O episódio envolvendo o tiro que Donald Trump levou na orelha nos remete a uma história nacional que, embora não tenha relação com o caso ianque, compartilha a peculiaridade da orelha como elemento central.
Em junho de 2006, Migalhas relatou no informativo 1.433 o caso de um integrante da família Garcia Leal. Naquele informativo, mencionava-se que, nas franjas da Serra da Canastra, contava-se a história de uma famosa disputa de terras que resultou na morte de um Garcia Leal.
O irmão do morto jurou vingança e perseguiu os assassinos, que eram sete irmãos, um a um. A cada um que caía, Garcia Leal arrancava-lhe a orelha e a amarrava ao cinto. Cumprida a sina, andava com as sete orelhas, como sinal de honra restaurada.
Os Garcia Leal de hoje, muitos leitores de Migalhas, não têm espírito belicoso, mas mantiveram o apanágio da honradez, algo raro nos dias atuais.
A história de Garcia Leal pode ser encontrada no livro “Jurisdição dos Capitães”, do promotor de Justiça em Minas Gerais Marcos Paulo de Souza Miranda (Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2003). O autor narra com detalhes a história de João Garcia Leal, cuja fazenda fazia fronteira com a propriedade de Francisco da Silva, conhecido como Chico Silva. Leal e Silva enfrentavam uma série de conflitos, com Chico Silva frequentemente desrespeitando os limites de suas terras.
Confira a entrevista:
A disputa sobre as divisas intensificou-se, com Francisco Silva utilizando diversas artimanhas para prejudicar João Garcia Leal. A situação agravou-se ao ponto de João tentar negociar com os trabalhadores de Francisco, suspendendo os trabalhos. Ao saber da intervenção de João, Francisco Silva ficou furioso e ordenou aos seus sete filhos que capturassem João Garcia Leal e o matassem cruelmente, esfolando-o vivo.
Os filhos de Francisco Silva, tão cruéis quanto o pai, seguiram as ordens à risca. João Garcia Leal foi capturado, amarrado a uma árvore e esfolado vivo, sendo seu corpo deixado para as aves de rapina.
O assassinato bárbaro de João Garcia Leal provocou uma reação de seu irmão, Januário Garcia Leal, conhecido como "Sete Orelhas". Inconformado com a inércia das autoridades em punir os culpados, Januário decidiu fazer justiça com as próprias mãos. Ele matou os sete filhos de Francisco Silva, arrancando-lhes as orelhas como prova de sua vingança.
Januário e seus aliados, incluindo seu irmão Salvador Garcia Leal e seu primo Mateus Luis Garcia, assumiram a função de justiceiros na região, aplicando uma justiça paralela devido à ausência de uma efetiva autoridade estatal. Esse fenômeno ficou conhecido como a "Jurisdição dos Capitães", onde os Garcia passaram a resolver disputas e conflitos, agindo como uma espécie de tribunal informal.
A atuação dos Garcia, especialmente a figura de Januário, tornou-se lendária. Respeitado e temido, sua história foi preservada através da tradição oral e de documentos históricos. Mesmo com ordens de prisão emitidas pelo governo, Januário Garcia Leal nunca foi capturado, e seu destino permanece desconhecido.
A história de Januário Garcia Leal e seu bando é um exemplo da justiça privada que emergiu em resposta à falha das autoridades coloniais em manter a ordem e a justiça, refletindo um período turbulento na Capitania de Minas Gerais no início do século XIX.