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A extrajudicialização do Direito Privado e o alerta do professor Walter Ceneviva

"Sobre o tema, o nosso homenageado, o jurista e professor Walter Ceneviva, é um dos entusiastas, alertando há tempos sobre a necessidade de busca de outros meios para a solução dos litígios, bem como para a redução de burocracias".

12/5/2020

Como se sabe, o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 tem como um dos seus nortes principiológicos a extrajudicialização dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o Estatuto Processual em vigor que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, está previsto que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do CPC/2015).

Sobre o tema, o nosso homenageado, o jurista e professor Walter Ceneviva, é um dos entusiastas, alertando há tempos sobre a necessidade de busca de outros meios para a solução dos litígios, bem como para a redução de burocracias. Em um dos seus famosos textos, publicado no ano de 1979 no jornal Folha de S.Paulo, com o título "Perspectivas do sistema judiciário brasileiro", já pontuava que "o funcionamento do sistema judicial no Brasil é caso agudo de necessidade urgente de desburocratização. Carimbos, rubricas, protocolos, despachos, rotinas medievais fazem do processo, tomado em seu sentido amplo e dada sua natureza formalista, uma estrada de muitas saídas, mas com flechas indicativas confusas, contraditórias, obscuras. A origem lusitana conduziu a uma complicação de meandros e desvãos que mereceu, ao longo dos séculos, o inútil ferro em brasa da crítica mais mordaz. Inútil, porque os funcionários da Justiça continuaram criando novas dificuldades rotineiras, indiferentes à pecha de ineficácia que os atingia, mas não os modificava".

Neste breve texto de homenagem, pretendo analisar dois aspectos que dizem respeito à extrajudicialização do Direito Privado, bem como à redução de burocracias nesse âmbito. O primeiro diz respeito à possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva no cartório de registro civil, diante do recente Provimento nº 83 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O segundo é relativo à possibilidade de se efetivar o inventário extrajudicial no tabelionato de notas, mitigando o texto do art. 610 do atual CPC. O homenageado há tempos também se dedica ao estudo da atuação dos cartórios, especialmente nos seus comentários sobre a Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973).

Sobre o primeiro tema, no dia 14 de agosto de 2019, a Corregedoria-Geral de Justiça do CNJ editou o Provimento nº 83, que altera o anterior Provimento nº 63/2017, em especial quanto ao tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Como é notório, a norma administrativa anterior surgiu em decorrência da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016, fixando a seguinte tese, para os fins de repercussão geral:

"a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o  reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (publicação no Informativo nº 840 da Corte).

Os "considerandos" da nova norma destacam, entre outras questões e justificativas para a alteração do preceito administrativo anterior: a) o poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário dos atos praticados por seus órgãos; b) a competência do Poder Judiciário para fiscalizar os serviços notariais e de registro; c) a ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da filiação civil; d) a possibilidade de o parentesco resultar de outra origem que não a consanguinidade, proibida toda designação discriminatória relativa à filiação: a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade perante o oficial de registro civil das pessoas naturais; e) a necessidade de averbação, em registro público, dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; f) o fato de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios, como decidiu o STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, em repercussão geral, conforme citei há pouco; g) a plena aplicação do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva para aqueles que possuem 18 anos ou mais; h) a possibilidade de aplicação desse instituto aos menores, com 12 anos ou mais, desde que seja realizada por intermédio de seus pais, nos termos do art. 1.634, inciso VII, do Código Civil, ou seja, por representação; e i) a recomendação de que o Ministério Público seja sempre ouvido nos casos de reconhecimento extrajudicial de parentalidade socioafetiva de menores de 18 anos.

O primeiro dispositivo alterado foi o art. 10 do Provimento nº 63, que passou a ter a seguinte redação: "o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais". Eis aqui uma das principais modificações a serem destacadas, pois a regra anterior não limitava o reconhecimento extrajudicial quanto ao critério etário, atingindo agora apenas os adolescentes, assim definidos pelo art. 1º da lei 8.069/1990 como as pessoas com idade entre 12 e 18 anos, e adultos. Seguiu-se, assim, parcialmente o critério etário da adoção, que, como a parentalidade socioafetiva, constitui forma de parentesco civil. Diz-se parcialmente, pois, pelo art. 45, § 2º, do mesmo Estatuto da Criança e do Adolescente, há necessidade apenas de ouvir a pessoa adotada que tenha essa idade ou mais, mas não há essa limitação de idade para a adoção, restrição que agora atinge a parentalidade socioafetiva extrajudicial.

Além dessa alteração no caput, o art. 10 recebeu uma alínea a, outra novidade, passando a estabelecer critérios para a configuração da parentalidade socioafetiva, que deve ser estável e exteriorizada socialmente. Conforme o seu § 1º, recomenda-se na norma que o registrador ateste a existência do vínculo socioafetivo mediante apuração objetiva, por intermédio da verificação de elementos concretos, a fim de demonstrar os três critérios da posse de estado de filhos citados no julgamento do STF: o tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome (nominatio).

