Em julgamento histórico, o STF, em 17 de fevereiro deste ano, mudou sua jurisprudência para admitir a execução penal após decisão condenatória em 2º instância. A decisão se deu por maioria, 7 votos a 4. A favor da mudança de jurisprudência votaram os ministros Teori Zavascki (relator), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Contrários a mudança, votaram Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
Em substancioso voto no caso, o ministro Luís Roberto Barroso expõe fundamentos pragmáticos para o novo entendimento da Corte. Para ele, a impossibilidade de execução da pena após o julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu três consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal: reforçou a seletividade do sistema penal, contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade e funcionou como um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios.
De acordo com o ministro, tais impugnações movimentam a máquina do Poder Judiciário, com considerável gasto de tempo e de recursos escassos, sem real proveito para a efetivação da justiça ou para o respeito às garantias processuais penais dos réus, uma vez que o percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu é irrisório, inferior a 1,5%. O ministro traz dado ainda mais relevante: de 1/1/09 a 19/4/16, em 25.707 decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões absolutórias não chegaram a representar 0,1% do total de decisões.
“Segundo dados oficiais da assessoria de gestão estratégica do STF, referentes ao período de 01.01.2009 até 19.04.2016, o percentual médio de recursos criminais providos (tanto em favor do réu, quanto do MP) é de 2,93%. Já a estimativa dos recursos providos apenas em favor do réu aponta um percentual menor, de 1,12%. Como explicitado no texto, os casos de absolvição são raríssimos. No geral, as decisões favoráveis ao réu consistiram em: provimento dos recursos para remover o óbice à progressão de regime, remover o óbice à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, remover o óbice à concessão de regime menos severo que o fechado no caso de tráfico, reconhecimento de prescrição e refazimento de dosimetria.”
De acordo com Barroso, os casos de absolvição são raríssimos. No geral, ele aponta que as decisões favoráveis ao réu consistiram em: provimento dos recursos para remover o óbice à progressão de regime, remover o óbice à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, remover o óbice à concessão de regime menos severo que o fechado no caso de tráfico, reconhecimento de prescrição e refazimento de dosimetria.
“Em verdade, foram identificadas apenas nove decisões absolutórias, representando 0,035% do total de decisões (ARE 857130, ARE 857.130, ARE 675.223, RE 602.561, RE 583.523, RE 755.565, RE 924.885, RE 878.671, RE 607.173, AI 580.458). Deve-se considerar a possibilidade de alguma margem de erro, por se tratar de pesquisa artesanal. Ainda assim, não há risco de impacto relevante quer sobre os números absolutos quer sobre o percentual de absolvições.”
Apresentando a oscilação da jurisprudência do STF na matéria, e reconhecendo o valoroso trabalho dos advogados criminalistas, o ministro observa que a questão se trata de um caso de típico caso de mutação constitucional, em que a alteração na compreensão da realidade social altera o próprio significado do Direito.
Barroso pontua que a mutação está associada à plasticidade de que devem ser dotadas as normas constitucionais. Este novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode, segundo ele, decorrer de uma mudança na realidade fática ou de uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo. “Na matéria aqui versada, houve uma primeira mutação constitucional em 2009, quando o STF alterou seu entendimento original sobre o momento a partir do qual era legítimo o início da execução da pena. Já agora encaminha-se para nova mudança, sob o impacto traumático da própria realidade que se criou após a primeira mudança de orientação.”
Para o ministro, ao contrário do que uma leitura apressada da literalidade do art. 5º, LVII da Constituição poderia sugerir, o princípio da presunção de inocência não interdita a prisão que ocorra anteriormente ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
“O pressuposto para a decretação da prisão no direito brasileiro não é o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente.”
Para chegar a essa conclusão, aponta o ministro, basta uma análise conjunta dos dois preceitos à luz do princípio da unidade da Constituição: enquanto o inciso LVII define que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo, o inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.
“Como se sabe, a Constituição é um conjunto orgânico e integrado de normas, que devem ser interpretadas sistematicamente na sua conexão com todas as demais, e não de forma isolada. Assim, considerando-se ambos os incisos, é evidente que a Constituição diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão. Tanto isso é verdade que a própria Constituição, em seu art. 5º, LXVI, ao assentar que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, admite a prisão antes do trânsito em julgado, a ser excepcionada pela concessão de um benefício processual (a liberdade provisória).”
Ao discorrer sobre a razoável duração do processo como dever do Estado e exigência da sociedade, Barroso pontua que, quando um crime é cometido e seu autor é condenado em todas as instâncias, mas não é punido ou é punido décadas depois, tanto o condenado quanto a sociedade perdem a necessária confiança na jurisdição penal. Segundo ele, o acusado passa a crer que não há reprovação de sua conduta, ‘o que frustra a função de prevenção especial do Direito Penal”, e a sociedade interpreta a situação de duas maneiras: “(i) de um lado, os que pensam em cometer algum crime não têm estímulos para não fazê-lo, já que entendem que há grandes chances de o ato manter-se impune – frustrando-se a função de prevenção geral do direito penal; (ii) de outro, os que não pensam em cometer crimes tornam-se incrédulos quanto à capacidade do Estado de proteger os bens jurídicos fundamentais tutelados por este ramo do direito”.
Para ele, então, o início do cumprimento da pena no momento do esgotamento da jurisdição ordinária impõe-se como uma exigência de ordem pública, em nome da necessária eficácia e credibilidade do Poder Judiciário.
“A superação de um sistema recursal arcaico e procrastinatório já foi objeto até mesmo de manifestação de órgãos de cooperação internacional. Não há porque dar continuidade a um modelo de morosidade, desprestígio para a justiça e impunidade. Isso, é claro, não exclui a possibilidade de que o réu recorra ao STF ou ao STJ para corrigir eventual abuso ou erro das decisões de primeiro e segundo graus, o que continua a poder ser feito pela via do habeas corpus. Além de poder requerer, em situações extremas, a concessão de efeito suspensivo no RE ou no REsp. Mas, de novo, à vista do ínfimo índice de provimento de tais recursos, esta deverá ser uma manifesta exceção.”
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Processo relacionado: HC 126.292
Veja a íntegra da voto do ministro Luís Roberto Barroso.