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Anistia plena teorizada por Rui Barbosa encontra freios contemporâneos

Limitações contemporâneas, principalmente em respeito aos direitos humanos, mostram tensionamento entre o ideal de anistia e a necessidade de memória e responsabilização.

25/3/2025

"A anistia não é senão o olvido absoluto do passado. Nem a história, nem o direito, nem a política a admitem senão como preparatório a uma nova ordem de cousas." – Rui Barbosa

O conceito de anistia como esquecimento pleno e absoluto dos atos políticos passados encontra em Rui Barbosa um de seus mais consistentes formuladores no Brasil.

Como advogado, senador e teórico, Rui transformou a anistia em um instrumento jurídico e político voltado à restauração da ordem constitucional e à pacificação social, defendendo que sua aplicação fosse imediata, irrenunciável e irrevogável. O pensamento nasceu em meio às turbulências da jovem República, marcada por insurreições, autoritarismo e arbitrariedades estatais.

No entanto, a concepção irrestrita vem sendo cada vez mais tensionada no cenário contemporâneo, sobretudo diante de entendimentos como o da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impõem limites à anistia quando se trata de graves violações aos direitos humanos.

Prisões "supositícias" e o HC 300

Durante o início turbulento da República, o governo de Floriano Peixoto enfrentava forte resistência, tanto de grupos civis quanto militares.

No Rio de Janeiro, oficiais da Marinha descontentes com o governo organizaram a Revolta da Armada (1893–1894), exigindo a convocação de novas eleições. No Sul, a Revolução Federalista (1893–1895) tinha raízes mais complexas, reunindo federalistas e até monarquistas contrários à centralização promovida pelos republicanos.

Em meio a esse ambiente de instabilidade, Floriano decretou estado de sítio, medida prevista na Constituição de 1891, que permitia a suspensão temporária de garantias individuais, como a liberdade de locomoção e de reunião. 

Foi nesse cenário que Rui Barbosa atuou como advogado no famoso habeas corpus 300, impetrado no STF em 1892.

A ação foi proposta em defesa de 47 cidadãos presos após participarem de uma manifestação política que comemorava a recuperação do marechal Deodoro da Fonseca, que havia renunciado poucos meses antes.

Para Rui, o episódio não passava de um "fato policial" e o Estado de sítio decretado por Floriano era inconstitucional. Ele classificou como "prisões supositícias" aquelas efetuadas antes da publicação oficial do decreto, o que violaria garantias individuais.

Apesar do extenso esforço de argumentação — sua petição somava 76 páginas — o STF, por 10 votos a 1, rejeitou o pedido.

O tribunal entendeu que os atos do Executivo durante o Estado de sítio não poderiam ser revistos judicialmente antes da manifestação do Congresso, legitimando, inclusive, prisões que se prolongavam após o fim do decreto.

A negativa não significou o fim da atuação de Rui Barbosa em defesa dos presos políticos detidos sob o governo de Floriano Peixoto. Diante da resistência do Judiciário em enfrentar os atos do Executivo durante o estado de sítio, Rui redirecionou sua estratégia para o campo político — e obteve êxito.

Rui passou a pressionar o governo e o Congresso Nacional pela concessão de anistia aos presos políticos, argumentando que a continuidade das detenções era incompatível com os princípios republicanos e com a legalidade constitucional. Ele via a anistia como uma saída política necessária para restaurar a normalidade institucional e corrigir as arbitrariedades cometidas durante o período de exceção.

O resultado da mobilização foi o decreto 72-B, de 5 de agosto de 1892, concedeu anistia aos cidadãos implicados nos acontecimentos políticos de 10 de abril de 1892, bem como nas revoltas das fortalezas da Lage e Santa Cruz, ocorridas em janeiro do mesmo ano. 

Mesmo com a anistia concedida, algumas medidas repressivas permaneceram, o que levou Rui Barbosa a denunciar o caráter político do decreto. 

Em artigo publicado no Jornal do Brasil em 10 de julho de 1893, intitulado "Como Deus com os Anjos", acusou o governo de ter concedido anistia apenas como um subterfúgio para legitimar suas próprias ações, afirmando que "simulou-se que se anistiavam os perseguidos, para se anistiar o perseguidor".

A "anistia inversa" de 1895

Os envolvidos na Revolta da Armada e na Revolução Federalista que ainda não tinham sido anistiados, obtiveram a benesse em 6 de setembro de 1895, quando o presidente Prudente de Morais editou o decreto 310.