O mesmo comando ainda estabelece que o ônus da prova da afetividade cabe àquele que requer o registro extrajudicial, por todos os meios em Direito admitidos, especialmente por documentos, tais como elencados em rol meramente exemplificativo, ou numerus apertus: a) apontamento escolar como responsável ou representante do aluno em qualquer nível de ensino; b) inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência privada; c) registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; d) vínculo de conjugalidade, por casamento ou união estável, com o ascendente biológico da pessoa que está sendo reconhecida; e) inscrição como dependente do requerente em entidades associativas, caso de clubes recreativos ou de futebol; f) fotografias em celebrações relevantes; e g) declaração de testemunhas com firma reconhecida (art. 10-A, § 2º, do Provimento nº 83 do CNJ). Além desses documentos, cite-se a possibilidade de prova por escritura pública de reconhecimento da parentalidade socioafetiva, que chegou a ser lavrada em alguns poucos tabelionatos de notas do país, de forma corajosa, e que confirma que a relação descrita no dispositivo não é taxativa ou numerus clausus.

A ausência desses documentos não impede o registro do vínculo socioafetivo, desde que justificada a impossibilidade. No entanto, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo (novo art. 10-A, § 3º, do Provimento nº 83 do CNJ). Percebe-se, desse modo, a existência de uma construção probatória extrajudicial e de certo poder decisório atribuído ao oficial de registro civil, o que representa passos avançados e importantes em prol da extrajudicialização, que contam com o meu total apoio. Todos esses documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador – em originais ou cópias –, juntamente com o requerimento (art. 10-A, § 4º, do Provimento nº 83 do CNJ).

Feitas essas anotações, o art. 11 do Provimento nº 63 também recebeu alterações, para se adequar a regulamentações anteriores. O dispositivo trata do processamento do reconhecimento extrajudicial, enunciando o seu caput que será feito perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação. Na dicção do novo § 4º desse art. 11, se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. A previsão anterior do § 4º era a de que, "se o filho for maior de doze anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá seu consentimento". Como se percebe, o novo texto está de acordo com a vedação de reconhecimento extrajudicial do menor de 12 anos de idade.

Também foi incluído o § 9º nesse art. 11 do Provimento nº 63, agora com menção expressa à atuação do Ministério Público, conforme justo pleito formulado pelas suas instituições representativas. Conforme o novo comando, atendidos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o registrador encaminhará o expediente ao representante local do Ministério Público para que elabore um parecer jurídico. O registro da paternidade ou maternidade socioafetiva será realizado pelo registrador somente após o parecer favorável do Ministério Público. Eventualmente, se o parecer for desfavorável, o registrador civil não procederá ao registro da paternidade ou maternidade socioafetiva e comunicará o ocorrido ao requerente, arquivando o expediente. Por fim, está expresso nesse artigo que eventual dúvida referente ao registro deverá ser remetida ao juízo competente para dirimi-la, ou seja, não sendo viável o caminho da extrajudicialização, a solução está no Poder Judiciário.

A previsão da necessária atuação extrajudicial do Ministério Público tem, mais uma vez, meu total apoio. Tanto isso é verdade que fiz sugestões de alterações legislativas à Comissão Mista de Desburocratização, para que sejam viáveis juridicamente a alteração do regime de bens, o inventário e o divórcio extrajudiciais perante o tabelionato de notas – os dois últimos, mesmo havendo herdeiros ou filhos menores ou incapazes –, sempre com a intervenção do Ministério Público. Os projetos de lei que tratam dessas possibilidades estão em trâmite no Congresso Nacional.

Como tema mais polêmico de todos os que constam da norma administrativa, o art. 14 do antigo Provimento nº 63 recebeu novos parágrafos, a fim de tratar da multiparentalidade extrajudicial, na linha do que foi decidido pelo STF no julgamento da repercussão geral sobre o tema, aqui antes citado e citado expressamente nos "considerandos" dos dois provimentos. Foi mantido o caput do art. 14, in verbis:

"o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento".

A previsão vinha gerando muitas dúvidas e incertezas a respeito da possibilidade ou não de reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade e talvez pudesse ser até aperfeiçoada, com mais clareza. Com o texto atual, acrescido dos dois novos parágrafos, a minha resposta continua sendo positiva quanto a essa polêmica, apesar de o caput não ter sido modificado.

Na dicção do novo § 1º do art. 14 do Provimento nº 63 do CNJ, "somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno". Além disso, se o caso envolver a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, deverá tramitar pela via judicial (§ 2º). Penso que se confirma, portanto, a viabilidade do registro da multiparentalidade no cartório. Porém, tal reconhecimento fica limitado a apenas um pai ou mãe que tenha a posse de estado de filho.

