se o juiz cometer algum excesso, determinando a apresentação de documentos que fogem ao escopo do esclarecimento a respeito de uma possível litigância abusiva, caberá agravo de instrumento?

O STJ não tem admitido a interposição do agravo de instrumento contra o ato pelo qual o juiz determina a emenda ou a complementação da inicial (STJ - Quarta Turma, AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.434.903/RJ, relator Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 29/5/2024; STJ - Terceira Turma, AgInt no AREsp n. 2.123.906/GO, relator Ministro Moura Ribeiro, DJe de 26/4/2023), exceto em situações específicas, como no microssistema das tutelas coletivas (STJ - Primeira Turma, AgInt no AREsp n. 2.348.316/RJ, relator Ministro Sérgio Kukina, DJe de 11/4/2024).

No entanto, a hipótese aqui contém uma peculiaridade: para que determine a emenda ou a complementação da petição inicial, a fim de que o autor demonstre o interesse de agir e a autenticidade da postulação, deve o magistrado, necessariamente, constatar a existência de indícios de litigância abusiva.

Mesmo assim, penso que essa decisão interlocutória não é agravável, porque não foi contemplada pelo CPC, art. 1.015, nem caracteriza uma "urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação," desautorizando, portanto, a aplicação da Tese Repetitiva 988.

Desta forma, caso o juiz indefira a inicial por falta de interesse de agir, deve o autor impugnar a decisão em preliminar de apelação (CPC, art. 1.009, § 1º).

Situação diversa ocorre quando a decisão é proferida na liquidação de sentença, no cumprimento de sentença, no processo de execução ou no inventário, pois o CPC, art. 1.015, parágrafo único, prevê expressamente o cabimento do agravo de instrumento para as interlocutórias proferidas nesses processos ou procedimentos, não fazendo distinção quanto ao conteúdo da decisão.

Também considero cabível o agravo de instrumento por aplicação do CPC, art. 1015, I, quando há pedido de tutela provisória de urgência e o juiz determina a oitiva do autor a respeito de uma possível litigância predatória.

Vale lembrar que processo é meio de resolver problemas com sensatez, não de criá-los ou de ampliá-los. O princípio que deve nortear a atividade jurisdicional é do acesso à justiça (CF, art. 5°, XXXV). Além do mais, a má-fé não se presume; indícios não são constatações; e a improcedência, ainda que liminar, não significa litigância abusiva.

Já o uso abusivo do sistema judicial - que não deve ser visto apenas como um problema entre as partes, mas como uma questão de interesse público, pois a sobrecarga do sistema judiciário compromete a capacidade jurisdicional, afetando o acesso à justiça -, deve ser reprimido, para que a aventura processual abusiva se torne uma desventura processual.

Rodrigo da Cunha Lima Freire

VIP Rodrigo da Cunha Lima Freire

Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha

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