MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A renegociação não é opção: É dever na era do superendividamento

A renegociação não é opção: É dever na era do superendividamento

O dever de renegociar dívidas, previsto na lei 14.181/21, surge como princípio essencial para enfrentar o superendividamento e garantir a dignidade do consumidor.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Atualizado às 13:35

A lei 14.181/21 inaugura um novo marco civilizatório nas relações de consumo, especialmente ao lidar com o fenômeno do superendividamento. Ela rompe com a visão tradicionalista centrada na autonomia absoluta da vontade e impõe limites ético-jurídicos à concessão e à cobrança de crédito. Nesse novo cenário, emerge com força um novo dever relacional: o dever de renegociar.

Esse dever não nasce de cláusulas expressas, mas dos deveres anexos à boa-fé objetiva, previstos implicitamente no CDC. Trata-se de um comportamento exigido pela função social do contrato e pela dignidade da pessoa humana, que impõe às partes, principalmente aos credores, a obrigação de cooperar ativamente na busca de soluções viáveis para o problema do superendividamento.

O consumidor superendividado não é um inadimplente comum. Ele é, por definição legal, uma pessoa física de boa-fé, em situação de impossibilidade manifesta de pagar suas dívidas, sem comprometer o mínimo existencial. Sua condição não é moralmente reprovável, mas sim juridicamente reconhecida como uma forma de vulnerabilidade acentuada, que exige proteção especial.

É por isso que o comparecimento dos credores à audiência de conciliação sem propostas efetivas de repactuação deve ser interpretado como afronta direta ao espírito da lei. A simples presença física ou virtual, sem disposição real de negociação, viola a boa-fé, frustra a função do procedimento e impõe ao magistrado a aplicação das sanções do art. 104, §2º, do CDC.

Nesse contexto, podemos extrair da nova legislação um princípio implícito: o princípio da obrigatoriedade da repactuação das dívidas. Ele decorre da leitura conjugada dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, da dignidade da pessoa humana e da vedação ao enriquecimento sem causa. A renegociação não é mais mera faculdade - é dever jurídico.

Esse novo princípio impõe a mudança de postura por parte dos credores. A lógica de maximização de lucros a qualquer custo não pode mais prevalecer. O crédito, enquanto instituto jurídico, deve cumprir função social. Isso significa que, diante de um consumidor superendividado, o credor deve atuar de forma colaborativa e responsável, contribuindo para a reconstrução da capacidade econômica do devedor.

A inércia do credor, sua omissão nas audiências ou a apresentação de propostas abusivas não são apenas práticas processualmente condenáveis. São manifestações de uma mentalidade ultrapassada, que enxerga o crédito como um instrumento unilateral de dominação econômica. A nova lei exige um olhar mais humano, mais ético, mais comprometido com o bem comum.

A superação do superendividamento depende, portanto, da superação do individualismo contratual. Já não se trata apenas de resolver um conflito entre credor e devedor. Trata-se de enfrentar um problema social que gera desemprego, exclusão, doenças mentais, aumento da criminalidade e desestruturação familiar. É um desafio coletivo, e não apenas jurídico.

A aplicação da Lei do Superendividamento exige dos juristas um novo olhar. É preciso abandonar o formalismo e adotar lentes sociais. Não se trata apenas de tratar da árvore - é preciso compreender que, ao cuidar de uma árvore, preservamos a floresta. Cada consumidor resgatado é uma vida restaurada, uma família reerguida, um ciclo de exclusão que se interrompe.

A lei não pertence apenas ao credor e ao devedor. Ela pertence à sociedade. É instrumento de reconstrução de vidas, de resgate de histórias quase apagadas pela humilhação, pelo medo e pela vergonha de não conseguir pagar contas básicas.

Interpretá-la com frieza, como se fosse mais um processo qualquer, é negar o sofrimento de mães que choram escondidas por não conseguirem alimentar seus filhos, de idosos perseguidos por dívidas impagáveis, de trabalhadores honestos que, diante de um imprevisto, foram empurrados para o abismo do crédito irresponsável.

A interpretação dessa lei deve ser guiada por um compromisso real com a justiça social, com a dignidade humana e com a construção de um sistema que veja o crédito não como uma armadilha, mas como um direito à esperança. O jurista que ignora isso não apenas aplica mal a norma - ele trai seu verdadeiro sentido. Trai o direito que deveria servir à vida, e não ao lucro sem limites.

Aplicar essa lei de maneira sensível, justa e eficaz não é apenas um ato jurídico. É um ato de cidadania. É um gesto de humanidade. É dar voz a quem foi silenciado pelas cobranças, pela vergonha, pela exclusão. É estender a mão a quem só conheceu a porta fechada. É dizer, com coragem e empatia, que a justiça existe não para punir os fracos, mas para protegê-los.

Sem a colaboração ativa e sincera dos credores, não haverá cura para essa chaga coletiva chamada superendividamento. Continuaremos tratando apenas os sintomas, enquanto a doença se alastra. E cada processo perdido, cada renegociação frustrada, será mais do que uma falha técnica: será a repetição de uma tragédia que tem nome, rosto, CPF e sonhos despedaçados. Que cada jurista, ao aplicar essa lei, lembre que está lidando com vidas. E que, com um ato de justiça, pode devolver a alguém não apenas o equilíbrio financeiro, mas a esperança de um novo começo.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca