Da anticrese legal na multipropriedade
Nada impede, faltando os pressupostos analisados, que a convenção estabeleça igual regime noutra situação jurídica, caracterizando-se a anticrese convencional.
quarta-feira, 6 de maio de 2020
Atualizado em 15 de maio de 2020 11:19
Introdução
Essas breves reflexões não têm o propósito de examinar o instituto da multipropriedade, que passou recentemente a integrar o nosso ordenamento jurídico. Tampouco o da anticrese, espécie de garantia real que foi mantida no atual Código Civil (CC), ao lado da hipoteca e do penhor, apesar de autorizadas vozes terem se insurgido contra essa orientação. Menos ainda da anticrese legal, que não existe no âmbito do CC, nem do anterior, nem do atual. Melhor dizendo: que não existia, porque a lei 13.777, de 20.12.18, que não teve prazo de vacância estipulado, introduziu, no vigente Código, o instituto da multipropriedade, e, ao regulá-la, contemplou a espécie de anticrese legal.
As singelas observações são feitas em homenagem a um leal e fraterno amigo que conheci na década de 1970, na PUC de São Paulo. No início de minha vida acadêmica, por indicação do professor Agostinho Neves de Arruda Alvim, de quem tive a ventura de ter sido aluno e a quem sucedi, por sua indicação, no magistério do Direito Civil da Faculdade, então denominada Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conheci alguns jovens professores que, por nomeação do então reitor da universidade, professor doutor Geraldo Ataliba, ocuparam o lugar deixado por vários e consagrados mestres, como Washington de Barros Monteiro, Nicolau Nazo, Paulo Bonilha, além do professor Agostinho Alvim. Em seus lugares, vieram, para lecionar Direito Civil: Rui Geraldo Camargo Viana, José Osório de Azevedo Júnior, Renan Lotufo, Jorge Lauro Celidônio, Ronaldo Porto Macedo e Walter Ceneviva. Pouco tempo depois, somou-se a estes a sempre querida e admirada professora Maria Helena Diniz, presente até hoje nos quadros da PUC. Foi com esse grupo que convivi e iniciei minha função acadêmica. Walter Ceneviva, sempre muito espirituoso, granjeou dos colegas e de seus alunos enorme admiração e respeito.
Tinha o dom para ensinar e transmitir sua já vasta experiência como exímio e leal advogado.
Consagrou-se como jurista, tendo escrito obras importantes e de grande serventia para o mundo do Direito, em especial na área dos direitos reais.
Por isso, escolhi, para homenageá-lo, um tema ligado a esta parte do Direito Civil e aguardo dele suas delicadas e elegantes críticas.
Da anticrese
A anticrese é uma espécie de direito real.
Integra a relação de direitos reais contemplados pelo art. 1.225 do CC brasileiro. Está referida no inciso X daquele dispositivo. Sua disciplina encontra-se no Capítulo IV do Título X do Livro III da Parte Especial, arts. 1.506 a 1.510, bem como nas disposições de cunho geral, pertinentes às garantias reais, contidas nos arts. 1.419 a 1.430 do mesmo diploma legal.
Trata-se de um direito real de garantia disciplinado juntamente com a hipoteca e o penhor.
A garantia que a anticrese oferece consiste na percepção dos frutos e rendimentos atribuída ao credor, com a entrega, pelo devedor ou por terceiro, de um imóvel urbano ou rural. Em compensação da dívida e de seus acessórios, o credor anticrético recebe o imóvel do devedor ou de terceiro, o qual fica sujeito, por vínculo real (art. 1.419), ao cumprimento da obrigação, mediante a percepção dos seus frutos e rendimentos (art. 1.506). O credor anticrético, diferentemente do credor hipotecário e do credor fiduciário, tem a posse direta do imóvel, pois somente assim poderá exercer seu direito de fruir as utilidades da coisa, nisso consistindo sua garantia. Em relação ao penhor comum, conquanto o credor pignoratício tenha também a posse direta ou imediata da coisa empenhada, como o credor anticrético, essa posse não se presta a identificar uma e outra espécie de garantia, pois enquanto o anticrético usa a coisa objeto da garantia e frui suas utilidades, o pignoratício dela não pode servir-se.
Observa-se, por essas noções introdutórias, que há aspectos diferenciadores entre as espécies de garantias reais. Mas há também características que são comuns.
