Migalhas Quentes

Barroso fala no Chile sobre crise da democracia, revolução tecnológica e risco ambiental

Luís Roberto Barroso foi orador de abertura da Conferência Mundial da Sociedade Internacional de Direito Público, em Santiago, Chile.

2/7/2019

O ministro do STF Luís Roberto Barroso foi o orador de abertura da Conferência Mundial da Sociedade Internacional de Direito Público, evento que reúne principais constitucionalistas do mundo e juízes das Supremas Cortes de diferentes países. O evento é realizado de 1 a 3 de junho este ano em Santiago, no Chile, na Universidade Católica.

Em sua fala, o ministro tratou dos limites e possibilidades do Direito em relação a três grandes aflições do nosso tempo: (i) a crise da democracia; (ii) os efeitos colaterais da revolução tecnológica; e (iii) o aquecimento global. 

No texto, ele destaca o avanço civilizatório e "que humanidade iniciou o século XXI em condições melhores do que jamais esteve". "Vivemos mais e melhor, num planeta com menos guerras, menos desnutrição, menos pobreza, maior acesso ao conhecimento e mais direitos."

Por outro lado, Barroso afirma que processos históricos complexos como os que estamos vivendo não são lineares. "Progressos extraordinários misturam-se com riscos dramáticos, combinando medo e esperança. O futuro é imprevisível, não há roteiros pré-traçados e, por isso mesmo, é preciso ter objetivos que nos inspirem e motivem."

Por fim, o ministro destaca que, em um repleto de assimetrias entre os países, marcado pela globalização, transnacionalidade dos problemas e extraterritorialidade das soluções, o Direito Público vive um momento existencial importante e encontra-se em busca de novos horizontes.

"Num mundo em que já se fala em derrotar a morte e colonizar o espaço, a única bússola segura são os valores perenes compartilhados desde a antiguidade, dentre os quais: bem, justiça e respeito ao próximo, como pressupostos da emancipação das pessoas e da proteção da dignidade humana."

Leia a íntegra: 

REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA, CRISE DA DEMOCRACIA E RISCO AMBIENTAL:

LIMITES DO DIREITO NUM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO

Luís Roberto Barroso[1]

 

Sumário

I. Introdução

Parte I

Algumas lições do século XX

I. Distopias, desejos e realidade

II. O mundo melhorou muito: o avanço dos valores iluministas

III. A importância decisiva das instituições

Parte II

Transformações e aflições do século XXI

I. A revolução tecnológica

II. A crise da democracia

III. O aquecimento global

Parte III

Os desafios do nosso tempo: limites e possibilidades do Direito

I. Alguns riscos da revolução tecnológica

II. A democracia e seus inimigos internos

III. Os esforços contra o aquecimento global

Conclusão

I. Introdução

            1.         Eu estou muito feliz e honrado de ser o keynote speaker na abertura deste congresso da International Society of Public Law (ICON-S), que se realiza nessa adorável cidade de Santiago do Chile.

            2.         Agradeço de coração o convite nas pessoas dos Professores Rosalind Dixon, Lorenzo Casini, Sergio Verdugo e Francisco Urbina, agradecimento que estendo ao meu querido amigo Richard Albert.

            3.         Eu vou basear minha apresentação em um artigo que escrevi especialmente para este evento, intitulado Revolução Tecnológica, Crise da Democracia e Aquecimento Global: Limites do Direito num Mundo em Transformação, que se encontra dividido em três partes:

                        I. Algumas lições do século XX;

                        II. Transformações e aflições do século XXI; e

                        III. Os desafios do nosso tempo: limites e possibilidades do Direito.

Parte I

Algumas lições do século XX

I. Distopias, desejos e realidade

            1.         Duas distopias[2] marcaram a literatura do século XX. A primeira delas foi Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, publicada em 1932, entre a Primeira e a Segunda Guerras, um momento de otimismo quando às potencialidades da tecnologia. Na história narrada no livro, o avanço da biotecnologia permitiu a construção de um paraíso hedonista que encobria, na verdade, uma sociedade desumanizada e autoritária.

            2.         A segunda distopia foi 1984, de George Orwell, publicada em 1949, momento em que se vivia o crescente poderio da União Soviética e o apelo político do comunismo. Em sua obra aclamada, Orwell descreveu o contexto assustador e deprimente de um Estado totalitário, fundado no controle social opressivo dos cidadãos, com censura, vigilância, propaganda e brutal repressão.

            3.         Felizmente, nenhuma dessas duas distopias se tornou realidade. Nada obstante, ambas trazem importantes alertas, que vêm do século XX, para os riscos reais da combinação entre política, autoritarismo, tecnologia e engenharia genética.

            4.         A verdade é que a democracia constitucional se tornou, apesar de muitos temores e dificuldades, a ideologia vitoriosa do século XX. Ao longo das décadas, ela derrotou, um a um, todos os projetos alternativos que se apresentaram: comunismo, fascismo, regimes militares e fundamentalismo islâmico.

            5.         A esse propósito, Francis Fukuyama publicou, em 1989, seu célebre artigo O fim da história, escrito quando a guerra fria caminhava para o fim e era iminente a derrocada do comunismo. A democracia liberal, fundada no Estado de direito, no livre mercado, nas liberdades individuais e no direito de participação política seria o ponto culminante da evolução ideológica da humanidade.

            6.         O tempo demonstraria que o vaticínio do fim da história era mais um desejo – whisfhful thinking – do que uma realidade. Em suma: as distopias autoritárias não se consumaram, a democracia prevaleceu na virada do século XX para o XXI, mas a história não acabou.

