Migalhas Quentes

Advogada de 80 anos conta: “não pude ser juíza por ser mulher”

Um dos desembargadores afirmou em 1968 que "a mulher é um pouco dominada pelo marido – e o juiz não deve nem pode ser influenciado por ninguém”.

21/6/2021

A advogada Margarida Araújo Seabra de Moura, de 80 anos, presenteou sua família com um álbum de memórias. O presente, no entanto, rememora um lamentável fato: a ocasião em que não pôde tomar posse do cargo de “juiz de Direito” por ser mulher na década de 60.

No álbum feito por Margarida, há inúmeras manchetes de jornais da época que repercutiram o fato. “Sinal vermelho para mulheres na Justiça”, estampou o jornal Tribuna do Norte em dezembro de 1967.

O álbum de Margarida concretiza a importância de se conhecer e se preservar a história para não repetir os erros do passado.

Do concurso

Em 30 de outubro de 1967, no Rio Grande do Norte, Margarida foi aprovada em 2º lugar no concurso para juiz de Direito e, em tese, poderia ser nomeada para qualquer comarca em que houvesse vagas. Em 1º lugar estava também outra mulher, Walquíria Félix.

Ocorreu que, o TJ/RN, ao organizar as listas tríplices concernentes ao referido concurso para as comarcas que precisavam de juízes, nomeou apenas homens para os cargos. Margarida e Walquíria ficaram de fora.

Ao Migalhas, Margarida relatou a diferença de tratamento que os homens e as mulheres receberam no exame: “na prova oral, eu fui mais perguntada do que naturalmente eles faziam aos rapazes". Margarida ainda teve de ouvir de um servidor o seguinte: “eu ouço o que esses homens conversam, e eles dizem que não vão aprovar as moças”.

“Aprovadas nós fomos, mas encontraram um meio de não nos deixar participar”, lamentou a advogada. 

A decisão do TJ/RN foi uma dura rasteira nas expectativas de Margarida que, à época, tinha 26 anos. Ao Migalhas, a advogada contou o que sentiu quando não viu seu nome na lista tríplice: “a sensação foi a pior possível (...) foi, pelo menos, perverso”.

Não foi apenas Margarida que sentiu indignação.  Sua família, a imprensa local e alunas de curso de Direito se mobilizaram para protestar e defender sua nomeação para a magistratura.

(Imagem: Reprodução)

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(Imagem: Reprodução)

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O absurdo do que aconteceu com Margarida fica ainda pior quando nos deparamos com os fundamentos pelos quais o Tribunal resolveu excluir as mulheres da magistratura.

O desembargador Robinson Silva, em seu voto, fez alusões de que, realmente, existia certo prejuízo à Justiça com a nomeação de mulheres para o cargo de juiz de Direito. O magistrado declarou ao plenário, que

“o que ocorre é que nós temos conhecimento de que há prejuízos para a magistratura com a nomeação de mulheres para juiz. Isso porque, além do período de gestante (quando a mulher tem uma licença de vários meses), a mulher é um pouco dominada pelo marido – e o juiz não deve nem pode ser influenciado por ninguém.”

(Imagem: Reprodução)

O pai de Margarida, também advogado, resolveu impetrar um mandado de segurança a favor da nomeação de sua filha para o cargo de juiz. No MS, ele levantou a questão da injustiça e a diferença de tratamento entre homens e mulheres:

“É fato público e notório que o ato omissivo do Egrégio Tribunal de Justiça representa apenas a sua inabalável deliberação de não mais admitir a investidura de mulher na magistratura vitalícia. Tendo sido a impetrante classificada em segundo lugar e a sua colega em primeiro no mencionado concurso.”

(Imagem: Reprodução)

O Tribunal, no entanto, não concedeu a ordem em mandado de segurança.

O desfecho

A mulher aprovada em 1º lugar, Walquíria Félix, conseguiu sua nomeação ao cargo depois de muita repercussão. O Tribunal voltou a julgar o caso e, por unanimidade, indicou o nome dela para a promoção ao cargo de “juiz de Direito Substituto do Estado”. Segundo o jornal Tribuna do Norte, em 1968, o julgamento encerrou o ciclo chamado de “discriminação de sexo na Justiça”.

(Imagem: Reprodução)

Margarida, porém, não teve o mesmo êxito. Todavia, a porta fechada à magistratura não lhe retirou a vontade de prosseguir no mundo do Direito. Margarida atuou no Ministério Público, fundou o seu próprio escritório de advocacia e segue atuando até hoje.

“Eu sou uma mulher inclusiva. Busquei a minha inclusão e lutei por ela e luto sempre.”

A advogada, então, finaliza deixando um recado às bacharéis em Direito: “não desistam dos seus sonhos. Foi o que eu fiz. Sou uma mulher da área jurídica com muito amor. Eu amo o Direito. A frustração não teve o condão de me roubar esse amor pela Justiça, pelo Direito e pelo respeito ao arcabouço jurídico”.

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