"A alma cativa e obcecada
Enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
E melancolia
Infinita, infinitamente."
(Drummond, "Bolero de Ravel")
O ano era 1975. Ainda em plena ditadura. Dezessete anos de idade. Minha chegada como aluno na Faculdade de Direito da PUC/SP foi cercada de medo, curiosidade e esperança. Logo na primeira semana, um grande impacto: ter aula com o professor Franco Montoro. Inesquecível. Estávamos diante de uma das lideranças do país contra o regime militar. Ainda vivíamos na época das prisões, torturas e mortes. Ele era o exemplo de vida e de resistência. Mas me lembro também de um segundo bom sentimento: conhecer um professor de Direito Civil, até então desconhecido para nós, que lentamente foi entrando nas nossas vidas: o professor Walter Ceneviva. E teríamos que conviver com este professor por infindáveis – que passaram muito rapidamente – anos. E assim foi: durante cinco anos tivemos semanalmente uma manhã inteira na sua convivência. Inesquecível.
Ninguém sabia o que era o Direito Civil. Aliás, ninguém sabia sequer o que era o Direito. A primeira impressão que o professor Ceneviva nos deixou foi sua elegância. Não apenas na forma de se vestir, mas sobretudo na maneira de falar. E um bigode marcante, que dançava enquanto falava. Não entendíamos quase nada do conteúdo das suas primeiras aulas, mas fomos percebendo que estávamos diante de uma pessoa especial. Fala mansa e forte. Ele tornava possível a junção destas duas qualidades, tarefa difícil para quem tinha uma turma de mais de 120 alunos pela frente, o que tornava complicada a missão de qualquer professor. Ele conseguia.
Algumas lembranças iniciais.
Logo na primeira aula ele fez uma explanação da formação que teríamos, do que encontraríamos pela frente na vida profissional e da importância do Direito para a proteção da vida em sociedade. Ele sempre nos passava a ideia de que o Direito Civil tinha um papel importante no processo civilizatório. Eu, que era um aluno já bastante politizado, senti falta de uma análise mais social. Mais radical. Demorei muito para perceber que seu valor principal era a defesa da democracia e do Estado de Direito. Defesa difícil de ser feita nos idos de 1975. Hoje entendo suas lições. Grande parte dos professores da época ignoravam a ditadura nas suas aulas para não dizer que alguns a apoiavam. Lamentável. O professor Ceneviva, com sua serenidade, nos passava duas mensagens essenciais: a defesa da democracia e da liberdade de expressão deveria pautar nossas ações. Eram tempos difíceis. E ele nos passava estas ideias com muita clareza.
A segunda lembrança era a paixão que ele tinha pelo Código Civil de 1916. Não tanto pelo seu conteúdo, mas pela perfeição do uso da língua portuguesa. Não esqueço meu espanto – eu que era um razoável leitor da boa literatura – de alguém dizer que a escrita de um Código Civil poderia rivalizar com os grandes autores nacionais no que se refere ao estilo e correção vernácula. O professor Ceneviva amava o bom português. Talvez fosse um preciosismo, mas a partir dali nunca deixei de prestar atenção no estilo de redação das leis. Imagino o quanto ele deve ter sofrido nos últimos anos com os atentados à nossa linguagem, em especial em certas medidas provisórias e regulamentos. Só com o passar do tempo é que fui percebendo que sua paixão extrapolava o Código de 1916 e se centrava na ideia de que o Direito Civil e seus institutos eram o grande instrumento para uma convivência social pacífica. O pressuposto era saber escrever corretamente. A civilização se manifesta nas suas leis escritas. Bem escritas. O professor Ceneviva nos passava a lição de que era essencial nos comunicarmos clara e corretamente.
Lembro, também, que desde o primeiro dia de aula ele nos avisou que o Código Civil de 1916 seria revogado, por isto precisaríamos começar a estudar o novíssimo, à época, Projeto de Código Civil, documento que entrou em discussão naquele ano no Congresso Nacional. E nós que não sabíamos o que era um Código Civil, tínhamos de estudar dois Códigos Civis: o vigente e o projeto. Durante praticamente dois anos, o professor Ceneviva nos ensinava o conteúdo de ambos os textos. No começo fiquei perdido. Depois comecei a entender que as leis mudam. Que o importante era entender os conceitos, os institutos jurídicos. Passados aproximadamente dois anos, ele abandonou o estudo do Projeto de Código Civil pois percebeu que aquele texto ainda seria muito mudado e que demoraria para sua aprovação. Percepção perfeita: só em 2002 teríamos um novo Código Civil. Mas aprendemos que as leis mudam com o tempo e que os institutos são adaptados à nova realidade, mas na sua essência ficam.
Por fim, a lembrança que se mostrou no futuro a mais marcante. Logo na primeira aula propôs uma reflexão escrita com a seguinte pergunta: por que estávamos entrando na Faculdade de Direito? E cada um, muitos com papéis improvisados, escreveu livremente o que o movia para iniciar aquela vida nova. Não sabíamos nada do Direito, muito menos da vida profissional e das carreiras jurídicas, mas muitos já tinham ideias de como seria o futuro. E ainda nos sentíamos livres para expressar o que se passava nas nossas cabeças. Ainda não tínhamos vestido o papel de uma das carreiras jurídicas.
E lá se passaram cinco anos de convivência semanal.
