O tratamento dado à liberdade de expressão no país é ambíguo e claudicante. Ninguém afirma ser contrário à liberdade de expressão – desde que essa expressão não lhe atinja, nem lhe contrarie. Pode soar engraçado, mas causa perplexidade a coexistência, no país, de dispositivos legais e decisões judiciais tão favoráveis à liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que se nota uma predisposição censória igualmente firme e ativa por parte de diversos setores da sociedade. Essa tensão pode ser observada por diversos ângulos e parece vir de longa data.
Já para começar, lembro que a censura é anterior à imprensa no Brasil. José Marques de Melo, no livro Sociologia da Imprensa,2 aponta que o primeiro jornal impresso em território nacional foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que circulou no dia 10 de setembro de 1808, marcando o início do jornalismo nacional. Mas em 24 de junho daquele ano – antes, portanto, da circulação da Gazeta – foram editadas as "Instruções provisórias para o Regimento da Impressão Régia", que dispunham sobre a censura das publicações da Impressão Régia.3
A Lei de Imprensa do governo militar (lei 5.250), editada em 1967, dispunha, no art. 1º, que "é livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura". Esse dispositivo, o primeiro da lei, era então claramente a favor da liberdade de expressão, embora todo o restante fosse absolutamente contrário. O § 2º desse art. 1º dispunha que a liberdade referida no caput
"não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem na vigência do estado de sítio, quando o Governo poderá exercer a censura sobre os jornais ou periódicos e empresas de radiodifusão e agências noticiosas nas matérias atinentes aos motivos que o determinaram, como também em relação aos executores daquela medida".
Nos anos seguintes, e sem qualquer constrangimento, instalou-se no país órgão censor contra tudo: jornal, teatro, música, cinema, pensamentos e atos.
Esse embate entre a liberdade de expressão e a censura é uma constante. Carlos Eduardo Lins da Silva (1991, p. 91), um estudioso do jornalismo, aponta que essa contradição não é exclusiva de um grupo, nem dos militares e nem da direita no Brasil. Ao fazer considerações sobre o tema, ele lembra um episódio em que Ulysses Guimarães, o ícone da oposição ao governo militar e símbolo da Campanha "Diretas Já", mandou apreender cartazes da CUT que expunham uma opinião que considerou ofensiva a alguns congressistas.4 Até mesmo então Ulysses Guimarães, vejam só, que tanto lutou pela redemocratização do país, determinou ordem de censura.
A Lei de Imprensa a que me referi anteriormente, de 1967, coexistiu com a Constituição promulgada em 1988 por mais de 20 anos, espelhando, nessa convivência, nossa contradição. Embora a Constituição Federal (CF) tenha adotado princípios de plena liberdade, proibindo a censura, convivemos com esses princípios de liberdade e com a Lei de Imprensa até 2009. O deputado carioca Miro Teixeira, tendo se escandalizado com o assédio (moral) judicial sofrido pela jornalista Elvira Lobato e pelo jornal Folha de S.Paulo no episódio da Igreja Universal,5 viu aí uma boa ocasião para questionar a conformidade do texto da Lei de Imprensa com a CF, e propôs, em nome do PDT, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal (STF), que revogou aquela.
Contudo, nos 20 anos em que durou, a convivência da Lei de Imprensa com a CF não foi pacífica. O embate entre valores foi evidente para quem atuava na área. Depois de promulgada a Constituição, com seus generosos princípios favoráveis à liberdade de expressão, algumas decisões judiciais, sobretudo do STJ, por incrível que pareça, trataram de revogar alguns poucos dispositivos da Lei de Imprensa que bem ou mal favoreciam jornalistas e empresas editoras. A ironia da situação era contundente: de um lado, a sociedade civil vivia momentos de euforia com a recuperação da cidadania e com o empoderamento de diversas instituições, dentre elas o da imprensa, e, de outro, setores mais conservadores pareciam se assustar com o cenário. Foi então que se viu o início de um movimento que tratava de restringir a liberdade que a imprensa começava usufruir. À medida que casos concretos de responsabilidade civil chegavam aos Tribunais Superiores, os raros dispositivos da Lei de Imprensa, de natureza cível, que favoreciam jornalistas,6 foram aos poucos sendo substituídos por jurisprudências mais severas a desfavor dos jornalistas e das empresas editoras.
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*Taís Gasparian é advogada nas áreas de advocacia contenciosa e consultiva, na área do Direito Civil relacionada à mídia, à publicidade e à internet. É colaboradora frequente da Universidade de Columbia/NY, EUA, no Global Freedom of Expression Website. Foi chefe de gabinete do ministro da Justiça (2002). Foi membro do Conselho Diretor da Associação dos Advogados de São Paulo. Atualmente é visiting scholar na Faculdade de Direito da Universidade de Yale, nos EUA (Yale Law School). É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP e graduada pela Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da USP.