Migalhas de Peso

Algumas palavras a respeito de Walter Ceneviva

Jamais por intromissão, sempre disposto e sorridente, esse homem notável, nunca intrometido, jamais se furtou de ouvir e discutir problemas dos amigos, sem exageros, com profundo respeito e sincero desejo de ajudar.

14/5/2020

Honrado com a solicitação da AASP, na pessoa do doutor Antonio Ruiz Filho, para registrar algumas palavras a respeito desse advogado – e mais que advogado –, esse homem plural que é Walter Ceneviva.

Quero desde logo dizer que falar sobre Ceneviva, a partir da longa convivência que com ele mantive, é bem fácil. Mas não é fácil como parece, tendo em vista as múltiplas atividades por ele desenvolvidas com perfeição, eficiência e eficácia nos mais diversos setores ligados ao Direito e à cultura em geral. Mais: em uma trajetória de não menos que 60 anos de atividade, mantivemos, ele e eu, contato frequente por metade desse tempo.

Walter Ceneviva: quantas lembranças! Todas entre as melhores. Das coisas que tenho para agradecer à AASP, uma delas muito importante foi ter conhecido esse homem plural sob numerosos aspectos. E importante porque nos conhecemos nessa estimada AASP. Éramos conselheiros numa plêiade formada por 21 advogados dedicados às mais diversas atividades profissionais e todos a serviço do objetivo maior da entidade – a prestação de serviços aos advogados em geral.

Era a década de 1970. Anos negros da ditatura militar. No Conselho, as mais diversas inclinações políticas transpareciam, desde o colega sabidamente esquerdista até os radicais apoiadores do governo de plantão, mas em maior número o daqueles com declarada vocação para as liberdades democráticas, até porque a advocacia só atua com perfeição, a serviço da distribuição de justiça e regimes constitucionais democráticos. Nisso, Ceneviva e eu de imediato nos identificamos. A produção legiferante da ditatura era intensa, e a AASP procurava, em curto prazo, analisar, comentar e opinar com autoridade científica no afã de esclarecer seus associados para melhor interpretação e adequado exercício profissional.

A cada novo diploma, a depender do ramo do Direito respectivo, um dos conselheiros era sorteado para análise e orientação à classe, com divulgação no Boletim AASP. Nas sessões do Conselho Diretor, os conselheiros traziam cada qual sua colaboração, esta era lida em plenário, discutida e, uma vez aprovado o texto definitivo, essa manifestação, em nome da entidade, era inserida no Boletim. Nessa função, Ceneviva pontificava. Os decretos/leis/portarias expedidos pela ditatura entravam em vigor de imediato ao dia seguinte da publicação. Em tal cenário, o exercício profissional da advocacia era enormemente dificultado, motivo pelo qual solicitava-se ao conselheiro que opinasse com a possível urgência. Teoria e prática em estilo perfeito e enxuto, o Conselho inteiro ouvia com enorme respeito essas manifestações de seu espírito culto, denso, mas nunca tedioso. Ele cumpria rigorosamente os prazos apertados impostos pela ditadura.

De minha parte, tendo sido eleito para a Diretoria executiva da AASP e por isso dispensado de produzir as citadas análises, as reuniões semanais eram agendadas para as 20h, entre o presidente do Conselho Diretor e os demais diretores, fizeram-me por primeiro diretor de recortes: madruguei, assisti à azáfama dos muitos valorosos funcionários treinados para recortar, nas publicações oficiais, as intimações dirigidas aos associados, as quais eram grampeadas a um pequeno envelope aberto e entregues por um batalhão de funcionários nos escritórios, ainda no período da manhã. Os recortadores decoravam os nomes/números de inscrição na OAB; os envelopadores, os respectivos endereços; e os entregadores operavam por zonas específicas. Repeti as visitas, gostei por demais dos contatos com os líderes daquele setor, bem assim das turmas operativas, mas nada pude acrescentar ao sistema perfeito para aquela época pré-digital, que fora concebido, modificado e testado no limite pelo valoroso e estimadíssimo Theotonio Negrão. Registre-se, a respeito: nenhum associado reclamava do serviço. Ao servir aos advogados, a AASP servia e serve à distribuição de justiça.

