1. O que é liberdade de expressão
1.1. O direito de personalidade
Cada indivíduo, e todo indivíduo, independentemente de raça, cor, religião, sexo, costumes, localização geográfica, escolha política, situação econômica ou qualquer outra variável, tem o direito de estar no mundo. E estar no mundo implica necessariamente estar de uma determinada forma.
Estar no mundo é estar vivo. É o direito à própria vida. Estar de uma determinada forma é estar vivo segundo a forma determinada por sua personalidade. Disso se conclui que direito de personalidade é a possibilidade fática e jurídica de estar no mundo, reconhecido e respeitado como indivíduo, de forma autônoma em relação a qualquer outro ser. Ilustres civilistas já definiram o direito de personalidade como "aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil. É pressuposto para a inserção e atuação da pessoa na ordem jurídica" (GONÇALVES, 2019, p. 98).
O direito de personalidade é a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações. Portanto, antecede o direito de adquirir direitos ou obrigações. É o direito de estar no mundo de forma individual e peculiar, com aptidão para adquirir outros direitos e obrigações.
Cada pessoa tem o direito de ser como indivíduo, e cada indivíduo, por definição, é diverso do outro. Portanto, o direito de personalidade é, por natureza, o direito à diversidade. Porque o direito à diversidade é essencialmente inerente ao direito de personalidade.
Exatamente por representar todas as formas como cada indivíduo pode estar no mundo, o direito de personalidade é um conjunto de direitos. É impossível, em respeito à peculiaridade e diversidade de cada pessoa, exaurir a enumeração dos direitos de personalidade. Mas se podem considerar determinadas categorias de direitos que compõem o direito de personalidade.
O direito à dignidade é, se não o mais importante, um dos principais direitos de personalidade. Antes de exercer quaisquer outros direitos, o ser humano, ou pessoa na perspectiva jurídica, tem direito à dignidade. No direito à dignidade a pessoa é sujeito e objeto. É o sujeito do direito porque tem a titularidade dele. É quem pode defendê-lo. Mas também é o objeto do direito porque é aquele que deve ser tratado com dignidade. As considerações expandidas sobre a dignidade da pessoa humana não caberiam neste texto, no qual se deve progredir para o tema da liberdade de expressão. Mas se pode aqui resumir que dignidade é a adequação incondicional à essência de ser humano e às circunstâncias que permitem que essa essência se realize com sentimento de autoestima e de aceitação social. A dignidade de todo ser está na possibilidade de ser adequado à sua própria essência e às suas condições distintivas, com a consciência da autoestima e do respeito alheio.
O direito de personalidade é o direito de ser. De ser pessoa. Do direito de ser decorre necessariamente o direito de expressar aquilo que se é. Ser é ser intrínseca e intimamente. Expressar aquilo que se é consiste em revelar, expor ao mundo aquilo que se é intrínseca e intimamente. Direito de personalidade é o direito de ser e expressar o ser que se é. Portanto o direito de expressão é parte inerente do direito de personalidade.
A liberdade de expressão é um direito inerente à pessoa. Seja à pessoa individual, seja à pessoa coletiva. Na ordem individual, a liberdade de expressão faz parte dos direitos de personalidade. A personalidade é o que o ser pensa e sente e a forma peculiar e individual como expressa o que pensa e sente. Liberdade de expressão é o direito de expressar os conteúdos da própria personalidade.
1.2. O conflito das liberdades
Todo ser tem potência. Tem a energia que no instante seguinte o transformará no seu vir a ser. No ser humano, chamamos a potência de poder. Poder é a potência consciente, ou a consciência da potência. Poder é a capacidade consciente do ser humano de ser e de se transformar no seu vir a ser. A liberdade é a capacidade de exercer o próprio poder, e dar vazão às próprias potências.
Como a humanidade é composta de bilhões de seres humanos e as diferentes aglomerações sociais são compostas por milhares ou milhões de pessoas, todas com diferentes intensidades de potência, de poder e de liberdade, é impossível supor que todas essas pessoas possam exercer simultaneamente e sem limites todas as suas liberdades. Haverá necessariamente conflitos de liberdades. A liberdade de uns necessariamente estará impactada pela liberdade dos outros. Imagine-se que, no exercício de sua liberdade de ir e vir, uma boa parte da humanidade decidisse, simultaneamente, estar no mesmo momento no Pico do Everest. A liberdade de ir e vir de muitos estaria limitada. Ou imagine que, em uma assembleia de cem pessoas, todas resolvessem simultaneamente exercer a liberdade de discursar.
