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Saúde mental da advocacia: Por que é preciso falar sobre o assunto?

Especialistas ouvidas pelo Migalhas dizem que a pandemia agravou o cenário de transtornos psicológicos.

20/1/2022

“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente.” - Jiddu Krishnamurti, filósofo indiano.

A advocacia, como um todo, é muito vulnerável aos problemas de saúde mental, já que os profissionais sofrem pressões diárias existentes na rotina de trabalho - prazos, lidar com litígio, obter clientes, ambientes altamente competitivos, entre outros aspectos que geram estresse, somados à sobrecarga imposta pela pandemia.

Falar sobre saúde mental ainda é um tabu na sociedade. O tema, porém, é de extrema importância. E foi pensando nisso que Migalhas conversou com Sandra Krieger Gonçalves, conselheira federal da OAB e coordenadora do Programa Nacional de Saúde Mental da Advocacia, e Ana Carolina Wolf Baldino Peuker, psicóloga e CEO da Bee Touch, startup de saúde mental, especializada no rastreamento digital de saúde mental e dos riscos psicossociais no trabalho.

“A advocacia do futuro estará sob ameaça se essas questões não forem priorizadas. A advocacia é uma profissão que requer muita competência humana - capacidade de raciocínio lógico, negociação, empatia, autorregulação emocional, entre outras. Por isso, falar de saúde mental é garantir que a advocacia se mantenha forte no futuro e que preserve uma imagem socialmente valorizada e respeitada.”

(Imagem: Arte Migalhas)
 

Cartilha da Saúde Mental da Advocacia

Sandra Krieger explica que, em 2018, surgiu a ideia de lançar uma cartilha no mês do setembro amarelo com o objetivo de inaugurar uma campanha de prevenção do suicídio, e desmistificar o preconceito que ronda os abalos psíquicos e as doenças que podem ser causadas pelo trabalho, e em especial a advocacia.

“Esse foi um primeiro passo para que a OAB realizasse um trabalho em prol da saúde mental da advocacia brasileira. O que era inicialmente uma campanha, se transformou em um Programa Nacional, com o engajamento das Caixas de Assistência e seccionais do país todo. A cartilha está na terceira edição e inúmeras ações foram implementadas a partir desse ideário.”

A cartilha, que teve apoio da Bee Touch no desenvolvimento, compila explicações sobre condições psicológicas de risco para os transtornos mentais, como pânico, ansiedade, depressão, e alerta os advogados para fatores que podem gerar estresse e desencadear transtornos.

Quais são as doenças mentais que mais acometem os advogados?

Segundo as profissionais, os operadores do Direito estão mais sujeitos a sofrer de:

Como exemplo, Ana Carolina trouxe dados preocupantes que foram levantados pela Bee Touch em parceria com algumas seccionais do país.

No Piauí, cerca de 19% dos advogados e advogadas do Estado possuem algum tipo de diagnóstico de saúde mental, destacando-se transtornos de ansiedade, como depressão, Burnout ou síndrome do pânico. Já no Mato Grosso do Sul, os resultados de mais de 900 participantes revelaram que: 63% referiu sentir cansaço extremo, 60% irritabilidade e 29% taquicardia, nas duas semanas anteriores ao monitoramento digital de saúde mental.

No Estado do MS, 47% dos advogados apresentaram sintomatologia de ansiedade, enquanto 33%, sintomas de depressão. Além disso, 31% dos participantes reportaram uso de antidepressivos e ansiolíticos.

A profissional explica que enquanto a prevalência de depressão na população em geral fica em torno de 5%, o levantamento realizado junto aos advogados que buscaram atendimento psicológico online na plataforma CAASPsico, revelou uma taxa de quase 54% de sintomas depressivos.

Esse número é elevado até quando comparado com populações clínicas, de ambulatórios e internações, cujas taxas ficam em torno de 12%, ressalvando não se tratar de diagnósticos, mas de avaliações iniciais de sintomas.

“Em conjunto, todos esses dados revelam que existem uma série de desafios relacionados à saúde mental a serem superados, como índices preocupantes de problemas de ansiedade, uso de álcool, depressão, risco de suicídio, abuso de medicamentos, adição ao trabalho e estresse.”

Como é possível perceber que tem alguma coisa fora do eixo?

Os problemas e frustrações do dia a dia são normais e acontecem em todas as profissões. Então, como perceber que existe algo de errado?

Na opinião de Krieger, é possível notar que tem algo fora do eixo quando um quadro sintomático passa de ocasional para frequente, como, por exemplo, ao sentir baixa realização pessoal, cansaço mental e físico, dificuldade de concentração, baixa autoestima, desânimo, apatia, sentimentos de fracasso e incompetência constantes.

