Imagine passar mais de 400 dias em cárcere por um crime que não cometeu. O policial civil Rogerio Pinheiro Leão viveu esse pesadelo em 2021, quando foi acusado de ser o mandante de um roubo em Campinas/SP.
Vítima de falhas periciais e judiciais, Rogerio só conseguiu ter sua inocência reconhecida em 2023, quando o TJ/SP o absolveu. Hoje, o policial cursa Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP e sonha em se tornar advogado criminalista.
Confira:
O caso
Rogerio, policial civil, estava prestando concurso público para a Polícia Federal.
Residente em Ribeirão Preto/SP, ele viajou de ônibus até São Paulo em 2018 para realizar uma prova do certame.
Após o exame, enquanto esperava pelo ônibus na rodoviária de São Paulo, foi ao banheiro e deixou sua arma calibre 38 em um suporte na cabine sanitária.
Rogerio embarcou no ônibus de volta para Ribeirão Preto e só percebeu que havia esquecido o revólver no dia seguinte.
Em entrevista, afirmou que não registrou boletim de ocorrência da perda da arma por temer que isso pudesse prejudicá-lo no concurso da PF e gerar complicações com a corregedoria da instituição. Pensando que a arma jamais seria recuperada, ele não tomou providências.
Contudo, três anos depois, em 17/6/21, enquanto trabalhava em Barretos/SP, Rogerio foi preso, acusado de participar de um roubo em uma residência em Campinas.
Provas
Rogerio soube que a arma encontrada no local do crime estava registrada em seu nome e que a vítima do roubo o havia identificado a partir de uma foto antiga retirada de sua CNH.
Ele relatou que, no dia da prisão, os delegados da corregedoria impediram seu direito de defesa e de acesso a um advogado. Um dos delegados chegou a fotografá-lo com um celular particular e enviou a foto à vítima para novo reconhecimento.
Em entrevista, Rogério afirmou que o reconhecimento foi ilegal, pois a vítima, traumatizada, não conseguiu fazer a identificação correta. Ele destacou que a foto apresentada à vítima era antiga e desatualizada, retirada de sua CNH. Na data do suposto crime e da prisão, Rogério já estava com um visual completamente diferente, com cabelo comprido e barba.
Rogerio também afirmou que o delegado responsável pela investigação incluiu informações divergentes das presentes nos dados de GPS dos celulares periciados.
A defesa apresentou imagens de câmeras de segurança que comprovavam que ele estava em Ribeirão Preto na data do crime, mas o delegado e a promotora desqualificaram as imagens, alegando que poderiam ter sido alteradas ou manipuladas.
Então, o advogado de Rogerio solicitou a perícia judicial das imagens, que tinham mais de 12 horas de duração. O perito ficou 68 dias com as imagens, enquanto Rogerio permanecia preso preventivamente. Sua primeira audiência foi agendada para novembro de 2021, e o laudo pericial foi entregue um dia antes da audiência.
"Já estava me preparando para ir embora daquele lugar onde vivíamos em constante estado de necessidade e opressão", afirmou Rogerio.
No entanto, o laudo estava incompleto e com conclusão subjetiva, sem a degravação das imagens do horário do crime. Segundo o perito, o vídeo não foi degravado devido à sua extensão.
A defesa de Rogerio contratou um perito particular para analisar as imagens de interesse e confrontá-las com a localização do GPS dos celulares do policial.
Apesar das novas provas, em 1ª instância Rogerio foi condenado a 15 anos de reclusão e à perda do cargo de policial.
Recurso
A defesa apresentou recurso e o processo foi analisado pelos desembargadores da 12ª câmara de Direito Criminal do TJ/SP.
O relator, desembargador João Morenghi, destacou a falta de provas contundentes contra Rogerio e questionou a confiabilidade do reconhecimento fotográfico realizado durante o processo.
O magistrado sublinhou que o reconhecimento inicial por fotografia, sem seguir os procedimentos do art. 226 do CPP, pode ter influenciado negativamente a vítima a confirmar a identificação em juízo.
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Além disso, o relator considerou as provas apresentadas pela defesa, que demonstravam que Rogerio estava a mais de 200 km de Campinas no dia do roubo.
Outro ponto levantado foi a inconsistência na narrativa de que o suposto assaltante teria removido a máscara durante o crime e "esquecido" a arma no local, um comportamento considerado altamente improvável para um policial experiente.
"Este Relator, que vem judicando na seara criminal há mais de quarenta anos, confessa que nunca se deparou com um caso assim, pois foge à lógica e à razão que um assaltante, que ingressa mascarado numa residência, para roubar, possa tirar o disfarce no meio do roubo a fim de 'conversar com a vítima'. E, além disso, 'esquecer' seu 'instrumento de trabalho' no local que invadiu."
Diante desses argumentos, por unanimidade, os desembargadores decidiram pela absolvição de Rogerio e determinaram sua imediata liberdade.
- Veja o acórdão.
Relatos do cárcere
Rogerio passou 461 dias detido no presídio da polícia civil no bairro do Carandiru, em São Paulo.
Ele relatou que esteve "congelado, anestesiado" e "em pânico", sem acreditar na situação que vivia.
Como foi preso durante a pandemia de Covid-19, ficou em uma solitária por 14 dias, sem poder receber visitas.
"Era um lugar muito insalubre, tipo masmorra", afirmou, mencionando a falta de ventilação e a comida difícil de consumir.
"A gente vivia em estado constante de necessidade, estado de medo. Você é intimidado toda hora. Você tem que tomar cuidado com as palavras, cuidado onde você anda lá dentro. É um monte de coisa de cinema", disse.
Apesar das adversidades, Rogerio contou que teve ajuda dentro do presídio. Uma pessoa que dividiu a solitária com ele chegou a defendê-lo, dizendo que ele "não tinha perfil de criminoso".
Marcas e oportunidades
A liberdade e a absolvição não apagaram as marcas deixadas pelo pesadelo vivido por Rogerio. Ele relatou que, fora da prisão, teve que lidar com o estigma de ex-presidiário imposto pela sociedade. "Fica na alma essas coisas, esse estigma pesado", disse.
Por outro lado, Rogerio reconhece que sua situação pós-prisão foi privilegiada em comparação à maioria dos egressos do sistema prisional. Com o apoio da família e, após a absolvição, ele pôde, gradualmente, retomar seu trabalho como funcionário público.
Curso de Direito
Durante sua prisão, Rogerio leu seu processo, que tinha mais de 3 mil páginas, para colaborar com a defesa. A partir dessa experiência, ele, que já é formado em pedagogia e educação física, decidiu cursar sua terceira graduação: Direito.
"Quando saí de lá, eu fiz essa promessa. Além de provar minha inocência, vou estudar, vou fazer Direito", afirmou.
Ele conta que o vestibular da USP não foi fácil, mas, afinal, conseguiu a vaga.
Rogerio relatou que a experiência no presídio mudou completamente sua percepção do mundo e que há pessoas inocentes presas que não têm voz.
"Diante disso, eu falei: 'Tenho que fazer alguma coisa nessa área'", relatou.
Agora, como calouro do 1º ano do curso de Direito da USP de Ribeirão Preto, Rogério está focado em se tornar advogado e atuar na área criminal. Além disso, ele pretende buscar reparação na Justiça pela prisão injusta a que foi submetido.