Fui também diretor de cultura e organizei muitas palestras, para as quais convidava professores e advogados. Após, diretor de biblioteca, nos reuníamos à noite para os assuntos administrativos e me surpreendi quando, por primeira vez, funcionários colocaram diante de mim oito ou dez livros necessários à boa prática da advocacia, sendo informado então de que havia um limite muito pequeno de recursos, devendo eu escolher os que considerasse melhores para a nossa modesta biblioteca. Constrangido diante de tal limitação, quando a cena se repetiu ocorreu-me redigir um ofício com a assinatura do presidente da AASP dirigido aos editores de livros jurídicos, relatando o número de associados, o número maior de leitores nos escritórios, e, por importante, esclarecer que nossa biblioteca não era circulante. Em reciprocidade pelo envio dos volumes sem custo, cada uma dessas doações seria divulgada no Boletim AASP, com nosso agradecimento e breves referências ao teor da obra recebida. Essa minuta a submeti aos demais diretores e, aprovada, foi submetida com sucesso à aprovação do Conselho Diretor e, ato contínuo, expediram-se ofícios a todas as referidas editoras. Resultou que, em curto prazo, tantos eram os livros que tivemos de alugar mais um pavimento no velho edifício no Largo de São Francisco e contratar bibliotecária para inventariar, organizar o acervo. Dessa forma, liberado de redigir orientações a respeito dos diplomas legais da ditadura, pude também interferir na melhoria da gestão da entidade e exemplifico: com a inflação elevada, as contas bancárias eram indexadas para a preservação do seu valor aquisitivo, e logo me dei conta de que, espertamente, os parcos recursos da nossa entidade não eram corrigidos conforme descrito. Evidente que gerou desconforto, demissão.

Há mais: na presidência de meu saudoso amigo Sérgio Marques da Cruz, sugeri a ele que pedíssemos sugestões de pautas para exame de nossa Diretoria, porque achava eu que essas pautas vinham preparadas ao alvedrio da cúpula administrativa, dos funcionários da entidade. Sérgio era invulgarmente veloz em decidir. Convocou uma reunião de todos os conselheiros num hotel nas proximidades e comunicou que, em sua opinião, deveríamos substituir todos os gestores administrativos porque constatara irregularidades manifestas, tendo exemplificado com algumas, entre as mais sérias, e com isso se cortariam não poucas despesas desnecessárias. Seriam mantidos, evidentemente, os funcionários do setor de recortes, da biblioteca, e uns poucos outros, mas os gestores administrativos seriam demitidos de uma só vez. A reunião havia sido convocada fora da entidade por motivos óbvios e a sugestão de Sérgio foi aprovada por unanimidade. E aprovada, também, porque Sérgio tinha localizado um profissional competente e de bom currículo para assumir as funções administrativas, e paulatinamente preencher os demais quadros estritamente indispensáveis.

Acabo de fazer esses relatos sem me preocupar com eventuais críticas de autopromoção, mas a bem dos registros na história dessa nobilíssima entidade.

Não muito depois, tornei-me diretor jurídico de uma importante multinacional situada fora do perímetro urbano, e os deslocamentos diários por estrada famosa pelo número de acidentes na época me levaram a desistir do honroso cargo, porque dependiam de mim esposa e quatro crianças, que sempre foram minha prioridade. De volta a atuar na capital, sem muito ponderar aceitei exercer o gerenciamento e o controle de qualidade dos serviços de uma equipe de advogados no que poderia jocosamente intitular “fábrica de contratos”, alguns dos quais de elevado valor; e contribuir para a solução de numerosos assuntos legais, tudo o que, diria, em ritmo quase frenético. Pouco depois, por lealdade aos clientes, senti necessário dividir a imensa responsabilidade com um colega independente, de reconhecida autoridade científica e comprovada experiência, que pudesse nos dar suporte naquele quadro de numerosas relações contratuais com terceiros e consultas a respeito das mais variadas situações a que um advogado é solicitado a se manifestar. A pessoa, o profissional que por primeiro me veio: Walter Ceneviva! Fiz a indicação e, dado o entusiasmo com que recebida por todos, pude constatar que seu nome era afamado em altas esferas, como professor e advogado de nomeada. Cabia a mim convidá-lo para um almoço e auscultar a possibilidade de sua colaboração. Descrevi nossas necessidades, Ceneviva concordou em princípio, veria a acomodação possível em sua agenda para nos reunirmos em nossas instalações, além de podermos consultá-lo por telefone ou presencialmente em seu escritório; e nos encaminharia sua proposta de honorários.

