Direito à moradia, ocupações irregulares, regularização fundiária e segurança pública
A falta de moradia para a população de baixa renda, principalmente nas grandes e médias cidades, tem dado causa às invasões e loteamentos irregulares, que vêm se constituindo num dos maiores problemas da atualidade, como a desagregação social.
quarta-feira, 13 de maio de 2020
Atualizado em 15 de maio de 2020 11:25
Introdução
A falta de moradia para a população de baixa renda, principalmente nas grandes e médias cidades, tem dado causa às invasões e loteamentos irregulares, que vêm se constituindo num dos maiores problemas da atualidade, como a desagregação social.
Tal fato se deve ao aumento da população e ao êxodo rural, os quais, aliados à falta de uma política habitacional eficiente, têm sido causa da desestruturação urbana e do aumento da criminalidade. Neste trabalho, nos propomos a examinar a contribuição que a regularização fundiária urbana pode dar para a redução da criminalidade e consequentemente da violência urbana.
Para tanto, impõe-se a abordagem de dois temas correlatos e que, de há muito, foram objeto de estudos por parte do homenageado desta obra, o consagrado jurista e advogado Walter Ceneviva: o direito à moradia e à segurança pública. Atento às questões sociais e de cidadania, ele já afirmava: "Enquanto o direito de morar não for assegurado, nossas comunidades serão centros desequilibrados". E que:
"o direito de morar é fundamental. Enquanto não for assegurado, nossas comunidades serão sempre centros de convivência e, portanto, injusto para todos" (CENEVIVA, 2008).
De outra parte, na sua obra Direito Constitucional Brasileiro, alertava para a necessidade de "garantir o exercício dos direitos fundamentais aos cidadãos, em especial a segurança pública, direito fundamental predominantemente difuso, interligado à própria noção de dignidade humana, que deve ser prestado por meio de políticas públicas do Estado, de forma adequada, eficiente e eficaz" (CENEVIVA, 1991, p. 239).
Realmente, a falta de moradia para a população carente tem levado à formação de assentamentos irregulares, sem a mínima estrutura, serviços básicos, áreas verdes e institucionais. Consequentemente, as pessoas que ali vivem, sem a presença do Estado, se constituem num alvo fácil para a expansão do crime, geralmente comandado por organizações criminosas, onde encontram um campo propício para o tráfico e outras práticas criminosas.
E, neste ponto, entra a regularização fundiária urbana, que, incluindo medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, com a finalidade de integrar assentamentos irregulares ao contexto legal das cidades e garantir o direito à moradia de seus ocupantes, se constitui num instrumento de grande relevância para funcionar como mais um elemento para combater a situação de violência e insegurança que a nossa sociedade vem enfrentando.
O direito à moradia
O direito à moradia, reconhecido como um direito humano pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10/12/1948, foi ratificado pelo Brasil em diversos pactos e convenções da ONU1 e reafirmado na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos - Habitat III, de 1996, sendo incluído na Constituição brasileira de 1988 como um dos direitos sociais (art. 6º).
Importante observar que esse direito, um direito social, abarca muito mais do que um lugar para morar. Segundo o pacto social, além da qualidade adequada, com acesso à água, energia elétrica, saneamento, a ONU ressalta a importância das condições de infraestrutura local da moradia, como a instalação de escolas, hospitais e transporte.
No dizer de Edésio Fernandes (2006, p. 19), "deve ser entendido aqui em sentido amplo, isto é, o direito de todos viverem em condições dignas, adequadas e saudáveis, do ponto de vista urbanístico e ambiental".
E para assegurar o seu exercício, é indispensável, segundo observa Claudia Maria Berré (2007, p. 249), "que o Poder Público tenha políticas de acesso à habitação para a população de baixa renda, que não tem condições de adquirir sua moradia a preços de mercado".
Entretanto, como as políticas habitacionais implantadas pelo Poder Público não têm sido suficientes para solucionar o problema, temos assistido a uma série de ocupações irregulares, através de invasões, principalmente em áreas públicas ou de proteção ambiental, assim como por meio de loteamentos clandestinos.
