Migalhas de Peso

A importância da doutrina de Ceneviva na jurisprudência do STJ

Augura-se a Walter Ceneviva, destacado intelectual e professor, uma longa e continuada produção doutrinária, em benefício da certeza e da segurança na aplicação do Direito.

9/6/2020

Para além das virtudes destacadas em outros depoimentos, não posso deixar de acentuar a importância de Walter Ceneviva como advogado dos advogados, o profissional que sempre tem sido capaz de proferir a palavra certa na hora certa e de encontrar o melhor caminho para as mais diversas postulações, seja de um ponto de vista estritamente técnico-jurídico, no qual não tem par, seja de um ângulo de estratégia de resolução de conflitos e, mais ainda, de uma perspectiva humanista, de quem, graças à sua cultura e à sua experiência, pode se permitir fazer um sobrevoo das angústias e perplexidades muito humanas que tantas vezes nos impedem de ver o que está à nossa frente.

Mas não é só, obviamente, como podem testemunhar todos aqueles que conhecem também o Walter Ceneviva doutrinador. Neste papel, ele tem sido fundamental para iluminar a solução de difíceis controvérsias nos tribunais. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, suas lições têm sido centrais para o desate de inúmeros recursos.

Começo pelo REsp 1.422.859-SP, de minha relatoria, no qual se discutia a possibilidade de administradora de loteamento cobrar dos proprietários contribuições pela prestação de determinados serviços, tal como especificado no contrato-padrão. Na ocasião, decidiu-se que, em conformidade com a lei de regência, as restrições e obrigações do "contrato-padrão, depositado em cartório como condição para o registro do projeto de loteamento, incorporam-se ao registro e vinculam os posteriores adquirentes, porquanto dotados de publicidade inerente aos registros públicos". Tal hipótese distingue-se daquela discutida no REsp 1.439.163-SP e no REsp 1.280.871-SP, ambos processados sob o rito dos recursos repetitivos, nos quais fixou-se a tese de que "as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a eles não anuíram". Para o deslinde da questão foi essencial a lição doutrinária de Ceneviva em seus comentários à lei de registros:

"O registro do parcelamento depende de que o contrato-tipo seja depositado na serventia (art. 18, VI), contendo as indicações mínimas previstas pelo art. 26, às quais podem ser acrescentadas outras de caráter negocial, desde que não ofensivas dos princípios cogentes da lei 6.766/79. Pode o empreendedor, por exemplo, repassar aos adquirentes o custeio das obras realizadas para instalação das redes de água e esgoto" (CENEVIVA, 2009, p. 643).

O formalismo jurídico não pode se sobrepor à consciência do justo.

Em outro feito, o REsp 1.192.678-PR, no qual se discutia a nulidade de notas promissórias assinadas por meio eletrônico, foi lembrado seu posicionamento no instigante artigo "Formalismo, formalidades e forma no Código Civil" (CENEVIVA, 2004, p. 87-95), no sentido de que "a imprescindibilidade do formalismo não pode [...] sacrificar a consciência social do justo, da igualação dos desiguais".

No REsp 302.469-MG, também de minha relatoria, no qual se cuidava de impugnação de assinatura aposta no título e reconhecida em cartório por semelhança, ficou assentado que

"se, de um lado, o reconhecimento por semelhança possui aptidão, tão somente, para atestar a similitude da assinatura apresentada no documento com relação àquelas apostas na ficha de serviço do cartório, também é certo que, assim como o reconhecimento de firma por autenticidade, tem a finalidade de atestar, com fé pública, que determinada assinatura e de certa pessoa, ainda que com grau menor de segurança".

Esse entendimento lastreou-se nos comentários de Ceneviva à Lei dos Notários e dos Registradores (2007, p. 73), que informam minudentemente sobre o procedimento utilizado nas rotinas cartorárias nas hipóteses de reconhecimento de firma, quando não lançada na presença do titular.

Já no REsp 1.111.343-SP, cuidou-se de hipótese de dúvida inversa, declarada pela parte ao juiz, com asserção de que o serventuário teria feito exigência descabida. Em seus comentários à Lei dos Registros Públicos (LRP) (2009, p. 456), Ceneviva demonstrou que, com a nova LRP, a chamada dúvida inversa não mais se admite. Pode a parte dirigir-se ao juiz para reclamar da recusa do oficial de proceder a determinado registro, mas

"não pode substituir-se ao serventuário na própria declaração, como, aliás, resulta de outros textos legais que a ela se referem [...] Após a LRP a dúvida inversa tornou-se realmente inviável".