As expectativas iniciais foram plenamente atendidas. Aprendemos o que era o Direito Civil. Ele nunca se furtou a dar longas aulas expositivas sobre os institutos do Direito Civil, sempre com exemplos atuais e interessantes. Porém, aprendemos muito mais do que isto: ele, lenta e pacientemente, foi nos envolvendo no mundo do Direito em geral. Infinita, infinitamente. Relendo agora um texto que o professor Ceneviva escreveu na Folha de S.Paulo, na edição de 27 de dezembro de 1987, percebo qual era seu método para nos envolver. Ele usava um método "raveliano", se este nome existe. Explico. Neste texto jornalístico, denominado "Direito viveu 87 sob o signo de Ravel", ele confessou sua paixão pelo "Bolero de Ravel". Cito literalmente: "Eu me reconheço musicalmente suspeito quanto ao 'Bolero'. Talvez por uma predestinação. Foi composto no ano que nasci. É a música que mais ouvi na vida (juntamente com a ária da Suíte para Orquestra nº 3, de Bach). Repeti muitas centenas de vezes seus dezesseis compassos, [...]” e continua: “compassos sucessivos sobre um motivo único com acréscimos de instrumentação a cada repasse, até o final, com toda a orquestra". Assim ele fazia. Nos envolvia passo a passo. Começava com as ideias bem simples e ia acrescentando conceitos e análises. E repetia seus 16 compassos da vida, mas sempre com algo novo. Criava uma rede espiral de interesses. Nos envolvia como se estivéssemos dançando um bolero. Como o "Bolero de Ravel". Mesmo para quem não gostava do Direito Civil, e eram muitos, suas aulas eram cativantes. Rapidamente sabia o nome de todos os alunos e as histórias pessoais de muitos. Nunca teve problemas com faltas, desrespeitos e tudo mais. Gentileza atrai gentileza. E nunca nos pressionou com o tema notas. Esta não era uma questão e nem precisava ser. O aprendizado e a convivência respeitosa davam o tom. E fomos crescendo compassadamente nestes cinco anos. Infinita, infinitamente.
Conto um episódio específico que mostra sua personalidade. Uma vez, na qualidade de vice-presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto, e um dos organizadores da Semana de Estudos Jurídicos, telefonei de urgência para ele. Bem sem graça. Um palestrante avisou de última hora que não poderia ir e ficou um buraco no programa a ser preenchido. O que fazer? Convidar um professor que garantisse a atenção da plateia e não faltasse na palestra. Ao falar com o professor Ceneviva e justificar o convite para aquela noite, ressaltando a importância da sua presença, ele me desarmou: “eu sei que estou sendo convidado em razão da ausência de outro professor, mas agradeço que foi a mim que vocês escolheram. Estou pronto”. Nada de rodeios. Mais uma vez gentileza, sinceridade e competência. A palestra foi um sucesso. Estávamos no auge da discussão da aprovação da lei do divórcio e ele prendeu a atenção de todos.
Perto do final de cinco anos, estávamos muito felizes por embarcar em uma vida nova, mas ficava uma pontinha de saudades da PUC-SP e muitas saudades daquele professor que havia acompanhado todo o nosso desenvolvimento. E aí veio a derradeira surpresa. No último dia de aula em 1979, o professor Ceneviva entrou na sala com uma pastinha. O que estava lá dentro? Surpresa. As nossas redações escritas cinco anos antes – na primeira aula em 1975 – com as respostas à pergunta do que buscávamos ao ingressar na faculdade. E, pacientemente, foi lendo cada uma das redações e questionando ao final: quem foi o aluno que escreveu este texto? Ninguém se lembrava do que havia sido solicitado no primeiro dia de aula e muito menos do que tinha sido escrito como resposta. E menos ainda acreditávamos que o professor Ceneviva as havia guardado por cinco longos anos. Alguns se reconheceram nas respostas. Outros deram muitas risadas do que haviam escrito. Outros ficaram envergonhados com os absurdos descritos. Outros ficaram orgulhosos. E cada um teve a sua história... E todos tivemos a nossa história. Bolero puro. Compasso por compasso. Crescente. Ravel total. O grande final com a orquestra toda tocando. Infinita, infinitamente.
E as aulas acabaram e nós imaginamos que sua influência sobre nossas vidas havia acabado. Engano. Muitos de nós prestaram concursos públicos ou buscaram posições em escritórios. Em silêncio absoluto ele nos acompanhava. No meu caso segui a carreira de procurador do Estado. Outros se tornaram advogados, juízes, promotores... Muitos anos depois, eu soube, por um amigo em comum, que, sempre que possível e respeitando a ética dos concursos públicos e das contratações nos escritórios, ele nos recomendava. E uma recomendação dele não era pouco. Seu olhar generoso continuava acompanhando seus ex-alunos.
O mais importante é que ele permanece dentro de nós estes anos todos. Quantas vezes em situações profissionais difíceis, ou mesmo pessoais, a sua presença se mostra atuante. Mesmo ausente fisicamente. Ouvimos aulas e conselhos que ficaram guardados. Vimos um exemplo de vida. Aqueles cinco anos nos ensinaram uma forma de encarar a vida e acredito que conseguir tal objetivo é o máximo que um professor pode almejar. Continuar, com leveza, presente na alma de seus alunos. Não com regras duras. Suavemente. Com exemplos de vida, com boas lembranças. Sempre com um olhar crítico, esperançoso e generoso. Infinita, infinitamente.
Comecei com Drummond e termino com Drummond:
"O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo".
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*Marcelo Gomes Sodré é advogado. Formado em Direito pela PUC/SP e Filosofia pela USP. Professor da PUC/SP. Mestre e doutor pela PUC/SP. Procurador do Estado aposentado. Foi diretor do Procon de SP. Faz parte dos Conselhos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e do programa Consumo e Criança do Instituto Alana. Foi presidente do Conselho do Greenpeace. Assessor da Comissão que redigiu o Código de Defesa do Consumidor.