Se o caso for de inclusão de mais um ascendente, um segundo genitor baseado na afetividade, será necessário ingressar com ação específica de reconhecimento perante o Poder Judiciário. Nota-se, assim, a preocupação de evitar vínculos sucessivos, que, aliás, são difíceis de se concretizar na prática, pois geralmente a posse de estado de filhos demanda certo tempo de convivência.

De toda forma, pela redação mantida no caput, não é possível que alguém tenha mais de dois pais ou duas mães no registro, ou seja, três pais e duas mães ou até mais do que isso. Esclareceu-se o real sentido do termo “unilateral”, que consta do caput e que era objeto dos citados calorosos debates. A norma merece elogios, por trazer mais certeza a respeito do tema. Em suma, tentando atender a vários pleitos e pedidos que foram formulados por entidades distintas, o novo Provimento nº 83 do CNJ aperfeiçoa o anterior, firmando o caminho sem volta da redução de burocracias e da extrajudicialização, como defendido pelo nosso homenageado.

Como segundo tema a ser tratado neste breve artigo, sabe-se que, com a aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 4.725/2004, convertido na lei 11.441/2007, o sistema jurídico brasileiro passou a admitir o inventário extrajudicial, feito por escritura pública, perante o tabelionato de notas. Trata-se de inovação festejada, que veio a reduzir consideravelmente a burocracia para a partilha dos bens do falecido. Nesse sentido, a redação anterior do art. 982 do CPC de 1973, já alterada pela lei 11.965/2009, pela menção ao defensor público, estabelecia que, havendo testamento ou interessado incapaz, somente seria possível o inventário judicial. Por seu turno, se todos os herdeiros fossem capazes e concordes, haveria a viabilidade jurídica de processamento do inventário e da partilha por escritura pública, a qual constituiria título hábil para o registro imobiliário. A norma também enunciava que o tabelião somente lavraria a escritura pública se todas as partes interessadas estivessem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constariam do ato notarial. Por fim, estava previsto na lei anterior que a escritura e demais atos notariais seriam gratuitos àqueles que se declarassem pobres, sob as penas da lei.

O CPC de 2015 praticamente repetiu o preceito no seu art. 610, com a seguinte redação:

"Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.

§ 1º - Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

§ 2º - O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial”.

Como se pode perceber, a única diferença substancial entre os dois comandos diz respeito à falta de menção à gratuidade do ato para os que se declararem pobres, assim como ocorreu com a separação e o divórcio extrajudiciais. De todo modo, defendo, desde a emergência do CPC/2015, que a gratuidade permanece no sistema jurídico brasileiro, por estar prevista em lei especial anterior, qual seja a lei 11.441/2007, que não foi recepcionada nem revogada nessa parte pelo Estatuto Processual em vigor. Vale lembrar, entre outros argumentos para a sua manutenção, que há referência expressa à gratuidade no art. 5º, inciso LXXIV, da Norma Fundamental, in verbis: "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Exatamente nesse sentido, e citando a minha posição doutrinária, merece relevo decisão prolatada no âmbito do CNJ, publicada em abril de 2018, segundo a qual “a consulta é respondida no sentido de que a gratuidade de justiça deve ser estendida, para efeito de viabilizar o cumprimento da previsão constitucional de acesso à jurisdição e a prestação plena aos atos extrajudiciais de notários e de registradores. Essa orientação é a que melhor se ajusta ao conjunto de princípios e normas constitucionais voltados a garantir ao cidadão a possibilidade de requerer aos poderes públicos, além do reconhecimento, a indispensável efetividade dos seus direitos (art. 5º, XXXIV, XXXV, LXXIV, LXXVI e LXXVII, da CF/88), restando, portanto, induvidosa a plena eficácia da Resolução n. 35 do CNJ, em especial seus artigos 6º e 7º" (CNJ, Consulta nº 0006042-02.2017.2.00.0000, requerente: Corregedoria-Geral de Justiça do Estado da Paraíba).

Assim, a gratuidade das escrituras de inventário está mantida em todo o território nacional, na linha desse importante julgado do CNJ, que teve como relator o conselheiro Arnaldo Hossepian.

Voltando à essência do segundo tema deste artigo de homenagem, pela literalidade dos dois textos instrumentais, o anterior e o atual, constata-se que, sendo as partes capazes e inexistindo testamento, poderão os herdeiros optar pelo inventário extrajudicial. O requisito da inexistência do testamento já vinha sendo contestado por muitos doutrinadores, existindo decisões de primeira instância que afastavam tal elemento essencial quando todos os herdeiros forem maiores, capazes e concordantes com a via extrajudicial.

