Quando Djokovic encontra concorrência: Tênis e antitruste
Em 2025, jogadores de tênis processaram as maiores organizações do esporte, alegando práticas anticompetitivas, como controle de prêmios e restrições a torneios alternativos.
quinta-feira, 27 de março de 2025
Atualizado em 26 de março de 2025 17:04
A interseção entre concorrência e esportes está em voga no Brasil1, na Europa2, nos Estados Unidos3 e ao redor do mundo4. Há casos recentes envolvendo o mercado do futebol,5 da patinação de gelo,6 do futebol americano,7 de lutas/artes marciais8, tanto para atletas profissionais quanto para estudantes-atletas.9 Na última semana, foi a vez do tênis "entrar no jogo" das disputas antitruste envolvendo esportes.
Em 18/3/25, 12 jogadores e ex-jogadores de tênis, juntamente com a Associação de Jogadores Profissionais de Tênis, fundada por Novak Djokovic e Vasek Pospisil em 2019, ajuizaram uma ação na Corte Distrital de Nova York em face das quatro maiores organizadoras do tênis profissional no cenário mundial: a ATP Tour, a WTA Tour, a International Tennis Federation e a International Tennis Integrity Agency.
Os requerentes alegam a formação de um suposto cartel entre os organizadores e operadores dos torneios, que estariam, segundo eles, conspirando para fechar o mercado do tênis contra a competição externa, mantendo controle completo sobre os jogadores e as suas condições de trabalho. De acordo com a representação, o suposto arranjo anticompetitivo estaria "afastando o tênis profissional das forças ordinárias do mercado e negando aos jogadores profissionais e aos demais participantes de indústria o direito à uma competição justa". O suposto arranjo anticompetitivo entre as quatro maiores organizadoras do tênis operaria, segundo os requerentes, em três frentes: (i) pela fixação artificial de preços e outras restrições aos ganhos dos jogadores; (ii) pelo impedimento à criação e participação dos jogadores em torneios alternativos; e (iii) pela imposição de investigações disciplinares abusivas aos jogadores.
Com relação à primeira frente do suposto arranjo anticompetitivo - (i) pela suposta fixação artificial de preços e outras restrições aos ganhos dos jogadores -, os requerentes afirmam que as organizações envolvidas teriam estabelecido limites rígidos à premiação que os jogadores poderiam receber, além de vetarem o esforço de outros torneios em aumentarem esses valores. Com isso, não apenas os jogadores estariam recebendo um valor menor de premiação, de uma forma completamente artificial, como os outros torneios estariam impedidos de atraírem jogadores de maior prestígio e renome. Além dessa limitação, as quatro maiores organizadoras do tênis profissional no cenário mundial também estariam impondo restrições ao poder dos jogadores em assinarem acordos e patrocínios com determinadas marcas e tipos de empreendimentos, como um dos requisitos para que possam participar das competições - obstando, também, o faturamento extra quadra.
No tocante à segunda frente - (ii) pelo suposto impedimento à criação e participação dos jogadores em torneios alternativos -, as requeridas estariam multando os jogadores que competissem em torneios alternativos, e suspendendo os atletas que desistissem por qualquer motivo dos eventos produzidos pelas organizações. Além disso, os requerentes mencionam, ainda, os "Ranking Points": um sistema que define em quais torneios o atleta pode competir, qual será a sua remuneração e quais são as suas opções de patrocínio, o que denotaria o controle completo das quatro maiores organizadoras do tênis profissional no cenário mundial.
Quanto à terceira frente - (iii) pela imposição de investigações disciplinares abusivas aos jogadores -, os requerentes alegam que as organizações estariam abusando deste controle excessivo exercido sobre os atletas com programas abusivos de antidoping e anticorrupção. Nesse sentido, alegam que a International Tennis Integrity Agency realizaria dezenas de testes de drogas (como de urina e sangue), pesquisas invasivas no celular dos jogadores e horas de interrogatórios sem a presença de um advogado, sem contar o assédio sofrido por investigadores mal treinados e irresponsáveis.