Além da referência feita à posse, podem ser destacadas, dentre outras, as seguintes semelhanças das garantias reais: somente quem pode alienar a coisa poderá ofertá-la em garantia, e somente o que pode ser alienado poderá ser gravado com hipoteca, penhor e anticrese; se o imóvel for objeto de condomínio, nada impede que o condômino grave a sua parte ideal, mas para constituir garantia real de toda a coisa, é necessária a anuência de todos os condôminos; nas três espécies de garantia, é imperiosa a precisa indicação da coisa gravada, com suas especificações, bem assim a indicação do valor do crédito, ou sua estimativa, o prazo para pagamento, a taxa de juros, se houver; também é comum às garantias reais o pacto comissório, ou seja, a proibição, mesmo com autorização contratual, de o credor garantido ficar com a coisa objeto da garantia. Ao rol de semelhanças, acrescente-se o poder que o proprietário mantém de alienar o bem hipotecado, empenhado ou dado em anticrese, ato que não acarreta a extinção do gravame.
Em contrapartida, há algumas diferenças entre as garantias reais, lembrando-se, a propósito, o direito de excussão, que compete ao credor hipotecário e ao credor pignoratício, enquanto o credor anticrético tem o direito de reter o bem dado em anticrese, pelo prazo máximo de 15 anos, contados de sua constituição, até que a dívida seja paga, podendo ainda arrendar o bem a terceiro, se não houver proibição contratual.
Importante referir, desde já, que o CC, ao disciplinar a hipoteca e o penhor, dedicou alguns dispositivos alusivos à hipoteca legal e ao penhor legal, considerando situações determinadas que, independentemente da vontade das partes envolvidas, acarretam a existência da garantia.
Relativamente à anticrese, porém, não há nenhum preceito sobre a anticrese legal.
Segundo opiniões várias, a anticrese é uma espécie de garantia que se afasta das regras modernas de circulação econômica, pois disponibiliza a coisa apenas em favor de um só credor, que ainda assumirá o pesado ônus de administrá-la eficazmente, para obter os frutos necessários à extinção do débito. Além disso, o devedor fica privado do poder fático sobre o seu bem imóvel, fato que contribui negativamente ao enfrentamento das dificuldades para cumprir a obrigação contraída perante o credor anticrético. Só isso é suficiente para afirmar que a anticrese não se compatibiliza com a função social da propriedade, pela própria dificuldade de o proprietário, desapossado, obter novos créditos, em decorrência da anterior anticrese.
Ante tais observações, não são poucos os que dizem que o legislador não deveria ter perpetuado a anticrese no CC de 2002.
Sendo assim, que importância atualmente poderia suscitar o tema? E mais. Faz sentido tratar da anticrese legal, se nem o diploma anterior contemplava esse tipo de garantia, que decorre não da vontade das partes, mas diretamente da lei?
A explicação encontra-se na edição de uma lei, ainda recente, que cuidou do tema. Trata-se da lei 13.777, de 20.12.18, que dispôs sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro, inserindo no CC e dando nova redação a vários dispositivos da Lei de Registros Públicos. No CC, esta lei acrescentou os arts. 1.358-B a 1.358-U, enquanto na Lei de Registros Públicos, lei 6.015, de 31.12.73, introduziu modificações nos arts. 176 e 178. Dentre os acréscimos, parece ter contemplado a anticrese legal na multipropriedade.
O texto que autoriza essa afirmação é o preceito contido no art. 1.358-S, parágrafo único, inciso III, do CC, dispositivo, como se disse, acrescentado pela lei 13.777/18, e que tem a seguinte redação:
"Art. 1358-S - Na hipótese de inadimplemento, por parte do multiproprietário, da obrigação de custeio das despesas ordinárias ou extraordinárias, é cabível, na forma da lei processual civil, a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo correspondente.
Parágrafo único. Na hipótese de o imóvel objeto da multipropriedade ser parte integrante de empreendimento em que haja sistema de locação das frações de tempo no qual os titulares possam ou sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência: [...]
III - a administradora do sistema de locação fique automaticamente munida de poderes e obrigada a, por conta e ordem do inadimplente, utilizar a integralidade dos valores líquidos a que o inadimplente tiver direito para amortizar suas dívidas condominiais, seja do condomínio edilício, seja do condomínio em multipropriedade, até sua integral quitação, devendo eventual saldo ser imediatamente repassado ao multiproprietário".
O instituto da anticrese legal está, assim, consubstanciado na prerrogativa consistente na utilização dos valores líquidos cabíveis ao inadimplente para amortização de suas dívidas condominiais. Sem que a lei tivesse utilizado o termo "anticrese legal", dela tratou ao permitir que, em compensação de dívida, os frutos do bem imóvel fossem utilizados.
