"São Paulo de outrora, representado por alguns casarões que escaparam à fúria renovadora da alta do café; vai-se entregando lentamente ao passado, às recordações da gente antiga. Um após outro, solares remanescentes do fastígio dos tempos coloniais ou da monarquia, vão desaparecendo, sumindo, como vítimas das necessidades do progresso."
O tom nostálgico e saudosista, anunciando as transformações de uma era na capital paulista, foi o artifício utilizado pelo jornal O Estado de S. Paulo para noticiar, em 21 de agosto de 1935, a reforma do Largo de São Francisco, abrigo da primeira Faculdade de Direito do país – "Esse casarão desapareceu. Do esplendor de outrora só lhe ficou a tradição".
São Paulo - Anos 1930
Os idos dos anos 1930 em SP foram significativamente pautados e definidos pela Revolução Constitucionalista de 1932, influenciando tanto as ações políticas quanto acadêmicas. Liderados por SP, os constitucionalistas entraram em combate contra o governo Federal do presidente Getúlio Vargas.
Nesta época, estudantes da comunidade jurídica se destacavam entre a elite política e intelectual paulista. No dia 10 de julho, o Largo de São Francisco foi transformado em posto de alistamento militar e cenário da formação do Batalhão Universitário, o qual foi enviado para lutar na fronteira do Paraná. Mais tarde, em 10 de agosto, foi a primeira sede da organização civil MMDC (Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo).
À época, conforme conta Roberto Pompeu de Toledo, em seu livro A capital da solidão, o convento São Francisco, já sede da Faculdade de Direito, encontrava-se em estado deplorável, segundo Moreira Pinto. "Sem arquitetura, sem o mais ligeiro gosto estético, sem asseio, com as paredes esburacadas, enegrecidas, com salas de aula indecorosas, com pátios onde viceja abundantemente a relva, eis o edifício em que funciona a primeira Faculdade de Direito da República, que tem produzido os maiores talentos desta terra."
"Os três conventos históricos de São Paulo – São Bento, São Francisco e Carmo – ainda se mantinham em prédios coloniais, eles e as respectivas igrejas, em 1900, mas logo sofreriam modificações. O de São Bento era uma modesta construção de taipa. O mosteiro e a igreja antigos viriam abaixo para dar lugar ao bonito conjunto projetado pelo arquiteto alemão João Lourenço Madein e inaugurado em 1914. O de São Francisco, na verdade não mais convento, mas sede da Faculdade de Direito, apresentava-se, segundo constatou Moreira Pinto, em estado deplorável. “O pardieiro em que está alojada a faculdade é o mesmo de sempre”, escreve. “Sem arquitetura, sem o mais ligeiro gosto estético, sem asseio, com as paredes esburacadas, enegrecidas, com salas de aula indecorosas, com pátios onde viceja abundantemente a relva, eis o edifício em que funciona a primeira Faculdade de Direito da República, que tem produzido os maiores talentos desta terra.” Moreira Pinto mostra-se igualmente indignado com o fato de a estátua de José Bonifácio, o Moço, ter sido deslocada, da frente da faculdade, para a frente da igreja ao lado, “como se o emérito professor, o másculo orador, o exímio parlamentar, tivesse algum dia vestido o burel de monge, a sotaina de padre, ou tivesse, em lugar das sábias lições dadas na faculdade, pregados sermões em qualquer igreja”. Caprichando na ironia, o autor supõe que, um dia, a frente da faculdade seria enfeitada com uma estátua de Anchieta ou de Montalverne: “assim, sim, as estátuas ficarão no seu devido lugar. A de um padre ou frade em frente a uma faculdade jurídica e a de um professor de direito em frente a uma igreja.” O velho prédio da Academia seria demolido nos anos 1930, por inciativa de José de Alcântara Machado, o autor de Vida e morte do bandeirante, que então dirigia a faculdade. Para honrar a tradição, o prédio levantado para substituí-lo, conservaria o estilo conventual."