A psicóloga, por sua vez, ressalta que a sociedade geralmente só toma alguma medida quando já há sintomas.

“Nossa cultura é hegemonicamente centrada na doença. Precisamos superar esta perspectiva, apenas reativa. Uma pessoa com um problema cardíaco não deve cuidar da alimentação e do seu estilo de vida apenas depois de ter tido um evento adverso como um infarto agudo do miocárdio, que pode ser fatal. É algo que deve ser evitado a qualquer custo, pois pode levar à morte. Em relação as doenças mentais a lógica deve ser exatamente a mesma.”

Segundo Ana Carolina, as pessoas precisam aprender mais sobre os fatores que podem desencadear um problema psicológico, além das manifestações das doenças e dos sintomas propriamente ditos.

“De forma geral, quando há sofrimento, sintomas persistentes, duradouros, intensos - como por exemplo, choro frequente, alterações bruscas do humor, alterações de conduta ou do pensamento, a busca de ajuda deve ser imediata. Contudo, devemos lembrar que o apoio psicológico também serve para prevenir problemas e desenvolver habilidades, como autoregulação emocional, tolerância ao estresse e aos sentimentos negativos, habilidades sociais, entre outras.”

Pandemia agravou o cenário de doenças mentais

As profissionais são unânimes em dizer que a pandemia agravou, sim, o quadro de doenças mentais da advocacia. “Vimos nossos escritórios fechados, os setores do Judiciário fechados e a necessidade de nos adaptarmos em um lugar de nossas casas e apartamentos. Essa mistura de trabalho e moradia nos deixou particularmente adoecidos. Isso sem falar na perda dos rendimentos do trabalho que era essencialmente presencial”, pontua a conselheira federal.

Ela salienta, também, que passamos por diferentes fases desde o início da pandemia: o pânico inicial; a negação do risco real; a adaptação aos novos modos de se relacionar com as pessoas; e a migração para o teletrabalho.

Quando a pandemia começou, o estado de alerta responsável pela detecção do medo foi ativado em nossos cérebros e, com isso, nosso modo de luta pela vida e preservação. Na medida em que esse estado de estresse foi se tornando contínuo, esse estado foi sendo substituído por um vazio emocional. As perdas e o medo da morte também foram responsáveis por uma paranoia pandêmica. Há estudos relatando que há em curso no mundo uma pandemia mental.”

Por que ainda é um tabu falar sobre esse assunto?

A psicóloga explica que, apesar de alguns avanços, como a maior abertura para a discussão do tema, ainda há muito tabu e estigma ao falar em saúde mental.

“A saúde mental e física ainda são percebidas como coisas separadas. As doenças mentais não são vistas como problemas reais. Se alguém tem câncer ou quebra a perna, não é culpado por fazer quimioterapia ou ter que usar gesso. Com as doenças mentais, é diferente. As pessoas culpam quem adoece de uma doença mental e acreditam que é falta ‘de Deus no coração’ ou de ‘força de vontade’. As doenças mentais não são uma invenção de quem sofre com elas.”

Sandra Krieger também levanta um ponto importante: vivemos em um ambiente competitivo, que glorifica o estresse associando-o ao sucesso, e isso faz com que as pessoas não falem do assunto por receio de perder clientes ou o respeito dos colegas.

“É por isso que precisamos muito falar do assunto, fazer campanhas e eventos que levem os advogados e advogadas a cuidarem de si como cuidamos de nossos clientes e familiares. Muitas vezes nem percebemos que um colega que trabalha conosco está passando por uma crise emocional. Neste caso, buscar ajuda profissional e partilhar suas emoções é fundamental.”

Como a saúde mental deve ser abordada no ambiente corporativo?

Como visto acima, as especialistas defendem que é preciso falar sobre o tema. Sandra, em particular, diz que no âmbito das instituições que compõem o sistema de Justiça é necessário cada vez mais humanizar as relações e ter empatia.

“As organizações se deram conta que precisam cuidar da saúde mental de seus integrantes, e com isso, irão melhorar a produtividade, as relações interpessoais e porque não dizer, ampliar a realização da Justiça por tantos almejada. Os problemas existem sempre, os desafios são enormes, mas podemos trabalhar na maneira como os encaramos.”

Na avaliação da CEO da Bee Touch, é fundamental abordar a saúde mental no trabalho, principalmente em uma profissão como a advocacia.