Esta faculdade, percepção de frutos e rendimentos, implica o direito real de garantia da espécie anticrese; e como ela resulta diretamente da lei, não da convenção, a anticrese se diz legal.
Para que essa garantia legal fique precisamente configurada, é preciso sejam satisfeitos vários requisitos.
Da multipropriedade
O primeiro pressuposto é tratar-se de uma situação jurídica de multipropriedade.
Consoante o disposto no art. 1.358-C do CC, a multipropriedade caracteriza-se como um regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, que deverá ser exercida por todos de forma alternada.
Se o regime é de condomínio, todos os condôminos têm na coisa comum o mesmo interesse.
Nesse sentido, a multipropriedade praticamente identifica-se com o condomínio voluntário ou forçado, disciplinado pelo CC nos arts. 1.314 e seguintes.
No entanto, dele se distancia, porque o uso e gozo, no regime do condomínio clássico, segundo terminologia empregada por alguns estudiosos, são direitos exercidos em conjunto e de maneira compatível com o interesse de todos. Isto é, o uso de um condômino não pode excluir o mesmo direito que outro tem na coisa comum. Na multipropriedade, como está referido na lei, o direito de uso e gozo é exercitado com exclusividade por um dos multiproprietários, como se proprietário único fosse, tendo por objeto o imóvel todo. Esta prerrogativa faz com que a multipropriedade se avizinhe do condomínio edilício, em que cada condômino é dono exclusivo de sua unidade autônoma. Mas também com ele não se confunde, além de que podem coexistir a multipropriedade e o condomínio edilício. A multipropriedade, na falta de uma melhor identidade, é um condomínio temporal, isto é, num determinado lapso de tempo, o multiproprietário é dono exclusivo do imóvel todo submetido a esse regime, reunindo em suas mãos os poderes do proprietário, de uso, gozo, disposição e reivindicação.
O poder de disposição pode ser exercido pelo multiproprietário a qualquer tempo; os de uso e gozo, somente durante o período temporal que lhe competir por convenção estabelecida, que necessariamente não requer seja igual para todos.
Há várias disposições no CC, introduzidas pela lei 13.777/18, que cuidam de direitos e obrigações do multiproprietário, como tantas outras que se referem à administração da multipropriedade.
O exame mais abrangente refoge ao propósito destes breves comentários. O que se pretendeu, com estas observações acima, foi apenas oferecer os contornos do instituto, insistindo-se que a multipropriedade tem lugar em condomínios edilícios e em condomínios voluntários.
A anticrese legal aparece na seção destinada a disposições específicas relativas a unidades autônomas de condomínios edilícios. Portanto, pode-se acrescentar um segundo pressuposto na análise que constitui o objeto do artigo, qual seja: só tem lugar a anticrese legal se a multipropriedade referir-se a unidades autônomas de condomínios edilícios, cujo regime jurídico está minuciosamente estabelecido pelos arts. 1.331 a 1.358 do CC. Se se cuidar de uma situação jurídica de multipropriedade que não seja referente a unidades autônomas de um condomínio edilício, não há lugar para invocar a garantia da anticrese, a menos que ela tenha sido objeto de convenção. Caso, então, de anticrese convencional, não legal.
4 Do inadimplemento obrigacional Um terceiro pressuposto, obviamente, é a caracterização do inadimplemento das obrigações legais e convencionais do multiproprietário. Para que a garantia possa "funcionar", é indispensável que o inadimplemento esteja perfeitamente caracterizado, lembrando que nosso sistema adotou, como regra, a mora ex re, ou seja, considera-se em mora o devedor que, culposamente, não cumpre sua obrigação no tempo, na forma e no modo devidos, independentemente de prévia interpelação, destacando-se os elementos subjetivo e objetivo do inadimplemento. Se for convencionada a mora ex persona, faz-se necessária a prévia interpelação.
Não são, impõe observar, quaisquer obrigações do multiproprietário, mas apenas as de custeio das despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio.
Ordinárias são as despesas que se entendem necessárias à administração, aquelas que se referem a gastos rotineiros de manutenção do condomínio; e extraordinárias, ao contrário, as que dizem respeito, a título de exemplo, à reposição das condições de habitabilidade, as obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura do imóvel.
