Pós-férias
Rotina acadêmica - Há quem prefira começar o semestre ao invés de vê-lo acabar
Nesta hora é bom lembrar que "tudo tem dois lados".
Vasculhando seu valioso arquivo, Migalhas encontrou na "Revista XI de Agosto", de dezembro de 1967, um texto do respeitado tributarista Luciano da Silva Amaro, na época estudante das Arcadas, sobre o lado negativo de se chegar rapidamente ao final do ano. A verve do jurista já se apresentava triunfante.
Acadêmicos e velhos praticantes do Direito, acompanhem e deliciem-se com o texto abaixo, com certeza repleto de semelhanças com a vida.
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De examinibus
Luciano S. Amaro*
É com tristeza que se aproxima o fim do ano, fim também de tanta coisa boa, fim de absorventes atividades a marcarem cada dia de aula. Nas classes, a instrutiva leitura dos matutinos, as conversas e namoros por bilhetinhos trocados sub-reptíciamente, revistas em profusão; lá no fundo, um rádio de pilha, nem muito alto para não perturbar a Cátedra, nem muito baixo para a Cátedra não perturbar; jogos os mais variados: palavras cruzadas, brincadeiras de forca, batalha naval, etc.; um ou outro, sem nenhuma ocupação, faz conscientemente, a rigorosa estatística dos vocábulos mais usados pela Cátedra. Ah, mas existem também aqueles compenetrados do alto dever que lhes impõem as tradições culturais legadas pelas gerações anteriores, e que não se deixam alienar por passatempos fúteis; não! Ao contrário, aproveitam, avaramente, cada minuto de aula, lendo Kafka, Sartre, um volumoso Jorge Amado ou mesmo um desopilante Walt Disney.Inda mais altas ocupações são as desenvolvidas nos pátios: rodinhas discutem política, em que todos são da mesma opinião unanimemente concordes em que se deva atear fogo ao mundo; nos bancos, acadêmicas lânguidas discutem Marx com os compenetrados acadêmicos, trazendo cada um, a tiracolo, a equação dos problemas pátrios e mundiais.
E há os cafezinhos e os conchavos. Os mendigos e a discussão da realidade brasileira, as passeatas e os sopapos, as greves e os donos da greve, os discursos e as ovações e os ovos atirados aos oradores, os candentes manifestos e os jornais de vibrantes artigos político-econômicos e os boletins de acalorados chingamentos.
Por isso, é com tristeza que se chega ao fim do ano. A pueril alacridade dos semblantes acadêmicos desaparece sob as testas jovens, profundamente vincadas. Um problema inédito atordoa a todos: os exames.
Circulam boatos alarmantes de que é preciso fazer provas, estudar, decorar, colar; caso contrário, repete-se o ano. Alguns, de mais fresca memória, lembram-se de que, no meio do ano, houve já algumas dessas exigências descabidas: fazer exames!
Repetir o ano é uma expressão interessante: o ano foi muito bom! Mas há sempre a curiosidade em se saber como será o próximo.
Tem início a corrida à “fontes do saber”. As bibliotecas enchem-se de gente e esvaziam-se as estantes. As sucessivas tiragens de apostilas feitas á última hora esgotam-se rapidamente. E os estudantes, sequiosos de saber, bebem a água estagnada das apostilas cheias de erros, sem responsabilidade da ilustre Cátedra, e mastigam, gulosamente, os volumosos compêndios, de ruim sabor. Entram em voga os resumos e os resuminhos, e estes são logo contemplados com o beneplácito geral, pois tudo contêm e todos querem saber tudo, a curto prazo.
Pelos pátios, escadas, calçadas, ruas e pontos de ônibus adjacentes, centenas de estudantes penduram-se a grossos volumes e metem o nariz pesquisador nos Códigos, cheirando-lhes artigo por artigo. Pelos corredores, não mais se ouve o alarido costumeiro. Agora, compenetrado, cada um debate consigo mesmo as altas e importantes questões do Direito. São desnudados os princípios e os institutos jurídicos, analisados na sua intimidade, desvendados seus segredos, postos à luz seu conteúdo e alcance. Dentre os princípios gerais, ressalta-se um, pela sua didática magnitude, infelizmente ainda não contemplado nos substanciosos tratados de direito: “estudar tudo o que for necessário e nada além”.