Conforme já sustentamos, "O direito à moradia, portanto, está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana em sentido concreto, pois ela não é uma essência que explica somente o ser humano, mas a natureza dele que parte de uma série de ações: proteger--se, trabalhar, deslocar-se, comunicar-se, estabelecer laços etc., no que se insere o direito a ter uma habitação que lhe garanta executar ações ínsitas de sua própria natureza, de tal modo a atingir-se a plenitude de seu bem-estar, reconhecendo--se como ser o indivíduo no seio da sociedade" (FREITAS; TEODORO, no prelo).
Em suma, uma moradia digna, conforme adverte Gerardo Pisarello, "é fundamental para a sobrevivência e para uma vida decente, em paz e segurança. Isso faz do direito à moradia um direito composto, cuja transgressão acarreta a de outros direitos fundamentais. Sua violação põe em risco o direito a um emprego, que se torna difícil de assegurar e manter; dificulta o direito à educação, afeta o direito de escolher residência, privacidade ou vida familiar, e até condiciona os direitos de participação política" (PISARELLO, 2004).
Das ocupações irregulares: invasões e loteamentos ilegais
Generalidades
As ocupações irregulares de áreas públicas ou privadas e de proteção ambiental pela população de baixa renda têm se dado através de invasões ou loteamentos ilegais.
Tal circunstância, implicando o crescimento desordenado dos municípios, com aglomerações humanas em áreas degradadas, principalmente nas periferias, tem dado causa ao que os estudiosos da matéria houveram por bem designar como as "cidades ilegais".
A população, como destaca Cynthia Thomé (2017, p. 65), "[...] necessita de moradia, mas não tem condições de arcar com o alto custo de uma moradia digna. Busca, então, satisfazer a necessidade de acordo com suas condições individuais, ocupando áreas destituídas de interesse econômico, muitas vezes ambientalmente frágeis e sem qualquer infraestrutura. Essa forma de ocupação não proporciona ao morador acesso a saúde, educação e lazer, além de dificultar sobremaneira o acesso ao trabalho em razão da distância a ser necessariamente percorrida. Tais condições prejudicam a qualidade do ser humano e de nossa sociedade".
Neste ponto, oportuna a lição de Gustave Fischer, ao afirmar que o problema é internacional e que:
"Hoje nossas sociedades industrializadas e mais particularmente nas grandes cidades, subsistem populações mal alojadas ou simplesmente sem abrigo que, para saírem da sua condição e da sua precariedade, 'ocupam'. O fenômeno da ocupação faz luz sobre o problema dos mal alojados e dos sem abrigo nas nossas sociedades e da contradição, que parece inerente às grandes cidades, entre o facto de existir um certo número de alojamentos desocupados e aqueles que não possuem abrigo e não terem qualquer direito de os ocupar" (FISCHER, 1994, p. 189).
E, prosseguindo, afirma:
"Ocupar é um acto de tomada de posse de uma casa cujo acesso é objetivamente recusado. Trata-se de uma resposta de urgência a situações desesperadas, em que pessoas colocadas, em razão das suas condições difíceis, perante uma alternativa radical - a rua ou a ocupação - escolhem a apropriação de um espaço proibido. Podemos medir neste tipo de acto o peso da miséria, mas, sobretudo, o valor de uma resistência contra a exclusão e a desapropriação. Na verdade, as novas formas de pobreza resultantes do desemprego e da privação brutal de recursos traduzem-se nos nossos dias em formas de novas desterritorializações no espaço urbano, das quais a expulsão é uma das mais conhecidas: os pobres no espaço urbano contemporâneo são indivíduos que muitas vezes já não têm casa e pode-se dizer que uma das marcas da pobreza e da exclusão é a perda de um território" (op. cit., p. 191).
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1 Convenção sobre os Direitos da Criança; Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; Convenção Internacional contra o Racismo; Convenção Americana dos Direitos Humanos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc).
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.
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*Gilberto Passos de Freitas é desembargador aposentado do TJ/SP. Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Professor titular do curso de pós-graduação da UniSantos. Advogado e consultor jurídico.