A Lei de Locações, lei 8.245, de 18.10.91, alude às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio edilício, nos arts. 22, inciso X, e 23, inciso XII, respectivamente, sem, contudo, esgotar o número delas. Se o multiproprietário der em locação a fração temporal de que é titular, responde, perante o condomínio, tanto pelas despesas extraordinárias quanto pelas ordinárias, podendo, no entanto, exigir estas últimas daquele em favor de quem constituiu a locação. Perante a administração do condomínio, o multiproprietário é o responsável pelas despesas de custeio, ainda que tenha pactuado a isenção de sua responsabilidade, no contrato de locação, ou de comodato. Noutras palavras, esta cláusula contratual não opera efeitos em relação ao condomínio em multipropriedade, que não tem, não é demais lembrar, personalidade jurídica, não constituindo um ente de direito.
Do sistema denominado pool
Como corolário desse terceiro pressuposto, isto é, do inadimplemento, decorre o direito, garantido por anticrese legal, do condomínio de compelir o multiproprietário ao cumprimento das obrigações relativas ao custeio, compreendendo as despesas ordinárias e extraordinárias. Mas esse direito, cumpre destacar, somente existe se estiverem presentes dois sub-pressupostos: o primeiro refere-se à existência de um sistema instituído pela convenção de condomínio, em que os condôminos possam, ou sejam obrigados a, locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, mediante a repartição das receitas da locação independentemente da efetiva ocupação da cada unidade, constituindo o que se denomina um pool, cujo significado equivale a um grupo de pessoas que trabalham em conjunto para um mesmo fim, uma espécie de consórcio, ou ainda uma associação de interessados que se propõem a realizar um projeto específico; o segundo sub-pressuposto está na prerrogativa livre de se constituir esse sistema por meio da convenção do condomínio, ou seja, o sistema de pool deve necessariamente ser autorizado pela convenção. Havendo cláusula nesse sentido, o multiproprietário inadimplente ficará proibido de exercer seus direitos de uso e gozo no período que lhe é reservado, até que quite a dívida; a sua fração de tempo passará a integrar o pool da administradora; e a administradora se municiará de poderes para utilizar os valores líquidos a que tiver direito o multiproprietário inadimplente. Caso contrário, isto é, não havendo previsão na convenção de condomínio, o inadimplente deverá ser compelido à purgação de sua mora mediante os expedientes jurídicos e judiciais comuns colocados à disposição do credor, tanto pela legislação substantiva quanto pela adjetiva. Assim, para se poder falar em anticrese legal, é indispensável que a administração do condomínio temporal esteja no regime de pool e que haja previsão na convenção condominial, além evidentemente da satisfação dos demais pressupostos que estão sendo apontados. Que fique assentado, porém, que a ausência desses requisitos não impede seja convencionada, entre devedor e credor, a garantia consistente na anticrese. Caso de anticrese convencional, não legal.
Conclusões
A multipropriedade, embora não seja uma novidade entre nós, pois de há muito tempo ocorre, passou a integrar nosso ordenamento jurídico com a edição da lei 13.777, de 20.12.18, que acrescentou ao CC os arts. 1.358-B ao 1.358-U. Trata-se de um condomínio temporal, em que o condômino tem, como o dono, os direitos de a qualquer tempo dispor, gravar e reaver a fração que tem num imóvel urbano ou rural, podendo a esse objeto, além de suas pertenças, acrescer acessórios vários. Os direitos de uso e gozo, o multiproprietário tem, com exclusividade, durante o período estabelecido em convenção, que não pode ser inferior a sete dias.
A multipropriedade pode incidir sobre bens em condomínio voluntário ou em condomínio edilício.
As despesas de custeio, sejam ordinárias, sejam extraordinárias, são devidas pelo multiproprietário.
Ocorrendo o inadimplemento dessa obrigação, poderá ele ser compelido por ação própria, segundo os expedientes judiciais previstos na legislação processual civil. Para garantir o cumprimento dessa obrigação, e desde que a multipropriedade incida sobre imóveis em condomínio edilício, poderá a administração, se a convenção autorizar e o sistema adotado for o de pool, apropriar-se dos frutos e rendimentos do imóvel, percebidos no período afeto ao multiproprietário, o que caracteriza a garantia real denominada anticrese. E como essa prerrogativa decorre da lei, trata-se de anticrese legal. Nada impede, faltando os pressupostos analisados, que a convenção estabeleça igual regime noutra situação jurídica, caracterizando-se a anticrese convencional.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.
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*Carlos Alberto Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP, no curso de graduação, e na especialização da Cogeae da PUC/SP. Advogado.