Uma questão bastante intrigante circunda a publicação da resolução 313, de 19 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, e das demais resoluções e atos normativos editados pelos tribunais jurisdicionais para conter a transmissão do novo coronavírus: a situação de pandemia do covid-19 autorizaria a suspensão dos prazos processuais ou a própria suspensão do processo, nos termos do art. 313, VI, do CPC/15?
Diz o referido artigo que se suspende o processo, dentre outras hipóteses, por motivo de força maior.
A força maior aqui tem uma amplitude significativa considerável. Tanto pode decorrer de causas naturais (uma enchente que alaga o fórum), como também de ações humanas (uma ameaça de destruição terrorista que enseja a evacuação do local).
Aliás, há bons exemplos práticos que já ocorreram no cotidiano forense: uma tempestade que destelhe o fórum ou impeça o trânsito nas suas vias de acesso; um incêndio; um toque de recolher determinado pelas autoridades policiais; o fechamento do fórum por recomendação da defesa civil (considerando que o peso dos autos do processo colocou em risco a estabilidade do prédio) e até mesmo um ataque hacker que tira do ar o sistema de processo eletrônico.1
É de se ver, portanto, que a força maior representa qualquer evento inevitável, que independa da vontade dos sujeitos processuais e que impeça o curso do procedimento.2
Nesse passo, fácil é o enquadramento da pandemia do covid-19 como situação de força maior apta a ensejar a suspensão de todos os processos judiciais no país.
Isso porque, com base no decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020, o Congresso Nacional reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública do país em decorrência da famigerada patologia.
E a calamidade pública, conforme também acredita Luciano Vianna Araújo3, não deixa de ser mais uma hipótese de força maior (assim como um desabamento, um incêndio etc.).
Ora, é fato que a pandemia está impedindo o curso regular dos procedimentos, afinal, os magistrados, servidores e colaborados do Poder Judiciário, de forma repentina e sem preparo prévio, foram encaminhados ao trabalho remoto, sem contato pessoal com outros colegas e com as partes.
Da mesma forma os advogados e demais representantes. É inquestionável que também tiveram graves limitações na prática de atos processuais e até mesmo no relacionamento com o Judiciário.
Essa situação retrata a precariedade que passa a função jurisdicional, exigindo dos seus integrantes um papel ativo, embora mais acautelado.
Como consequência do reconhecimento da força maior, hipótese de suspensão processual, o legislador vedou a prática de “qualquer ato processual, podendo o juiz, todavia, determinar a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, salvo no caso de arguição de impedimento e de suspeição.” (art. 313 do CPC/15).
Em outros termos, reconhecida a força maior, devem ser suspensos todos os processos em trâmite, o que não desautoriza, ao reverso, obriga, a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável.
Todavia, como bem alertado pelo professor Alexandre Freitas Câmara em sua página pessoal no aplicativo Instagram4, a prática de atos processuais não urgentes nesse interregno não geraria, automaticamente, a configuração de nulidade. Isso porque, para que se reconheça a sua ocorrência, seria preciso comprovar o prejuízo causado, nos termos do princípio da pas de nullité sans grief.
Como, então, visualizar prejuízo quando o magistrado despachar, sentenciar ou proferir uma decisão interlocutória em casos não urgentes? Ou mesmo quando se distribuir um recurso, lavrar uma certidão? Nenhum desses atos, excluídos os urgentes, terão efeitos imediatos, pois suspenso está o processo ou, nos termos da resolução 313/20 do CNJ, suspensos estão os prazos.
Em verdade, estamos diante de uma calamidade pública, verdadeira causa de força maior que deve, provisória e imediatamente, suspender o curso dos processos judiciais, permitindo-se, apenas, a prática de atos urgentes e que não causem prejuízo às partes.
Isso daria mais segurança jurídica a todos os envolvidos, já que o país está praticamente parado em virtude da pandemia. Não há clima para sequer sair de casa, quiçá para promover o andamento regular de processos que envolvam situações não urgentes.
Com mais calma e lucidez, poder-se-ia pensar em outras medidas que fizessem os prazos processuais fluir. No entanto, nesta fase de medo e de recolhimento, não é plausível permitir a prática de atos processuais desnecessários e que poderiam, em tese, causar prejuízos às partes, como é o caso das sessões de julgamento virtuais.
Agiu bem o CNJ quando editou a referida resolução, mas, teoricamente, deveria ter determinado a incidência da norma prevista no art. 313, VI, do CPC/15.
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1 GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Curso de Processo Civil – Teoria Geral do Processo: Comentários ao CPC de 2015 Parte Geral. São Paulo: Método, 2015. p. 1228.
2 TALAMINI, Eduardo. In ALVIM, Arruda, A. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 423.
3 ARAÚJO, Luciano Vianna. Art. 313. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 475.
4 O que pode ser acessado no Clicando aqui. Acesso em 23 mar 2020.
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*Ewerton Gabriel Protázio de Oliveira é mestrando em Direito Público pela UFAL. Pós-graduado em Processo Civil. Professor. Advogado licenciado. Assessor de Desembargador no TJAL.