A questão foi anteriormente julgada pela 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo, tendo sido prolatada a decisão pelo magistrado Marcelo Benacchio, em abril de 2014. A dúvida havia sido levantada pelo 7º Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com pareceres favoráveis à dispensa do citado requisito de representante do Ministério Público e do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, este último apoiado em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Porém, decidiu-se pela impossibilidade de se mitigar o texto do então art. 982 do CPC/1973.

Com o devido respeito, a minha posição sempre foi no sentido de que os diplomas legais que exigem a inexistência de testamento para que a via administrativa do inventário seja possível devem ser mitigados, especialmente nesses casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado, havendo prévio processamento de abertura do testamento na via judicial. Nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o fim social da lei 11.441/2007 foi a redução de formalidades, devendo essa sua finalidade sempre guiar o intérprete do Direito. O mesmo deve ser dito quanto ao CPC/2015, inspirado pelas máximas de desjudicialização e de celeridade, em vários de seus comandos, como visto.

A propósito, na VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) em 2015, foi aprovado enunciado prevendo que, após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial (Enunciado nº 600). Ainda em 2015, em outubro, no X Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões, do IBDFAM, aprovou-se o Enunciado nº 16 da entidade, com o seguinte teor: “mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.

Em 2016, o Provimento nº 37 da Corregedoria--Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo passou a aplicar exatamente o teor desse Enunciado nº 600, da VII Jornada de Direito Civil, conforme decisão do então desembargador-corregedor Manoel de Queiroz Pereira Calças. A propósito, ainda em 2016, no mês de agosto, o mesmo CJF promoveu a I Jornada sobre Solução Extrajudicial de Conflitos, sob a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão, também com a aprovação de enunciados doutrinários sobre a extrajudicialização do Direito. Uma das propostas aprovadas amplia o sentido do Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil, possibilitando o inventário extrajudicial se houver testamento também nos casos de autorização do juiz do inventário. Nos termos do Enunciado nº 77, "havendo registro ou autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial". Em agosto de 2017, dando ainda mais sustento doutrinário a tal posição, foi aprovado outro enunciado com o mesmo teor do último, quando da realização da I Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo mesmo CJF.

Por fim, pontue-se que, no mesmo ano de 2017, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro seguiu o exemplo paulista e passou a admitir que, se todos os interessados forem maiores de idade, lúcidos e não discordarem entre si, o inventário e a partilha de bens poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo, se isso for autorizado pelo juiz da Vara de Órfãos e Sucessões onde o testamento foi aberto. Citando enunciados doutrinários aqui destacados, houve alteração do art. 297 da Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça da Corte, por meio do Provimento nº 21/2017. Outros Estados adotaram a mesma solução, sucessivamente, caso da Paraíba e do Paraná, que editaram normas administrativas na mesma linha.

Espera-se que outras unidades da Federação sigam esse sadio caminho da desjudicialização, ou que a questão seja definitivamente regulamentada pelo CNJ, valendo para todo o país. Essa possibilidade de regulamentação pelo CNJ ganhou força pelo fato de que, em 2019, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acabou por admitir a realização de inventário extrajudicial, mesmo havendo testamento público, desde que a sua abertura seja feita anteriormente, no âmbito judicial. O acórdão cita todos os enunciados doutrinários aqui referenciados e também a posição deste autor, representando um passo importante para a sadia desburocratização (STJ, Recurso Especial nº 1.808.767-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 15/8/2019). De toda sorte, acaba não dispensando que a abertura prévia do testamento seja feita judicialmente, o que representa outro entrave burocrático que deve ser repensado.

Na verdade, para que não surjam argumentos contrários a todas essas posições doutrinárias e jurisprudenciais de avanço, parece-me que a melhor solução é a reforma do art. 610 do CPC/2015, admitindo-se o inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento – desde que todos os herdeiros concordem –, ainda que haja filhos incapazes do de cujus. Tais alterações são almejadas pelo grande Projeto de Lei de Desburocratização, originário de comissão mista formada no Senado Federal (PL nº 217/2018). Faz o mesmo o projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões elaborado pelo IBDFAM, que originou o PL nº 3.799/2019, proposto pela senadora Soraya Thronicke, que tem conteúdo no mesmo sentido.

Pelas projeções, nota-se que o Ministério Público passa a atuar nos inventários extrajudiciais, diretamente no tabelionato de notas, o que já ocorre em outros países, como em Portugal. Aguarda-se, assim, que uma das proposições citadas seja aprovada com brevidade pelo Congresso Nacional, retirando-se definitivamente entraves burocráticos do inventário extrajudicial, que não fazem mais o menor sentido, e efetivando-se a saudável e esperada extrajudicialização, defendida há tempos pelo jurista Walter Ceneviva.

__________

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.








__________

*Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Coordenador e professor do programa de mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família de São Paulo (IBDFAM-SP). Advogado em SP, parecerista e consultor jurídico.

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