A seu turno, no REsp 1.721.829-DF, também por mim relatado, confirmou-se o acórdão do tribunal de origem, que firmou o entendimento de que é indispensável a demonstração de justo motivo para a inclusão de sobrenome de linhagem do genitor, o qual não adota o patronímico que pretende acrescentar ao nome do filho, para render homenagem a parente, no caso, o bisavô paterno, do menor. Tal conclusão é reforçada, a contrario sensu, por Ceneviva, nos citados comentários à LRP, que observa caber certa liberalidade no aditamento de apelidos apenas quando haja possibilidade de evitar confusões e mal-entendidos e não se trate de alteração significativa do nome.

No RMS 22.635-MS, de relatoria da ministra Denise Arruda, que tratava do controle de legalidade de provimento do Conselho Superior de Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul, a 1ª Turma do STJ entendeu pela regularidade do ato, ao dispor que as serventias não preenchidas por concurso de remoção, assim como aquelas que se vagaram como remanejamento proveniente das remoções objeto do referido concurso, serão destinadas aos candidatos aprovados no concurso de ingresso, obedecendo-se à ordem de classificação. A propósito, Walter Ceneviva, em seus comentários à Lei dos Notários e Registradores, observa que a absoluta impossibilidade de prover tais cargos ocorre sobretudo em pequenos municípios, em razão do desinteresse ou ausência de candidatos. Nessa circunstância deve o juiz competente confirmar se o obstáculo é absoluto e, sendo o caso, propor à autoridade competente, "verificada a inviabilidade total, a extinção do correspondente serviço e anexação a outro, de mesma natureza, na sede municipal ou em município contíguo" (2007, p. 300-301).

Por outro lado, no RMS 18.381-MG, de relatoria do ministro Castro Meira, a controvérsia girava em torno da legalidade de ato de governador de Estado que, durante o período eleitoral, outorgou delegação para os candidatos aprovados em concurso público realizarem a prestação de serviços notariais e de registro público naquele Estado. Como o STF, na ADI 2.602-MG, deixou claro que os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público, integrando a categoria de serviços públicos não privativos, cujos agentes não são titulares, nem ocupam cargo público, não houve violação do art. 73, inciso V, da lei Federal 9.504/1997, que limita a nomeação e contratação de pessoal somente naquilo que envolva servidores públicos em sentido estrito. Para tal desfecho foi decisiva, mais uma vez, a lição doutrinária de Ceneviva, no sentido de que o ato de delegação do serviço notarial e de registro difere por completo de todas as formas de admissão dos servidores públicos, não estando compreendido na vedação legal. É que,

"nesse contexto, delegação define ato administrativo complexo (compreende desde o concurso público até a outorga), enquanto meio criado pelo direito para permitir a atuação do interesse público através de prestador de serviço de caráter privado, habilitado para a prática de atos cuja competência decorre de lei" (2007, p. 36).

No RMS 24.266-SP, relatado pelo ministro José Delgado, tratou-se do dever de fiscalização, pelo Poder Judiciário, das atividades dos notários, oficiais de registro e seus prepostos para apurar eventuais irregularidades nas searas civil e criminal. A exegese de Ceneviva da lei 8.935/1994 foi central na fundamentação do voto condutor do acórdão.

Estes são apenas alguns poucos exemplos da enorme influência exercida pela doutrina de Walter Ceneviva na uniformização do Direito federal brasileiro, sobretudo no que tange à interpretação e aplicação da Lei dos Registros Públicos e da Lei dos Notários e dos Registradores. São incontáveis os acórdãos do STJ em que seu nome figura com destaque entre os doutrinadores de escol citados como autoridades e como referência analítica. Augura-se a Walter Ceneviva, destacado intelectual e professor, uma longa e continuada produção doutrinária, em benefício da certeza e da segurança na aplicação do Direito. 

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CENEVIVA, Walter. Formalismo, formalidades e forma no Código Civil. Revista do Advogado, AASP, São Paulo, n. 77, p. 87-95, jul. 2004.

CENEVIVA, Walter. Lei dos Notários e dos Registradores comentada. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

__________

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

 

 

 

 

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*Ricardo Villas Bôas Cueva é ministro do STJ. Mestre e doutor em Direito, pela Universidade Harvard (EUA) e pela Universidade de Frankfurt (Alemanha), respectivamente. Foi advogado, procurador do Estado de São Paulo, procurador da Fazenda Nacional e conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

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