Ao ilustre mestre
"O professor Walter alicerçou o nosso conhecimento sobre os princípios fundamentais do Direito de forma indelével."
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Atualizado às 07:40
De início, confesso que, ao ter sido convidada para prestar uma homenagem ao professor Walter Ceneviva, senti-me muito lisonjeada, e, como não dizer, também homenageada e orgulhosa de ter sido sua aluna.
O professor nos conduziu durante os cinco anos da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), quando pudemos conviver com sua sabedoria, sua elegância e sua sutil autoridade, sem contar a enxurrada de boas lembranças de um período de muito aprendizado.
Lembro-me bem do meu primeiro dia de aula, no início de 1980, quando o elegante e impecável professor ingressou na sala, olhou-nos carinhosamente e perguntou com a sua "voz de veludo": quem é a filha do Mário? Essa pergunta fez-me sentir grande e, ao mesmo tempo, encabulada diante dos colegas que ainda não conhecia.
Em seguida, lançou um desafio a todos os alunos: responder a uma pergunta no primeiro dia de aula - por que quero ser advogada(o)?, ou algo como: por que escolhi estudar Direito?
Naquele momento, brotou em mim um misto de surpresa e de inquietação: será que o professor quer conhecer a nossa redação? Será que quer saber se temos perfil para a profissão? Mal poderíamos imaginar que ele devolveria as nossas respostas na última aula do quinto ano do curso.
Agora, passado tanto tempo, continuo a admirar a sua paciência em guardar e até comentar algumas das respostas dadas como demonstração de carinho, respeito e dedicação deste verdadeiro mestre.
O professor Walter, que nos acompanhou durante os cinco anos daquela jornada acadêmica, alicerçou o nosso conhecimento sobre os princípios fundamentais do Direito de forma indelével, algo que fui sentindo, de fato, ano a ano, mesmo após a conclusão do curso.
Ao longo desses 35 anos, a cada dia reconheço a riqueza do conjunto traduzido no famoso "tijolinho", embalado nos braços do professor Walter Ceneviva, quando trilhava os corredores da PUC.
Não demorou muito para eu perceber a qualidade da formação recebida e sentir a mais sólida sensação de que tinha alcançado a condição necessária ao exercício da profissão que abraçara. É claro que rendo aqui minhas homenagens ao conjunto dos professores que tive durante o curso. Mas não há como negar que a boa formação em Direito Civil, principal ramo do Direito Privado, cuja origem se assenta no Direito romano, vem ao encontro do que desejamos identificar em um profissional do Direito realmente qualificado.
Ao enfrentar os primeiros desafios da profissão, deparei-me com a inusitada atividade, que absorvi como missão: a defesa dos consumidores. Nesse momento pude perceber o quanto a lei não era suficiente, mas os princípios, sim. A noção de que a regulação de direitos privados esbarrava também na ética com um marcante viés em prol dos interesses da sociedade começou a transparecer para a então jovem profissional. Essa atividade acabou por envolver a participação na elaboração do Código de Defesa do Consumidor, ao lado de renomados professores e de inestimáveis colegas.
Em um encontro informal com o professor Walter Ceneviva, já estava prestes a lhe pedir desculpas por pensar na insuficiência do Código Civil para abarcar e disciplinar essa relevante vertente do Direito, das relações de consumo, quando ouvi do notável mestre que se orgulhava de ver alunos envolvidos em uma importante missão de romper os limites da norma que não mais atendia aos anseios da sociedade. Esse seu endosso foi para mim a grande chancela para que seguisse firme, adotando sempre um comportamento sério, ético e profissional.
Há cerca de oito anos, envolvi-me, em caso pessoal, com uma questão afeta ao campo dos registros públicos. Nessa oportunidade, percebi que o aprendizado recebido foi crucial para enfrentar, com argumentos próprios, a "causídica", a qual tutelava interesses de uma construtora. Apresentada e endossada a minha posição com o mestre Walter, e com a garantia do seu parecer caso a questão fosse judicializada, informada a parte contrária da minha consulta ao mestre, o embate foi definitivamente resolvido. A meu favor, claro!
Mas não é só. O professor Walter também será sempre lembrado por suas metáforas. Aproveito para apresentar uma situação em que me vi "plagiando" o professor, valendo-me de metáfora de sua autoria, em sintonia com sua análise em caso distinto. Em sala de aula, flagrei-me utilizando expressão do mestre homenageado, que citou Caetano Veloso, em um artigo publicado no periódico do Consultor Jurídico, para qualificar o resultado final de um processo, que é "o avesso do avesso do avesso". O professor assim se referiu em um artigo publicado no Conjur em março de 2019, que abordava a gestão de recursos da Petrobras, capturados pelo Ministério Público Federal, dando conta à sociedade do papel constitucional do parquet e do resultado dicotômico da sua ação que enfraqueceu, sobremaneira, o patrimônio nacional; entenda-se, a "instituição" Petrobras.
Refletindo a respeito da Lei Geral de Proteção de Dados, certa vez, mencionei aos meus alunos da Faculdade de Direito da PUC/SP que a utilização de dados para conhecimento do nosso perfil e o intuito de, a partir daí, invadir a nossa vida por meio da oferta de produtos ou de serviços, mereceu, recentemente, atenção especial do legislador. Isso ocorreu, de verdade, quando legislação semelhante foi implantada na Comunidade Europeia, impondo fortes restrições à realização de negócios comerciais com países que ainda não contam com disciplina normativa específica. Na oportunidade, flagrantemente, acabei falando que, apesar de o direito de personalidade ser o principal bem de um indivíduo, o que de fato motivou a edição da lei foram os interesses comerciais. Assim, disse: "é o avesso do avesso do avesso, parafraseando o professor Walter Ceneviva". E então digo: "não! Caetano Veloso!".
Para concluir, devo dizer que o professor homenageado demonstrou sempre estar à frente de seu tempo, tanto ao transmitir em suas aulas os conhecimentos acumulados como em obras publicadas, acrescentadas das pitadas de sua ironia inteligente e de sua clara e perspicaz análise jurídico-literária.
Salve, querido mestre!
Agradeço à AASP por esta inestimável oportunidade de poder registrar, em poucas palavras, a minha honra e o meu orgulho (ao lado da minha sorte!) de ter feito parte do seu corpo discente!
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.
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*Mariângela Sarrubbo Fragata foi assistente de Direção do Procon-SP. Subprocuradora-geral do Estado. Defensora pública geral interina. Procuradora do Estado assessora da Assessoria Técnico-Legislativa. Procuradora do Estado chefe do Centro de Estudos da PGE-SP. Procuradora do Estado assessora da Assessoria Jurídica do Gabinete da PGE. É advogada. Professora da Faculdade de Direito da PUC/SP. Membro do Conselho Diretor do Idec e da Diretoria do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).