Em suma: a representação argumenta que as quatro maiores organizadoras do tênis profissional no cenário mundial, em conjunto, teriam criado um ambiente de mercado fechado e totalmente controlado, no qual os jogadores e demais participantes da indústria teriam sua autonomia limitada, sendo forçados a seguir regras que beneficiariam exclusivamente as próprias organizações. Essa estrutura resultaria em uma definição unilateral sobre em qual torneio os jogadores poderiam ou não participar, impondo multas e suspensões para quem desrespeitasse essas medidas, não restando aos atletas outra escolha que não a de vender os seus serviços ao suposto arranjo anticompetitivo.
Como consequência, para além do dano causado aos próprios jogadores, os requerentes argumentam que haveria prejuízo para o público e para os próprios torneios. Para o público, pois a suposta ausência de competição faria com que não houvesse nenhum esforço por parte das organizações para melhorar o esporte e o nível das competições. Para o torneio, porque um mercado competitivo de tênis supostamente geraria um melhor produto - e, consequentemente, um aumento na audiência, na venda de ingressos, nos patrocínios, nas receitas de transmissão, dentre outros.
A ação ajuizada pela Associação de Jogadores Profissionais de Tênis e os jogadores pode ser um marco na história do tênis profissional, podendo redefinir não apenas a relação entre jogadores e organizadores, mas também influenciar a regulamentação de outros esportes em escala global. A depender do desfecho, a decisão judicial, a ser tomada nos Estados Unidos, pode abrir precedentes significativos para discussões sobre a livre concorrência, a autonomia dos atletas e a concentração de poder econômico no esporte.
Cumpre ressaltar, contudo, que a análise acerca da existência ou não de um cartel operando em competições esportivas é muito diferente da análise tradicional realizada em outros mercados, e, por este motivo, deve ser feita com cautela. O mercado dos esportes apresenta uma peculiaridade única: a necessidade intrínseca de cooperação entre os participantes para a implementação das competições esportivas. Deve necessariamente haver um certo grau de cooperação entre os participantes de uma competição esportiva para estabelecer as regras do jogo, sua aplicação, o número de participantes e o calendário do ano. Essa coordenação é essencial para que equipes adversárias possam se reunir e jogar uma partida justa, aumentando assim o apelo e a integridade do esporte. Embora essa cooperação possa parecer semelhante a um comportamento cartelizado, ela pode ser fundamental para o funcionamento adequado das competições esportivas.
Além disso, competições esportivas precisam de um número mínimo de participantes, pois não existe torneio de um time ou de um atleta só. Diferentemente de mercados tradicionalmente analisados no direito concorrencial, times ou atletas não se beneficiam com a exclusão de concorrentes. Ademais, esses concorrentes devem ser suficientemente fortes para se manterem nos torneios, pois a manutenção da incerteza sobre o resultado das competições é crucial para o interesse do público. Quanto maior a incerteza sobre o resultado final, maior o interesse e a rentabilidade de um determinado torneio ou campeonato. Ademais, a fidelidade dos torcedores, ou "consumidores", com os times ou atletas é influenciada por fatores como paixão, história, laços familiares e senso de comunidade, resultando em uma demanda com baixa elasticidade. Essa dinâmica única do mercado esportivo destaca a importância da cooperação para garantir competições emocionantes e justas, que mantêm o público engajado e apaixonado.
Assim, para analisar a violação às normas concorrenciais no ambiente esportivo, deve-se levar em consideração o seguinte dilema: até que ponto a cooperação entre organizadores é necessária para preservar a integridade e a atratividade do esporte, e quando ela passa a representar uma conduta abusiva e anticompetitiva? Não é possível simplesmente replicar o desfecho de nenhum dos casos de outros esportes para o cenário do tênis. A linha entre uma governança legítima e um arranjo anticompetitivo pode ser tênue, o que torna a análise jurídica extremamente complexa e sujeita às mais variadas interpretações, sempre fundamentada em provas. É fundamental analisar as particularidades de cada esporte e o impacto real das práticas adotadas pelos órgãos de governança de cada esporte, em especial a existência de razoabilidade (ou não) nas justificativas para a imposição de eventuais restrições aos times ou jogadores.
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1 ATHAYDE, Amanda. FERNANDES, Victor Oliveira. Concorrência e Esportes. Ed. Amanuense, 2024.
