"Príncipe", segundo os léxicos, não é somente aquele contemplado com o respectivo título majestático. Nem apenas o filho do rei, destinado a sucedê-lo no trono real. Tampouco, em alguns países, o mandatário maior de Estados Nacionais que nunca o elegeram. "Príncipe" também é o primeiro, o mais notável em talento ou noutras virtudes. É dizer, descontado o "Príncipe das Trevas" poetado por Vicente de Carvalho, há de ser reputado "príncipe" o homem superiormente educado, na ciência e na consciência, que exiba maneiras e hábitos ostensivamente finos, polidos e aristocráticos. É nesse sentido rigorosamente vernacular, nenhum outro, que o cá homenageado deve ser enquadrado.
O catanduvense Walter Ceneviva nasceu no ano da graça de 1928. O mesmo ano em que Mário de Andrade fez publicar o célebre Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, celebrizado no filme que o "bigrande" Grande Otelo encenaria. Neste mesmo ano, o de 1928, também brotavam Ernesto "Che" Guevara, Gabriel Garcia Márquez, Grace Kelly, Nelson Pereira dos Santos e Tônia Carrero. Igualmente em 1928, Carlos Drummond de Andrade divulgaria os antológicos versos do "No meio do caminho". Já o camundongo Mickey Mouse, criação de Walt Disney, então conquistaria os entusiasmados aplausos e "hurras" da assistência que ocupava o Colony numa bochornosa tarde da Broadway nova-iorquina. Mais faltasse, poucos meses após Alexander Fleming descobriria a milagrosa penicilina.
Seria espantoso que, em meio a tantas pompas estéticas e circunstâncias redentoras, coincidências e convergências astrológicas, menos ilustre e notável pudesse se tornar a rota vivencial do nosso "Príncipe". Certamente não para nela percorrer os caminhos de Sierra Maestra, à semelhança do guerrilheiro Guevara; quiçá para alinhavar romances sensuais e tórridos, ambientados nas florestas tropicais, como imaginou o colombiano Garcia Márquez; ou para se expressar, nos palcos da vida, com a voz aveludada que apaixonou a minha geração, a de Tônia Carrero; também não, a exemplo do poetaço de Itabira, Drummond, para fazer dos versos um poderoso instrumento de emoções.
Acompanhei o "Príncipe", sem que nela tivesse qualquer ingerência ou mínima contribuição, na exemplar caminhada de sucessos e conquistas. Fui seu par, e obviamente bisonho aprendiz, nos colegiados da advocacia paulista. Juntos, e comigo à sua sombra protetora, percorremos o interior paulista debatendo assuntos momentâneos e de relevância jurídica. E quando, na fase das perguntas da assistência, eu embatucava com as indagações e os reptos dos presentes (engasgos de impressionante recorrência...), era ele, o Walter, quem acudia. Bastava que eu lhe dirigisse um olhar súplice para que, sem pedir licença a ninguém, do alto de sua sabedoria, mas preservando a humildade inata, ele prontamente interviesse.
Sou testemunha presencial, longamente experimentada, da modéstia comportamental, da erudição técnica e da cortante retórica do Ceneviva. Nesses nossos saudosos eventos, ele jamais despejava pesporrências, mostrava arrogâncias ou desembuchava bazófias. Era simples e lhano, sem armar ostentações. Bastavam-lhe a energia do berço e da educação. Aliás, discreto e espontâneo não somente nas falas, como por igual nas peças redigidas. Contrariando aquilo que hoje se vê, aqui e alhures, em presunçosos que encontram, na exposição quilométrica e dolosamente baralhada, meio e modo de preservar a ignorância de quem os lê (ou melhor, tenta ler...), o "Príncipe" sempre foi transparente, claro e objetivo.
Que o digam os seus memoráveis artigos na Folha de S.Paulo, bem como as variadas produções literárias, editadas e reeditadas pela Malheiros, Saraiva e Revista dos Tribunais. Todas elas icônicas e ainda de forçosa consulta, a exemplo do Direito Constitucional Brasileiro, da Publicidade e Direito do Consumidor, sem esquecer dos Segredos Profissionais, aos quais, não sem bom arrimo, seguem aludindo monografistas, doutrinadores e julgadores.
A política nacional era tema permanente nessas jornadas que os tempos não trazem mais... Como ponderava Chesterton, colacionado por Georges Abbud nos "Cinco Mitos sobre a Constituição Brasileira de 1988" (Revista dos Tribunais, v. 996, p. 34, 2018), o mundo moderno está dividido entre progressistas e conservadores. O papel dos primeiros é cometer erros continuamente. A função dos segundos é evitar que tais desacertos sejam corrigidos...
A nenhum desses grupos pertenço. Descrente de todos eles, e amargurado pelas reiteradas práticas dos meus governantes, tornei-me, e assim prossigo, politicamente cético, essencialmente um agnóstico, sempre desconfiado de tudo quanto os dirigentes tupiniquins proponham, ou executem. Portanto, um democrata sentimental, romântico e carente de racionalidade.
Ceneviva ao contrário, fiel às suas crenças, chamava-me à razão. Insistia nos valores da democracia, embora, a exemplo de Churchill, nela reconhecendo graves defeitos. Para ele, nas preleções com as quais me presenteava, a liberdade no viver, que o autoritarismo sacrifica ou aniquila, é, e sempre será, fundamental à tutela da dignidade dos viventes.
Saindo das estradas interioranas, tive novamente a honra e o prazer de cruzar com o Ceneviva. E isto quando o "Príncipe" foi nomeado perito judicial para avaliar o prejuízo sofrido pelo Estadão em decorrência da censura imposta no período militar. A sentença de procedência da ação indenizatória, datada de 26 de março de 1976 e prolatada pelo destemido (porque a época dele exigiu imensa coragem judicante!) juiz federal Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, seria confirmada pelo Tribunal Federal de Recursos e pela Corte Suprema.
Iniciada a liquidação, Ceneviva foi encarregado da perícia avaliatória, produzindo então um laudo valioso e completo, não só sob a óptica monetária, como também, e principalmente, mercê do aprofundado estudo sobre todas as etapas da elaboração de um jornal. Mas, e sem que isso possa surpreender a qualquer um dos leitores, o certo é que até hoje, não obstante passados 44 anos da prolação do decisório monocrático, e 36 da perícia "ceneviviana", a União não chegou a pagar um único centavo do ressarcimento ao qual condenada...
Mais fosse necessário anotar, Walter Ceneviva é figura humana especial, chefe de família como poucos. A sua afabilidade, a sua inteligência e a sua requintadíssima ironia constituem dons incomuns em todos quantos tive o prazer, ou o desprazer, de encontrar nestas mais de sete décadas de existência.
Ao advogado, professor, jurista, jornalista e causeur incomparáveis, a classe devia mais uma homenagem, como aquela aqui prestada pela AASP. Permita Deus que outras venham, dado que, todas elas, mesmo somadas e decuplicadas, não serão suficientes para render suficiente reverência ao "Príncipe".
Longa vida a Sua Alteza!
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*Manuel Alceu Affonso Ferreira é advogado e conselheiro do IASP. Foi secretário estadual de Justiça e Defesa da Cidadania e juiz do TRE de SP. Participou dos conselhos Secional e Federal da OAB.