Como conheci e passei a admirar Walter Ceneviva
Reconheço com sinceridade que ele foi um dos grandes responsáveis, também, pelo meu aprimoramento e formação humanística, como magistrado e esforçado professor.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
Atualizado às 11:26
Sempre fui muito tímido.
Para tentar comprovar tal afirmação, tomo a liberdade de, em rápidas palavras, contar certos fatos ocorridos durante minha existência de quase 76 anos.
Era estudante de Direito do primeiro ano e, embora tímido, enchendo-me de incrível coragem, inscrevi-me num curso de oratória patrocinado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto aos sábados depois das aulas da manhã. Essa ousadia tinha como objetivos a luta e a completa eliminação desse terrível defeito.
Após uma ou duas aulas teóricas, dadas em sala, cada aluno recebeu a tarefa de, em sábados previamente designados, discursar da tribuna pública até hoje existente no Largo São Francisco às pessoas porventura passantes e aos demais alunos do curso. As aulas tiveram transcurso normal e foram por mim muito bem assimiladas até o sábado em que eu deveria proferir o meu discurso. Isso porque a timidez levou-me não apenas a outro local bem distante, para tentar domar meu nervosismo bebendo cervejas, mas também a abandonar o curso sem dar satisfações. O país certamente perdeu um grande orador...
Felizmente a inibição não me privou de grandes e inúmeras amizades com colegas e contemporâneos, por sinal até hoje cultivadas. Participei com esses amigos de memoráveis "penduras", bailinhos, reuniões, encontros, grupos, brincadeiras, conversas no pátio da faculdade e viagens. Mas, sempre mantendo postura reservada.
Lembro-me com saudades, dentre outros fatos pitorescos, do sequestro praticado por estudantes - episódio que contou com minha ativa participação - da estátua "Beijo Eterno" ou "Idílio", construída em 1920 pelo escultor sueco William Zadig por encomenda do Centro Acadêmico XI de Agosto para homenagear o poeta Olavo Bilac, morto em 1918 - e que por isso se tornara peça querida dos alunos -, representando o amor entre um jovem francês e uma índia. Acontece que a escultura sempre provocara escândalo e polêmica na sociedade paulistana conservadora por mostrar um beijo inter-racial, tendo sido muito censurada por boa parte da população e até tachada por alguns como "obra do demônio", circunstância que a levou a ficar por longos e alternados períodos de tempo em locais diversos, inclusive jogada em depósitos da Prefeitura, até o prefeito Faria Lima determinar, em 1966, com grande discrição, a colocação da estátua - tão cara aos estudantes - no jardim de entrada do Túnel 9 de Julho, sentido cidade. Inconformados com o desprezo e pouco caso das autoridades em relação aos pobres amantes, condenados a permanecerem no meio de tanta poluição provocada pela fumaça dos veículos, os alunos resolveram certa noite realizar o sequestro e remoção do "Idílio" para o Largo São Francisco, lugar onde deveria ter sempre ficado, e onde os amantes permanecem beijando-se até hoje...
Apesar do ótimo relacionamento com os amigos da faculdade, em decorrência da minha completa inibição, sempre tive comportamento quieto e raramente me manifestava ou expunha minhas ideias ou pensamentos. Essa circunstância fez-me merecedor do apelido que jocosamente os amigos colocaram-me, de "Líder", exatamente o oposto à minha personalidade. Até hoje, por causa do meu eloquente e ensurdecedor silêncio ao tempo das Arcadas, vez por outra ainda sou assim chamado nos nossos encontros, felizmente ainda repetidos. Já como juiz de Direito, em várias ocasiões, durante solenidades civis e militares realizadas no interior, em recintos fechados ou em público, após os discursos das diversas autoridades presentes, davam-me a palavra e eu, vermelho de vergonha, limitava-me a balbuciar "nada tenho a dizer", passando, certamente, a equivocada imagem de arrogante e mal-educado.
Não me esqueço, ainda, de acontecimento inusitado ocorrido na cidade de Iguape: ainda juiz solteiro, fui convidado para presidir um concurso de beleza beneficente de Miss Iguape, com a participação, no júri, do padre, do promotor, do delegado e de outras autoridades locais, recebendo a garantia de que só votaria no caso de empate. Abro um parêntesis para expor rapidamente meu pensamento a respeito de como deve comportar-se o juiz no interior. Entendo que ele não pode manter postura distante da sociedade e de seus jurisdicionados, colocando-se numa torre de marfim inatingível. Cabe-lhe, mantido o devido e recíproco respeito, participar solidariamente das campanhas sociais e preocupações locais. Voltando ao que dizia, acabei aceitando o convite para participar do concurso, principalmente porque tinha certeza de que não precisaria expor minha inibição e proferir voto. Mas, outra coisa aconteceu: empate entre duas belíssimas candidatas finalistas, e eu, completamente envergonhado, sem saber para onde olhar, tive de fazer difícil opção! É a Lei de Murphy, segundo a qual, se algo pode dar errado, dará... Principalmente como merecido castigo para um tímido...
Acredito ter convencido a todos a respeito da minha enorme e indesejável timidez.