Contudo, o decreto trazia uma inovação que, para Rui Barbosa, subvertia completamente o sentido da anistia: os militares anistiados teriam sua reintegração condicionada a restrições de natureza funcional, como:

Rui considerou a medida uma "anistia três vezes penal" e ajuizou ação declaratória de inconstitucionalidade contra essas cláusulas.

Embora tenha vencido em 1ª instância, viu o STF reformar a decisão na apelação cível 216. Para a maioria da Corte, a anistia era ato político, cabendo ao Legislativo e ao Executivo estabelecer suas condições, sem interferência do Judiciário.

A controvérsia levou Rui a escrever a obra "Anistia Inversa: caso de teratologia jurídica", onde formulou sua teoria definitiva sobre o instituto.

Para ele, a anistia "não é perdão, é esquecimento". Mais que extinguir a pena, ela apagaria o próprio crime: "repõem-se as coisas no mesmo estado em que estariam se a infração nunca tivesse sido cometida".

A anistia, segundo Rui, é irrevogável, irrenunciável, perpétua e irreformável. Uma vez concedida pelo poder competente, entra na esfera dos direitos adquiridos e nenhum Poder pode revogá-la. Sua inspiração vinha da abolitio romana e da tradição grega com Sólon, que impunha o juramento de "não lembrar o passado".

Anistia de 1905 e a Revolta da Vacina

A anistia de 1905, proposta por Rui Barbosa no contexto da Revolta da Vacina, é mais um episódio em que o jurista reafirma sua teoria da anistia como um instrumento de esquecimento total do passado punitivo — não como perdão condicional, nem como meio de reconciliação política.

A Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904, como uma reação popular violenta contra a política sanitária implementada pelo governo de Rodrigues Alves, especialmente a vacinação obrigatória contra a varíola.

A repressão foi dura: tropas foram acionadas, houve mortes, prisões em massa e o desterro de centenas de pessoas para o Acre, tudo sem julgamento formal. A medida era vista como uma forma de exílio forçado, executada por decreto, ignorando as garantias do devido processo legal.

Rui Barbosa, defensor das liberdades públicas e crítico da arbitrariedade estatal, retornou com força ao debate político e jurídico nesse momento, agora como senador.

Em agosto de 1905, Rui apresentou diretamente no Senado um projeto de anistia ampla para os envolvidos na revolta. O texto era objetivo e incisivo: concedia anistia a todos os implicados nos "sucessos da noite de 14 de novembro de 1904", data considerada o estopim do movimento popular.

O projeto foi aprovado em setembro de 1905 (decreto 1.373), confirmando a tese de Rui de que o Estado precisava restabelecer a normalidade institucional e desfazer os efeitos penais e administrativos da repressão, como forma de reconstituir o tecido democrático.

Apesar da aprovação formal da anistia, a prática não refletiu imediatamente o comando legislativo: militares permaneceram presos e processos judiciais e administrativos continuaram em andamento.

O governo alegava que a anistia não teria efeito automático sobre certas sanções disciplinares.

Rui reagiu com veemência. Em setembro de 1905, voltou à tribuna do Senado para denunciar o descumprimento da medida e reafirmar, com base em sua doutrina, que "a anistia deve alcançar a todos como se os acontecimentos nunca tivessem ocorrido".

Ou seja, sua visão era de que a anistia tem efeito pleno, imediato e absoluto, apagando não só a pena, mas o próprio fato gerador da punição, o que tornaria ilegítimo qualquer ato que presumisse a permanência do delito ou da infração.

A Revolta da Chibata e a anistia traída

A Revolta da Chibata, ocorrida em novembro de 1910, marcou mais um ponto na trajetória de Rui Barbosa como defensor da legalidade e dos direitos fundamentais — desta vez em confronto direto com a arbitrariedade do poder Executivo.

A revolta foi liderada pelo marinheiro João Cândido Felisberto, conhecido como o "Almirante Negro", e teve como estopim os castigos físicos impostos aos marinheiros, como a chibata, prática ainda comum na Marinha mesmo após a abolição da escravidão. As péssimas condições de trabalho, os baixos salários e o racismo estrutural agravavam o cenário de insatisfação.

Os marinheiros rebelaram-se, tomaram o controle de navios de guerra e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro, exigindo o fim dos castigos físicos e a anistia dos revoltosos.

