Doação sem proteção: O erro que arruinou Raquel em "Vale tudo"
A ficção escancarou uma realidade: sem cláusulas restritivas, uma doação pode colocar em risco o único patrimônio familiar - e gerar um inventário caro e traumático.
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Atualizado às 09:19
A cena é da ficção, mas o drama é real. No clássico "Vale Tudo", Raquel Acioli perde o único imóvel conquistado com esforço de seu pai porque sua filha, Maria de Fátima, decide vendê-lo sem qualquer remorso. O público se revolta com a personagem, mas a verdade é que milhares de "Raquéis" enfrentam esse mesmo roteiro na vida real e muitas vezes, por pura falta de orientação jurídica.
Certamente, o avô de Maria de Fátima não consultou um advogado para organizar a transferência desse bem. Uma simples ida ao cartório, com o suporte técnico adequado, poderia ter garantido segurança à Raquel e evitado a venda inesperada da casa.
Mas calma: não se trata de demonizar a doação em vida. Muito pelo contrário. Ela segue sendo uma excelente ferramenta no planejamento sucessório, especialmente para quem possui patrimônio modesto e deseja evitar o inventário. A questão central está na forma como essa doação é estruturada - e é aí que entram as cláusulas restritivas, os encargos e a estratégia tributária.
Cláusulas que protegem o doador e o patrimônio
Ao doar um bem, é essencial incluir cláusulas que garantam proteção jurídica e evitem que o donatário (quem recebe) possa vender, transferir ou comprometer aquele patrimônio enquanto o doador estiver vivo. As principais são:
- Usufruto vitalício: o doador mantém o direito de uso e moradia, e essa condição é registrada na matrícula do imóvel. Mesmo que o bem esteja no nome de outra pessoa, ninguém pode vender ou alugar sem o consentimento de quem detém o usufruto.
- Inalienabilidade: impede que o imóvel seja vendido ou transferido.
- Impenhorabilidade: protege o bem contra dívidas do donatário.
- Incomunicabilidade: impede que o bem entre em eventual partilha em caso de casamento ou união estável.
Sem essas cláusulas, como no caso da novela, o bem se torna imediatamente disponível - e vulnerável. E o resultado pode ser o mesmo vivido por Raquel: o sonho da casa própria indo embora, por decisão alheia, sem chance de retorno.
A tributação da doação: o melhor momento é agora
A doação, embora mais econômica do que o inventário, também envolve custos - o principal é o ITCMD - Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, que varia entre 4% e 8%, a depender do Estado. Com a reforma tributária em curso, a tendência é clara: esse imposto vai aumentar, e estados já sinalizam elevações em suas alíquotas.
Por isso, o momento para planejar é agora. Antecipar a transferência patrimonial, com cláusulas de proteção e gestão correta da tributação, pode representar economia imediata e prevenção de litígios futuros.
Além disso, a morte - que exige abertura de inventário, pagamento de ITCMD, custas cartorárias e honorários advocatícios gera um custo global bem maior do que a doação antecipada e planejada. Muitas famílias que optam por "esperar" o falecimento do titular acabam enfrentando bloqueios, disputas e gastos que poderiam ter sido evitados.
Usufruto e inventário: o que você precisa saber
Mesmo que haja usufruto vitalício registrado, quando o titular falece, o usufruto se extingue automaticamente mas a regularização da situação ainda exige o processo de Inventário e o pagamento do ITCMD, custas e honorários advocatícios.
No entanto, dependendo do planejamento feito, é possível estruturar modalidades de usufruto reversível, temporário ou condicionado, de modo a minimizar a carga tributária e evitar disputas. Tudo depende de um estudo técnico do patrimônio e das intenções do titular.
Mais consciência, menos tributo
O caso de Raquel Acioli, embora fictício, reacende uma pauta fundamental: qual é a sua intenção ao transferir patrimônio? E, principalmente: você quer proteger seus bens ou apenas antecipar a herança?
Não se trata de criar estruturas sofisticadas como holdings em todos os casos - inclusive, no caso de um único imóvel, essa não seria a solução ideal. Mas sim de aplicar as ferramentas corretas, com responsabilidade jurídica e estratégia tributária, para garantir que aquilo que você conquistou com tanto esforço não seja perdido por desinformação ou impulsos familiares.
A doação é sim uma excelente opção - desde que feita com consciência, cláusulas e planejamento.
Não viva a experiência de tantas Raquéis por aí. Porque Marias de Fátima existem em muitas famílias - inclusive na sua.