Pois bem.
Transcorria o ano de 1976, era juiz de Direito em Diadema e, certo dia de um final de semana, por acaso encontrei o amigo e contemporâneo da faculdade José Roberto Maluf, ex-presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, hoje presidente da TV e Rádio Cultura.
Durante o agradável reencontro, Maluf contou-me que era colega de escritório de Walter Ceneviva, com quem também dava aulas de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Em dado momento, inesperadamente me perguntou: "Franceschini, você gostaria de dar aulas?". E eu, surpreso, respondi: "Maluf, você me conhece, sou muito tímido, calado, e não tenho essa vocação!".
Cabe dizer que não conhecia Walter Ceneviva pessoalmente, só através da leitura de sua coluna "Letras Jurídicas", no jornal Folha de S.Paulo. Mas, naturalmente sabia que se tratava de notável advogado, jurista consagrado, professor de Direito na PUC, respeitado autor de diversas obras jurídicas, jornalista e pessoa ligada aos meios de comunicação.
No meio da semana, recebi um telefonema. Era Walter Ceneviva, convidando-me para uma visita ao seu escritório de advocacia. Podem imaginar minha preocupação...
A partir daquele momento, comecei a refletir sobre os diversos pretextos - aliás, verdadeiros - que daria a ele para recusar eventual convite: meu filho mais velho, Marcelo, com apenas dois anos de idade, e minha esposa Vera exigiam atenção e carinho especiais; minha filha Juliana estava prestes a nascer; meu trabalho estafante na Comarca de Diadema; meu costume de dormir tarde para dar conta do serviço e de questões particulares; a prática gostosa do futebol para combater as preocupações e o stress da vida, etc.
No dia marcado, enquanto trafegava com meu automóvel pela Avenida 23 de Maio em direção à Praça João Mendes, onde se localizava o escritório, ainda buscava desculpas que poderiam ser acrescentadas.
Em lá chegando, fui cordialmente recebido pelo professor Walter Ceneviva, vindo a conhecê-lo pessoalmente. Homem afável, procurou deixar-me à vontade, certamente notando meu constrangimento. Com gentileza, ofereceu-me uma cadeira para sentar-me e ele se colocou na sua. Estava eu paralisado, frente a frente com extraordinária figura do cenário jurídico nacional. Só faltava o possível convite para eu prontamente desfiar o rol de pretextos previamente decorados para não o aceitar.
Então, Walter começou: "Bem, nosso curso de Direito Civil na PUC tem o seguinte sistema. No primeiro horário da manhã, darei as aulas teóricas, ao seu término cada turma será dividida em três para as aulas práticas a respeito da matéria que por mim foi dada. Em uma sala ficará o grupo do José Roberto Maluf, em outra o do professor Marcelo Cintra Zarif e na terceira o seu grupo. Cada um de vocês três, em rodízio semanal, deverá preparar para os três grupos as aulas práticas, elaborando questões baseadas na jurisprudência de nossos tribunais a respeito da matéria dada na aula teórica, para serem respondidas pelos alunos. Além disso, vocês três vão exigir dos estudantes a entrega de fichas de leitura semanais sobre a matéria a ser por mim dada na aula teórica, para que eles venham preparados para a aula e a sabatina".
Enfim, os alunos já viriam para as aulas teóricas com o estudo da matéria do dia, aproveitando as aulas teóricas e práticas para dirimir possíveis dúvidas. E durante os seminários deparavam-se com questões sobre fatos reais e concretos sobre o tema, estabelecendo-se um proveitoso debate. E era inaceitável qualquer possível reclamação dos alunos em relação ao estudo de matéria ainda não dada em aula, pois, como dizia o professor Walter, "nesta sala todos vocês, alunos universitários da prestigiosa PUC, sabem ler e têm condições de compreender o texto que leem".
Mas, voltemos à conversa no escritório do professor. Ouvia-o atentamente discorrer sobre o seu método de ensino e não ousava interrompê-lo. Sentado, quieto, tímido, às vezes esboçava levantar o dedo indicador de uma das mãos devidamente escondida, na tentativa de mostrar-lhe que pedia a palavra, mas tinha receio de que ele percebesse esse intuito. Após algum tempo expondo seu método, Walter perguntou-me: "Então, está combinado? Tudo bem?". O que poderia eu responder naquela oportunidade? Não tive coragem de repetir os pretextos bem decorados visando à minha resposta de não aceitação do convite e, assim, o nosso diálogo terminou com o meu aceno positivo com a cabeça...
O início da minha nova atividade, de docente, foi um verdadeiro suplício, pois sempre tive o hábito de levar muito a sério e com grande senso de responsabilidade meus compromissos. Nos dias que antecediam as aulas, procurava prepará-las cuidadosamente, da melhor maneira, pois tinha consciência de que os alunos mereciam meu total respeito. Não dormia durante as longas noites. As viagens até a PUC eram tormentosas. Por ocasião de algumas aulas de seminário, Walter Ceneviva, como sempre zeloso com o curso que dirigia e ministrava, comparecia às três salas onde elas se realizavam para certificar-se de que tudo corria bem. É lógico que, nessas ocasiões, com sua presença na sala, a timidez e o constrangimento deste inexperiente professor em muito aumentavam...