Sempre aparece alguma dúvida no lúcido espírito do estudante, e isso só vem demonstrar o elevado interesse que as questões jurídicas despertam entre seus estudiosos:
- Será que a apostila tem tudo?
- Não sei. Eu fiz um resuminho do livro.
Organizam-se círculos de estudos:
Primeiro estudante:
- A matéria das aulas práticas é maçante, não?
Segundo estudante :
- Quê! A matéria de Prática vai entrar para o exame?
Terceiro estudante :
- Ué! Deram matéria nas aulas práticas?
Quarto estudante:
- Nós tivemos aulas práticas?
Iniciam-se os exames e adoecem em massa os estudantes, que passam agora, às dúzias, sobraçando requerimentos, instruídos com o competente atestado médico.
A primeira turma está fazendo exame. De repente, a porta da sala se abre e, zonzo, um aluno sai, cambaleando. Uma saraivada de perguntas o recepciona:
Um, por não ter o que dizer:
- Já fez?
Outro, curioso:
- Que caiu?
Outro, otimista:
- Foi fácil?
Outro pessimista:
- Foi difícil?
Outro, interessado:
- Você foi bem?
Outro, malandro:
- Dá pra colar?
E o pobre, atordoado, vai distribuindo, à esquerda e à direita (mais uma do que à outra, conforme sua ideologia) monossílabos de profundo conteúdo.
Formam-se, espontaneamente, ardorosos debates sobre nos pontos caídos, e cada um, defendendo sua opinião, cita as fidedignas fontes consultadas:
- Isso está na apostila, volume I, ponto 2.
E o outro:
- Está bem, mas eu estudei pelo livro do professor e lá está exatamente o contrário.
Todos continuam estudando tudo: o critério dos professores:
- Eu vou esnobar nessa prova. Posso citar de cor trechos dos mais acatados juristas alemães e italianos. Estudei-os no original.
- Faça isso e será reprovado “in limine”. Vai parecer que você colou!
A porcentagem de reprovados em anos anteriores:
- Não é fácil, não! No ano passado, duzentos ficaram pra segunda época, nessa matéria.
Os pontos mais pedidos nas provas:
- Esse ponto sempre cai, meu caro; ninguém fica...
- E quem não estudar esse ponto?
- Garanto: ganha um Galaxie se for reprovado...
A posição em que o professor fica na sala:
- Permanece o tempo todo lendo jornal, à mesa!
- E quando levanta a cabeça para olhar a classe?
- Não há problema: ele dá uma tossidinha antes...
A bibliografia preferida:
- Nem abra esse livro; no primeiro exame, colei tudo desse autor e só tirei cinco.
Os conceitos:
- Você já decorou as definições da Cátedra?
- Já! - e faz saltar uma lista do bolsinho do paletó, cuidadoso trabalho de minicaligrafia.
Findos os exames, os pessimistas passam, aos bandos:
-Fui mal à beça; só acertei uma. Não dá pra pegar oral nem por aproximação.
- Inda reclama; tem muita sorte! Eu entreguei em branco.
- E eu então? Fiz tudo, mas não acertei nenhuma. Segunda época, sem apelação!
Outro grupo, de otimistas, passa pelo primeiro:
- Se eu não tirar dez, é injustiça! Prova elementar...
- Eu também. Acertei tudo.
Terceiro grupo, de inconformados, engrossa o coro dos pessimistas:
- Se eu fosse da terceira turma...Viu que fácil o ponto deles?
- Você vê só que azar! Estudei vinte e um pontos; caiu justo o vinte e dois...
Talvez pior que os exames seja a espera da publicação das notas. Mãos nervosas esfregam-se. Todos esperam. O chão salpica-se de pontas de cigarros. E o vai-e-vem para os cafezinhos é contínuo.
Afinal, publicam-se os resultados.
E, enquanto uns saem, maldizendo o professor, a matéria, o ponto que caiu, o azar, o dia em que nasceram, outros, esquecidos já da espera angustiante, pulam de alegria, abraçam-se, trocam parabéns, festejando o sucesso tão arduamente perseguido e finalmente alcançado.
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*Luciano S. Amaro é advogado tributarista, formado pelas Arcadas (Turma de 1969) e autor do livro "Direito Tributário Brasileiro".