Trato feito, uma visita semanal, período da manhã a partir das 9 h, entre seis e oito advogados o esperávamos, cada qual com as questões sobre as quais o colega incumbido e eu não havíamos chegado a uma conclusão satisfatória. Não apenas isso, porque os colegas de outras unidades acorriam sempre que sentissem necessidade. De não esquecer: perdurava a descrita situação dos excessos legiferantes dos ditadores; até portarias ministeriais tinham status de lei com imediata entrada em vigor desde a publicação.

A essa altura me foi revelado, com espanto, um Walter Ceneviva inteiramente desconhecido, e diversos eram os motivos: a) descontraído, avesso a hierarquia entre colegas, do primeiro encontro em diante cumprimentava um a um pelo nome, tomávamos assento e ele dizia ter ouvido uma anedota que nos queria contar. Em anos, nunca houve piadas repetidas, outro mistério. Anedota é uma arte e ele, um mestre na especialidade, de sorte que todos explodíamos em estrepitosas gargalhadas. Em geral eram duas ou três por reunião, após o que seguia-se a frase invariável enquanto recuperávamos o fôlego: "Agora que falamos de coisas sérias, passemos ao menos importante".

Dava-se prioridade aos consulentes por ordem de urgência. Na maior calma, códigos sobre mesinha lateral, Ceneviva declinava achar-se a disciplina do problema no código X, artigo y, e em seguida sugeria que conferíssemos. Sem erro! Seguia-se breve comentário a respeito de doutrina e jurisprudência, e indicava a melhor orientação a seguir. Tudo para espanto dos que presenciáramos a maravilha de sua memória e do que com base nela raciocinava. Após breve explanação, indicava a orientação a ser seguida. Um a um, todos éramos atendidos e, por volta de três horas de reunião, o nosso iluminado mestre e amigo despedia-se com o invariável bordão: "Até a próxima! Agora vou enganar em outra freguesia...".

Demorou até eu entender o motivo de tamanha descontração, anedotas, frases inicial e final: é que a solenidade e o excessivo respeito humano e cuidado nos encontros de trabalho dificulta a comunicação e a criatividade, coloca barreiras entre as pessoas. Amante da advocacia e da igualdade entre advogados e demais operadores do Direito, na maior sem cerimônia possível, Ceneviva sempre colocou o melhor de seu saber e criatividade à disposição de todos. E, em prejuízo de todos, faz algum tempo aposentou-se após quase 70 anos de intensa atividade em diversos campos da cultura.

O homem plural Walter Ceneviva.

Poderia estender-me por páginas e páginas e relatar outras muitas boas lembranças do longo convívio com esse precioso amigo e mestre, mas resumirei assim:

Paternidade – Pai de numerosa família, proporcionou estudos superiores, exemplo e assistência pessoal à numerosa prole, todos hoje em posições de merecido destaque, mas sempre atribuiu os créditos à esposa, doutora Maria Evanira Ceneviva, prestimosa companheira, também competente advogada.

Intelectual e humanista – Ainda jovem criou para si mesmo um sistema de férrea disciplina convertida em prazer: madrugar diariamente para obter seu "tempo discricionário" e, em décadas sucessivas, ler os mais importantes tratadistas dos mais diversos ramos do Direito e, o melhor, os clássicos da literatura universal, diversos dos quais no texto original, pois Ceneviva também é fluente em vários idiomas. E teve clientes no exterior por longo tempo, até decidir aposentar-se. Apreciador das artes em geral, Ceneviva conheceu os mais importantes museus do planeta, assim também salas de concerto. Uma paixão especial: a ópera, o bel canto. Memória privilegiada, conforme anteriormente relatei, Ceneviva sempre extraiu o maior proveito de cada coisa que a vida lhe proporcionou.

O amigo e companheiro – Jamais por intromissão, sempre disposto e sorridente, esse homem notável, nunca intrometido, jamais se furtou de ouvir e discutir problemas dos amigos, sem exageros, com profundo respeito e sincero desejo de ajudar.

Em testemunho da verdade, dou fé.

__________

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.








__________

*Jayme José Martos Cueva é formado pela Faculdade de Direito da USP, turma de 1963, dedicando-se ao Direito Privado, especialmente ao Direito Contratual. Ministrou aulas na Faculdade de Direito da PUC/SP. Atuou no  Conselho e na Diretoria da AASP entre 1973 e 1981.

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