Nos primeiros tempos, além dos seminários, resolvi fazer-me presente às aulas de Walter Ceneviva. Chegava mais cedo à faculdade e sentava-me com os alunos, não apenas para ouvir e aprender com o grande Mestre, mas também para buscar maior adaptabilidade e experiência nas salas de aula e aprender com ele a arte de ensinar. A sala estava sempre repleta e não se ouvia um mínimo de ruído. Todos queriam, com atenção, aproveitar seus preciosos ensinamentos. O Mestre falava com muita segurança, fluência e clareza, por vezes com pitadas de humor que encantavam a todos. Era hábito do professor, ao chegar à sala, tirar seu relógio do pulso e colocá-lo sobre a mesa, para depois iniciar a magistral aula, encerrando-a no momento exato, sem antecipação ou atraso de horário, hábito que - depois constatei - também tinha ao proferir palestras, conferências e ao participar de debates. Não faltava às aulas e, durante o curso anual, lecionava todos os pontos do programa organizadamente distribuído aos alunos a cada início do ano letivo, uma unidade por manhã.
Ao final do curso anual, o professor reunia a equipe em sua casa à noite para analisar a conduta e o aproveitamento de cada aluno, fazendo questão de dar a palavra a seus auxiliares de ensino para participação na avaliação final. Em seguida, brindava-nos com um lindo presente de fim de ano e um maravilhoso jantar preparado por sua cativante esposa.
Professor respeitado e bastante querido pelos estudantes, sempre à disposição para o diálogo, a cada cinco anos, ao término do curso completo de Direito Civil para cada turma, era escolhido paraninfo das turmas da manhã.
Graças aos seus ensinamentos, com o tempo fui me aprimorando e parcialmente me desinibindo. Em sala de aula passei a ter maior desenvoltura, o que ainda nem sempre acontece em outros ambientes. A oportunidade de manter contato com novas gerações e fazer novas amizades passou a estimular-me. Hoje conto com muitos ex-alunos entre os amigos.
Depois de algum tempo, Walter Ceneviva, em razão dos seus inúmeros afazeres, para tristeza geral, resolveu deixar de lecionar. Mas antes teve a gentileza - que jamais esquecerei como demonstração de confiança - de convidar-me para substituí-lo na PUC. Como se isso fosse possível...
Aceitei o desafio, porém impus-me uma condição objetivando homenagear o professor, em proveito de um melhor ensino e dos alunos: utilizar o mesmo e magnífico método por ele criado, com aulas teóricas por mim lecionadas e práticas dadas por competentes e maravilhosos colegas escolhidos com muito cuidado e responsabilidade, mais a exigência das fichas de leitura sobre a matéria objeto da aula do dia. Não é demais observar que sempre fiz questão e tive a lealdade de contar aos meus alunos que o sistema era de autoria do grande professor Walter Ceneviva, inclusive nas cerimônias de formatura de que participei como paraninfo.
Enfim, devo muito a Walter Ceneviva, responsável pelos meus quase 40 anos de ensino na PUC, onde me aposentei no ano de 2015. Reconheço com sinceridade que ele foi um dos grandes responsáveis, também, pelo meu aprimoramento e formação humanística, como magistrado e esforçado professor. Permitiu-me conhecer e participar, por muitos anos, do ambiente universitário e conviver com grandes mestres do Direito, como Franco Montoro, Arruda Alvim, Tereza Alvim, Dirceu de Mello, Hermínio Marques Porto, Pedro Cunha, João Batista Lopes, Carlos Alberto Ferriani, José Osório de Azevedo Júnior, Eloisa Arruda, Clito Fornaciari, Maurício Genofre, Antonio Luiz Ribeiro Machado, Pedro Paulo Manus, Sílvia Pimentel, Roque Carrazza, Elizabeth Carrazza, Maria Garcia, Manoel de Queiroz Pereira Calças, Daniela Libório, Marcelo Figueiredo, Eduardo Muylaert, para citar apenas alguns. E devo a Walter Ceneviva, também, a perda de boa parte da minha inibição, ainda presente em algumas situações. Graças a isso, tenho de contar com orgulho que, honrosamente convocado, cheguei até a presidir eleições para a Reitoria e para a Direção da Faculdade de Direito da PUC! Quem diria...
Homem culto e de grandes predicados morais e intelectuais, lhano no trato, sempre de bom humor, mas preocupado com a sociedade e os cidadãos, de notável saber jurídico, com relevantes serviços prestados ao ensino e à classe dos advogados, autor de grandiosas obras jurídicas, jornalísticas e humanitárias, ícone do registro público, eis o professor Walter Ceneviva, por quem tenho carinho, amizade e estima especiais.
Mestre, de coração, minha eterna gratidão! Que Deus o abençoe!
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.
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*José Gaspar Gonzaga Franceschini é desembargador aposentado. Ex-vice-presidente do TJ/SP e ex-professor da PUC/SP.