(Roberto Pompeu de Toledo – A capital da solidão: Uma história de São Paulo das origens de 1900)
História
Após diversas tentativas de negociação para regularizar a situação, que se criou com a cessão gratuita do uso do edifício feita pela ordem ao governo, por tempo indeterminado, os franciscanos acabaram por tentar impedir judicialmente, as grandes obras no prédio.
Conforme dá conta notícia do hebdomadário datada de 2 de novembro de 1933, a Ordem, por via de notificação judicial, declarou que se opunha à realização destas obras, mas a Faculdade encetou as construções que havia projetado.
Frente à posição adotada, os franciscanos opuseram em juízo embargos de obra nova, os quais acabaram por ser julgados procedentes pelo juiz Federal da Secção de São Paulo, desembargador Vieira Ferreira. De acordo com o matutino, entretanto, a Justiça, ao fim, não deu ganho de causa aos religiosos. "A decisão final chegou em 1940, quando o novo prédio da faculdade já estava construído e funcionando."
(O Estado de S. Paulo - 2 de novembro de 1933 - clique aqui)
Obras
As obras engendradas na Faculdade originaram um prédio significativamente maior, em estilo neocolonial, projetado pelo arquiteto Ricardo Severo. Português, nascido em Lisboa que, por ter se envolvido em um movimento revolucionário contra a monarquia portuguesa, foi obrigado a exilar-se no Brasil. Ele foi responsável por grandes obras de engenharia realizadas em SP na primeira metade do século XX.
Conforme noticiava a edição de 21/8/35, a decisão de que se fizesse uma remodelação abarcou as seguintes medidas:
"Aquela praça deveria guardar o seu cunho colonial, que lhe imprimiria não só a nova fachada da Faculdade de Direito ideada naquele estilo o convento da Ordem Terceira da Penitência. Uma balaustrada também em estilo colonial seria projetada, sobre o leite da praça fronteiro à igreja, a que seria rebaixado. Por sua vez, a ladeira de São Francisco teria alargamento, enquanto que a rampa seria tornada mais suave. O alinhamento dos prédios fronteiras à daquele da Rua Benjamin Constant. Temos a informar agora que esses estudos já se acham em vias de conclusão, faltando-lhe apenas alguns pormenores de ordem técnica. Anteontem já foram iniciadas as obras para construção da balaustrada, ao lado do convento. Logo que aprovado o projeto de reforma, será então encetado o rebaixamento. E o aspecto do largo São Francisco será em breve bem outro, quase nada mais guardando do velho do largo do Capim."
Em 31 de agosto de 1935, O Estado de S. Paulo, ainda dava conta de que do plano de reformas constava o deslocamento da estátua de José Bonifácio para o ponto de cruzamento dos eixos do largo e da rua Christovam Colombo.
(O Estado de S. Paulo - 21 de agosto de 1935 - clique aqui - 31 de agosto de 1935- clique aqui)
Durante a demolição das paredes de barro das Arcadas, conforme narrou o saudoso Mestre Goffredo Telles Junior, uma situação peculiar saltou aos olhos dos estudantes:
"Lembro-me de um fato especial, acontecido certa manhã, quando os operários cometiam a demolição das paredes de barro, das salas do primeiro ano. Com assombro enorme, vimos surgir, dentre os entulhos, ossadas inteiras de seres humanos. Lúgubre aparição! As obras imediatamente se interromperam. Mas à tarde, tudo já estava esclarecido. Aquelas taipas, que haviam sido as paredes de minhas primeiras salas de aula na São Francisco, tinham servido de santo jazigo para os monges do convento."
O novo prédio, com quatro andares, manteve o equilíbrio arquitetônico dos prédios vizinhos, a igreja de São Francisco e a sacristia. O arquiteto também reproduziu na parte interna do prédio as cinco arcadas do claustro.
Mais tarde, no pátio, foram afixadas nas colunas de suas Arcadas, várias placas alusivas a fatos históricos da Academia, bem como o famoso "Monumento ao Soldado Constitucionalista".