2 STREET, Andrew; THOMAS, Graeme; CHRISTODOULIDES, George. Showing Anti-Competitiveness the Red Card. Bryan Cave Leighton Paisner LLP, 2024; RIVAS, José; KING, Saskia; ALARCON, Paula Gonzales; LIANG, Quinn. The Future Governance of Sports & Competition. Bird & Bird, 2023; JUKES, Natalie; BROADBENT, Jonothan. Competition Law and Sports - A New Era for Sports Regulation? Hausfeld LLP, Volume 10, Issue 3, 2024.
3 GAGLIO, Nicholas; STROSS, Zachary. A Year of Antitrust Challenges Within U.S. Organized Sports. Global Competition Review, 2024.
4 OECD. OECD Competition Policy Roundtable Background Note. 2023
5 No caso envolvendo FIFA, UEFA, Super League na Europa, por exemplo, a Super Liga questionou judicialmente a regra da FIFA e da UEFA de que os times filiados deveriam ter uma autorização prévia para participar de jogos não organizados por eles, mas jogados em seus territórios. Caso contrário, seria banido de suas competições (Copa do Mundo, Champions League, European Championship, etc.). Para maiores detalhes: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex:62021CJ0333. Ademais, em outro caso contra a UEFA e a Associação Belga de Futebol, a Royal Antwerp questionou as "home grown rules". Para maiores detalhes: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:62021CC0680.
6 No caso envolvendo a International Skating Union (ISU), por exemplo, dois patinadores denunciaram a regra da ISU de que o patinador no gelo incorreria em penalidades se participasse de qualquer competição de skating sem a autorização prévia da ISU. Para maiores detalhes: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex:62021CJ0124
7 No caso envolvendo a National Football League (NFL) Sunday Ticker, os clientes alegaram que a NFL e seus clubes membros concordarem em não competir entre si e monopolizar o mercado de produtos para apresentações de vídeo ao vivo dos jogos da temporada regular da NFL. Para maiores detalhes: https://www.nflsundayticketlawsuit.com/documents
8 No caso envolvendo Ultimate Fighting Championship (UFC), lutadores questionaram dois pontos. (i) O Poder de monopólio - UFC, como principal vendedora de lutas profissionais de MMA ao vivo de elite, tinha a capacidade de - e de fato fez - impedir que seus rivais promovessem lutas profissionais de MMA ao vivo de elite ou transmitissem nos Estados Unidos, na América do Norte e no mundo. E (ii) Poder de monopsônio - UFC impediria ilegalmente a concorrência ou potenciais concorrentes como o principal comprador de serviços de lutadores profissionais de MMA de elite, por meio de contratos de exclusividade, cláusula de "Right to Match" (que permite o direito do UFC de oferecer uma luta por um ano), cláusula de não concorrência, retaliação a atletas que trabalhassem com outras empresas. Para maiores detalhes: https://www.ufcclassaction.com/key-developments.
9 Há diversos casos envolvendo NCAA (National Collegiate student Athletes Associations), que basicamente partem da denúncia de estudantes que foram excluídos de universidades por violação de regras das associações de atletas estudantes ou de órgãos estaduais. No caso de Bewley, questiona-se a restrição ao pagamento para atletas-estudantes para além das "actual and necessary expenses", ou seja, remuneração para jogarem jogos de times profissionais. No caso do Tennessee, questiona-se a restrição à negociação, pelos atletas-estudantes que buscam transferência, de direitos sobre "name, image and likeness (NIL)" com universidades (Tennessee). Por sua vez, no caso de Ohio, questiona-se a proibição de que os atletas-estudantes joguem durante todo um ano acadêmico depois da segunda transferência entre universidades ("Transfer Eligibility Rules") (Ohio). Para maiores detalhes: https://www.ncaa.org/news/2024/7/26/media-center-settlement-documents-filed-in-college-athletics-class-action-lawsuits.aspx
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.
Arthur Romano Arcuri
Bacharelando na Universidade de Brasília (UnB). Diretor do Grupo de Estudos em Direito Empresarial e Arbitragem da UnB (GEA/UnB). Pesquisador voluntário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) nas áreas de arbitragem internacional, direito societário e M&A. Integrante da equipe de Reestruturação e Insolvência do Stocche Forbes Advogados.