Assumi a presidência da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), em 1º de janeiro de 1977. Tinha 32 anos e enfrentei esse desafio com muito receio, apenas confortado por ter na vice-presidência um sábio e experiente advogado, com fala pausada, que sempre trazia considerações marcadamente vindas de sopesada reflexão: Walter Ceneviva.
Já convivia com Ceneviva na diretoria da Associação, desde a gestão de Sérgio Marques da Cruz. Foi nossa tarefa a modernização da gestão, com a profissionalização da administração e o incentivo ao setor cultural. Sempre a palavra sábia de Ceneviva fazia-se presente.
Recordo um episódio relevante: o governo ditatorial editara decreto submetendo a OAB ao Ministério do Trabalho. Consegui, por via de amigo, colega de turma, então chefe de gabinete do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, uma audiência com o ministro para ponderar sobre o descabido dessa imposição, pois o advogado que litiga, na maioria das vezes, contra o Poder Público, não pode estar a este subordinado. Além do confronto político evidente.
Viajamos a Brasília, Sérgio Marques da Cruz, presidente; Walter Ceneviva, segundo secretário; e eu, primeiro secretário. Buzaid foi gentil na recepção, mas logo a questão tomou um caráter de contestação, pois o ministro negava conhecer tal decreto. Foi Ceneviva que sugeriu, com visão prática, consultar se não havia algum expediente sobre a matéria no ministério, pois constava ter tido nesta pasta a sua aprovação. O chefe de gabinete saiu à procura e efetivamente lá havia um processo, no qual constava, para surpresa de Buzaid, a sua concordância em despacho com a assinatura que eu tanto conhecia nos ofícios que assinava no exercício da diretoria da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
O constrangimento foi superado ao Sérgio Marques da Cruz sugerir que, se havia agora desacordo do ministro com o teor do decreto, que se trabalhasse para sua revogação. Fomos firmes, os três, nesta sugestão, que terminou por ser bem-sucedida, pois se seguiu a revogação do decreto que pretendia garrotear a OAB. Se tivesse sido mantida esta submissão, com certeza a Ordem não teria capitaneado o Movimento Pró-Diretas.
Esta orientação de colocar a AASP na linha de frente de uma política institucional, em favor do retorno do Estado de Direito, foi sempre incentivada e apoiada por Ceneviva, dando-me retaguarda necessária para assim caminhar no exercício da minha presidência, aliás, seguindo o caminho que vinha sendo pautado pelo meu antecessor, o ilustre advogado líder, depois bâtonnier, Mário Sérgio Duarte Garcia.
Foi com o apoio decisivo de Ceneviva que a grande maioria dos conselheiros da Associação subscreveu a Carta aos Brasileiros, lida em 8 de agosto de 1977 no pátio da Faculdade de Direito por Goffredo da Silva Telles, em cujo final se clamava por "Estado de Direito, já". Fomos os primeiros subscritores da Carta.
No dia 11 de agosto comemorava-se o Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos. Há dois fatos relevantes a serem lembrados, dos quais participou diretamente Ceneviva: a elaboração de placa a ser posta nas Arcadas, em homenagem à Faculdade. Significativo o texto proposto, fruto da colaboração conjunta de Ceneviva e Flávio Flores da Cunha Bierrenbach. Consta da placa hoje localizada na coluna em frente ao elevador dos professores:
"Da Associação dos Advogados de São Paulo à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a todos os bacharéis de São Paulo que, nestes 150 anos de ensino jurídico no país, reafirmaram o ideal do Estado de Direito, empenharam-se pelos direitos do homem, lutaram pela liberdade – Agosto de 1977".
Com estes dizeres temíamos que a Congregação da Faculdade de Direito, de perfil conservador, não aprovasse sua colocação, mas por fim autorizada. A palavra de Ceneviva era sempre incisiva e ponderada e pesou na construção do texto, direto na afirmação de valores democráticos, mas de forma serena.
Nas comemorações do 11 de agosto na Faculdade de Direito, coube à Associação indicar o advogado que falaria pela classe. Indicado foi Ceneviva, que, em frente a uma Congregação, como disse, de linha conservadora, não deixou no seu discurso de ressaltar o significado do ato do dia 8 anterior, a leitura da Carta aos Brasileiros, afirmando: "foi um momento culminante na união da cidadania em torno de um ideal", pois, parafraseando Goffredo, "a consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já".
Depois Ceneviva deu importante contribuição, fruto de seu saber como estudioso de Direito Constitucional, mormente no campo da liberdade de expressão, ao integrar comissão especial constituída na Associação para apresentar sugestões de alteração da Constituição, conforme solicitação do então ministro da Justiça, Petrônio Portella. Integravam a comissão: Goffredo da Silva Telles Jr., Celso Bastos, Manuel Alceu Affonso Ferreira e Walter Ceneviva. Estas importantes sugestões perderam-se com a morte de Portella, e antecipavam em muito as conquistas trazidas pela Constituição de 1988.
Saber e sabedoria podem ser a síntese veraz desse advogado que honra nossa classe, merecedor de todas as homenagens por sua profícua vida em favor da advocacia e da Justiça.
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*Miguel Reale Júnior é sócio do escritório Miguel Reale Júnior Sociedade de Advogados. Presidente da AASP de 1977 a 1978. Conselheiro federal da OAB de 1979 a 1982. Professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, medalha Santo Ivo e atualmente conselheiro do IASP.