Os conflitos no exercício das liberdades se podem resolver de forma elementar pela intensidade das potências ou de poder que impulsionam a liberdade. Quem tiver mais potência e poder exercerá a sua liberdade em prejuízo da liberdade de quem tiver menos potência e menos poder. A essa forma de resolver os conflitos de liberdades chamamos de selvagem ou bárbara. Selvagem porque é por essa forma que se resolvem os conflitos de liberdades na selva. Bárbara porque era assim que os chamados povos bárbaros resolviam os seus conflitos de liberdades.
Mas os conflitos de liberdade também se podem resolver de forma civilizada. Na trajetória de sua cultura, a humanidade fruiu experiências de prazer e amargou experiências dolorosas que gradual e progressivamente lhe permitiram fazer escolhas, racionais e emotivas, que lhe dessem maior possibilidade de prazer do que de dor. A esse contínuo processo de escolhas e progressão de experiências chamamos de processo civilizatório. É a marcha de descobertas, construções e acontecimentos que possibilita escolhas e facilita a vida civil, vale dizer, a vida conjunta com características de urbanidade.
No processo civilizatório há o essencial reconhecimento, quer pela ordem política, quer pela ordem jurídica, de que pela impossibilidade de convivência simultânea de todas as liberdades de todas as pessoas na sua forma absoluta, há que se prestigiar as liberdades organizando-as segundo os valores da sociedade civilizada. Valor é a intensidade do desejo. Valor social é aquilo que uma determinada sociedade deseja continuamente e por muito tempo.
Nas sociedades civilizadas, as liberdades que forem mais compatíveis com os seus principais valores serão preservadas de forma mais ampla. As liberdades que agredirem valores sociais serão limitadas, ou suprimidas.
No conflito individual de liberdades se costumava dizer que a liberdade de um termina onde começa a liberdade de outro. Esse conceito está parcialmente superado, embora continue sendo verdade que nenhuma liberdade individual é absoluta, nem pode ser analisada isoladamente, e que toda liberdade precisa ser considerada na correlação de muitas liberdades de muitas pessoas. A essas verdades, entretanto, se junta a evidência de que a liberdade de um não termina necessariamente onde começa a liberdade do outro, porque podem existir liberdades simultâneas e superpostas. Várias pessoas podem exercer simultaneamente liberdades comuns, sem que a liberdade de um signifique limite para a liberdade do outro.
O que efetivamente limita a liberdade, aceita a premissa de que não existem liberdades absolutas, são os direitos de personalidade do outro. Como expressão de diferentes personalidades, as liberdades se limitam na medida em que seja necessário, para que os direitos de expressão de personalidades de uns não prejudiquem os direitos de personalidade de outros.
A limitação das liberdades se pode fazer por autocontrole, ou por controle externo. No autocontrole, aquele que tiver consciência de estar expressando sua personalidade com liberdade, mas de forma a prejudicar direitos de personalidade de outros, que considere prioritários ou de maior valor social, evitará abusar de sua própria liberdade.
A garantia e a limitação externas da liberdade de expressão se fazem por diferentes autoridades, democraticamente ou mediante imposição arbitrária de vontades. Dentre os sistemas de garantia e limitação externas da liberdade de expressão por autoridade democrática se incluem o sistema legal e o sistema jurisdicional.
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*Celso Cintra Mori é advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela USP, 1968. Consultor em Direito Privado; contencioso judicial e administrativo; e arbitragem. Presidente do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej). Conselheiro e ex-presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa). Compôs o Conselho da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo. Presidente do Conselho da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP (Arcadas).
*Maria Cecília Pereira de Mello é advogada. Formada em Direito pela PUC/SP, 1984. Procuradora do Estado (1985-2003). Desembargadora federal aposentada do TRF-3 (2003 a 2017).
*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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