“O estudo Mental Health in the Workplace, divulgado em 2019 pela OMS revela que, para cada US$ 1 investido em ações que promovem melhorias na saúde e bem-estar mental dos colaboradores, US$ 4 são percebidos em ganhos com o aumento da produtividade.”

Como evitar o comprometimento da saúde mental?

Agora, migalheiro, você deve estar pensando: “já entendi a importância do tema, mas como posso evitar o comprometimento da minha saúde mental?”. A psicóloga dá um exemplo:

“Antes do adoecimento psicológico, do esgotamento conhecido como Burnout, há a fase da ‘lua de mel’. Neste primeiro estágio há muita motivação para executar novas funções ou para a realização de novas tarefas e demandas de trabalho. Nesta fase, não há absolutamente nenhum sinal de esgotamento, em vez disso, sobra entusiasmo e compromisso com seu trabalho. É exatamente quando o ‘alerta’ de sobrecarga precisa ser acionado, pois a pessoa se mantém em um nível de produtividade muito além de sua capacidade e assume todas as tarefas e oportunidades possíveis para realizar o seu melhor e pode colocar mais carga sobre seus ombros do que deveria.”

Segundo Ana, o aspecto arriscado da “fase de lua de mel” é que se a pessoa não evitar o excesso de trabalho e adotar estratégias para relaxar e descansar regularmente, isso pode progredir para os próximos estágios do estresse e levar a pessoa à exaustão completa.

“A adição ao trabalho é muito comum na advocacia, bem como o uso exacerbado de tecnologia. Vivemos uma era de alta demanda tecnológica, com uma cultura ‘always on’. Os dias de trabalho, em especial no trabalho remoto, se tornam prolongados e a exigência de respostas instantâneas através do WhatsApp fazem com que o profissional não ‘desligue’ nunca.”

Ela explica que o que quer evidenciar a partir deste exemplo é que para evitar problemas psicológicos, é muito importante cuidar (preventivamente) da saúde do cérebro - responsável pelas nossas emoções, assim como qualquer outro órgão vital.

“Ter um estilo de vida sadio, com prática regular de atividade física, alimentação equilibrada, repertório de interesses além do trabalho, relacionamentos significativos (rede de apoio social), bem como horas adequadas de descanso e uma relação com a tecnologia com limites mais saudáveis. Tudo isso parece utópico, especialmente, quando falamos da advocacia, pois hoje a cultura legal é tóxica. Há abuso de álcool, energéticos, de medicações não prescritas - recursos para ‘dar conta’ de jornadas de trabalho extenuantes e também constituem formas (desadaptativas) de enfrentamento de uma rotina que os desumaniza.”

Durante o bate-papo com Migalhas, a profissional ainda citou o caso de um advogado que bebia whisky para “derreter o gelo humano”, para se desfazer da “armadura” usada para manter a imagem de alguém que “era forte o tempo todo”.

“Os advogados são treinados para ‘pensar’ como advogados e não a ‘sentir’. Isso propicia um distanciamento das suas próprias emoções e valores, gerando quadros de ansiedade, insatisfação e desequilíbrio emocional. A saúde mental depende do reconhecimento e da gestão adequada das emoções, não da supressão das mesmas.”

Como ajudar colaboradores, colegas ou familiares com transtornos mentais?

A primeira dica da psicóloga é: em um nível individual, não julgue e evite a discriminação e o preconceito.

“Pense: você culparia alguém com uma crise de asma? Acharia que é desnecessário o tratamento de alguém que está com o braço quebrado? Certamente, não. Ofereça apoio, atenção e compreenda que doença mental é uma doença como outra qualquer, portanto, precisa de tratamento especializado.”

Em um nível coletivo, ela defende que as empresas, escritórios e/ou organizações - públicas e privadas - precisam assumir um compromisso verdadeiro com a questão da saúde mental.

“Por exemplo, contar com profissionais capacitados que possam orientar práticas e ações baseadas em evidências; oferecer atendimento; ter planos de ação para o manejo de situações emergenciais, como crises e risco de suicídio; garantir avaliações sistemáticas dos colaboradores para rastrear e gerir os riscos psicossociais; oferecer treinamentos para líderes e colaboradores, alinhados com as boas práticas nacionais e internacionais; atuando como “mental health changemakers” ou seja, como agentes de transformação e promotores de ambientes de trabalho psicologicamente seguros.”

Por fim, migalheiro, deixamos um alerta: ao menor sinal de perigo, não deixe de procurar ajuda e buscar informações. O CVV - Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone (188), e-mail e chat 24 horas todos os dias.

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