Em meio à crise, Rui Barbosa apresentou no Senado um projeto de anistia aos marinheiros. O Congresso aprovou rapidamente a proposta (decreto 2.280/1910), sob a promessa de que, com a anistia, os revoltosos entregariam as armas e a ordem seria restabelecidal.

De fato, João Cândido e os marinheiros aceitaram o acordo e cessaram a revolta confiando na palavra oficial do Estado. O movimento foi desmobilizado pacificamente, e parecia que uma solução institucional havia sido alcançada.

Poucos dias após o fim da revolta, o presidente Hermes da Fonseca rompeu o pacto. Marinheiros foram presos em massa, exonerados sumariamente e muitos mortos sob tortura ou executados extrajudicialmente, como no episódio do massacre na Ilha das Cobras, em que João Cândido sobreviveu, mas a maioria de seus companheiros morreu em condições brutais.

A anistia, embora formalmente promulgada, foi desrespeitada na prática, com o uso do aparato militar e administrativo para retaliar os insurgentes.

Rui reagiu publicamente e com firmeza. Denunciou a traição do governo e reafirmou que "a anistia, uma vez decretada, não pode ser burlada nem desfigurada pelo arbítrio do Executivo".

Para Rui, o caso da Revolta da Chibata era emblemático de um Estado que prometia em nome da lei, mas agia à margem da legalidade, reforçando sua luta por um regime fundado em garantias sólidas e no respeito à palavra estatal.

Em reconhecimento póstumo, foi sancionada a lei 11.756, de 23 de julho de 2008, que concedeu anistia post mortem a João Cândido Felisberto, líder da revolta, e aos demais envolvidos, visando restaurar os direitos que lhes haviam sido assegurados pelo decreto de 1910. 

Rui Barbosa foi um dos principais responsáveis pela teoria constitucional da anistia no Brasil.(Imagem: Arte Migalhas)

A teoria da anistia

Da experiência histórica e das sucessivas violações institucionais, Rui formulou uma teoria clara e robusta da anistia:

Rui admitia que a anistia pudesse ter condições — desde que fossem voltadas à extinção ou mitigação da pena, não à criação de novas sanções. Quando aplicada após condenação, deve suprimir até a sentença. E quando antes do processo, impede-o de existir.

A anistia na transição democrática

A doutrina de Rui Barbosa ressurgiu com força durante a transição do regime militar para a democracia, especialmente com a promulgação da lei de anistia de 1979.

Embora inspirada no princípio do esquecimento político, a lei foi criticada por também proteger agentes do Estado responsáveis por torturas e execuções, violando padrões internacionais de justiça de transição.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inamnistiáveis, o que gerou forte tensão entre a doutrina clássica de Rui e os parâmetros modernos de responsabilização.

No julgamento da ADPF 153, em 2010, o STF optou por manter a validade da anistia, reconhecendo seu caráter "bilateral" e legitimando os termos negociados no final da ditadura.

A anistia na ordem constitucional de 1988

A Constituição de 1988 acolheu o instituto da anistia como ato político-legislativo de ampla repercussão, mas impôs novos limites.

O art. 5º, XLIII, determina que crimes como tortura, terrorismo e crimes hediondos não são suscetíveis de anistia — refletindo uma inflexão histórica em relação à doutrina de Rui.

Hoje, a anistia segue como importante instrumento de pacificação, mas sob vigilância dos marcos constitucionais e internacionais, que impõem o respeito aos direitos humanos e à memória coletiva.

Tensão contemporânea

Mais do que um conceito jurídico, a anistia para Rui Barbosa era a expressão de um compromisso moral com a República: um instrumento para restaurar o pacto político, reparar injustiças e devolver dignidade aos perseguidos. A doutrina foi forjada em tempos de ruptura institucional, em que o esquecimento jurídico era visto como condição necessária para a reconstrução democrática.

Contudo, no século XXI, o ideal de "olvido absoluto do passado" já não se sustenta de forma incondicionada. O avanço do Direito Internacional dos direitos humanos, a atuação de cortes internacionais e a própria evolução constitucional brasileira impõem novos contornos à anistia, especialmente diante de crimes de lesa-humanidade.

O esquecimento, antes visto como caminho para a paz, agora divide espaço com a exigência de memória, verdade e responsabilização.

Ainda assim, o legado de Rui permanece vivo: não como uma receita pronta, mas como uma advertência constante sobre o valor das garantias, o perigo dos pactos quebrados e a centralidade da legalidade no exercício do poder. 

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