II. O mundo melhorou muito: o avanço dos valores iluministas

            1.         Ainda sobre o século XX, talvez ele não tenha sido tão breve, mas certamente foi uma era de extremos, para utilizar a expressão de Eric Hobsbawn: ele teve, simultaneamente, a marca de guerras e genocídios, de um lado, e a consagração dos direitos humanos e da democracia, de outro. É fato inegável, porém, que humanidade iniciou o século XXI em condições melhores do que jamais esteve.

            2.         Um olhar realista reconhecerá avanços em múltiplos domínios, sob o signo das ideias iluministas – razão, ciência, humanismo e progresso –, como demonstrou Steven Pinker em livro repleto de dados reconfortantes. Vivemos mais e melhor, num planeta com menos guerras, menos desnutrição, menos pobreza, maior acesso ao conhecimento e mais direitos, inclusive para grupos historicamente discriminados, como mulheres, negros e gays.

            3.         Esses avanços civilizatórios sugerem uma marcha na direção certa, mas não na velocidade necessária. A superação da pobreza extrema e a redução das desigualdades entre pessoas e nações continuam a ser causas inacabadas da humanidade. Ainda assim, é bom desfazer a crença de que o mundo está em declínio, prestes a cair no domínio caótico da miséria, guerras, revoluções, terrorismo, tráfico de drogas, intolerâncias diversas e epidemias. Há momentos em que a fotografia parece assustadora, mas é preciso olhar o filme inteiro.

III. A importância decisiva das instituições

            1.         No ponto que interessa ao direito público, a lição mais significativa do século XX é a importância das instituições. Países que constroem instituições políticas e econômicas verdadeiramente inclusivas alcançam a prosperidade. Países nos quais as instituições políticas e econômicas são apropriadas por elites extrativistas estão condenados à pobreza ou, no máximo, a um patamar de renda média.

            2.         A literatura política e econômica documenta essa constatação, fazendo o contraste entre experiências históricas como as da Inglaterra e da Espanha, no século XVII, ou dos Estados Unidos e a América Latina, no século XVIII. A real razão do sucesso ou do insucesso das nações, como procuraram demonstrar Acemoglu e Robinson em Why nations fail, não está na geografia, na cultura ou na ignorância da coisa certa a se fazer. E sim no modo como as instituições distribuem o poder político e econômico na sociedade.

            3.         A tese é demonstrada com um exemplo emblemático: o de Nogales, cidade que é cortada ao meio por uma cerca, ficando metade no Arizona, nos Estados Unidos, e a outra metade em Sonora, no México. Mesma geografia, mesma cultura, mas diferenças profundas de renda, qualidade dos serviços públicos, níveis de segurança e de respeito à lei. A causa está nas instituições. Comparações semelhantes contrapõem Coréia do Sul e do Norte e, até pouco tempo, Alemanha Ocidental e Oriental.

            4.         Instituições extrativistas têm prevalecido na América Latina, na África, na Ásia e em países do leste europeu. Conjunturas críticas, todavia, criam uma janela de oportunidade para a destruição criativa da velha ordem e para uma possível mudança institucional. A história é um caminho que se escolhe e não um destino que se cumpre. A democracia constitucional e a economia de mercado, sem concentração de poder e sem monopólios públicos ou privados, costumam ser o melhor ambiente para o florescimento de instituições inclusivas.

Parte II

Transformações e aflições do século XXI

I. A revolução tecnológica

1.        Nós vivemos sob a égide da terceira revolução industrial, conhecida como revolução tecnológica ou digital. As duas revoluções anteriores são simbolizadas, respectivamente, pelo uso do vapor século (XVIII) e da eletricidade como fontes de energia (século XIX). A revolução digital permitiu a massificação do computador pessoal, do telefone celular inteligente e, conectando bilhões de pessoas em todo o mundo, a internet. A rede mundial de computadores é o símbolo dessa terceira revolução.

2.        De fato, os avanços tecnológicos revolucionaram o modo como se realiza uma pesquisa, se fazem compras de mercadorias, reserva-se um voo ou ouve-se música, para citar alguns exemplos. Nós vivemos sob um novo vocabulário e uma nova gramática. Basta ver a quantidade de novos termos que não existiam até outro dia e que identificam utilidades sem as quais já não saberíamos viver: Google, Windows, Mac, Whatsapp, Telegram, Uber, Dropbox, Skype, Facetime, Facebook, Twitter, Instagram, Waze, Spotify, Amazon, iTunes, Netflix, Youtube. Para os solteiros, também tem o Tinder.

3.        As empresas mais valiosas da atualidade já não são as que exploram petróleo – Shell, Exxon –, que fabricam carros – GM, Ford – ou utilidades, como a General Electric. As empresas mais valiosas hoje são as de tecnologia e de dados, como Apple, Amazon, Google, Facebook e Microsoft.

4.        Inovações e avanços tecnológicos constroem esse admirável mundo novo da biotecnologia, da inteligência artificial, da robótica, da impressão em 3D, da nanotecnologia, da computação quântica, de carros autônomos e da internet das coisas. Algoritmo vai se tornando o conceito mais importante do nosso tempo.

5.        Já agora fala-se na quarta revolução industrial, como desdobramento da revolução digital. Ela é produto da fusão da tecnologia da informação com a biotecnologia, misturando as esferas material, digital e biológica. E, em alguma medida, redefinindo o que significa ser humano. Um mundo de integração entre o físico e o virtual, o humano e o mecânico.

6.        Nesse cenário, o direito público vem sendo demandado a encontrar respostas para problemas envolvendo, por exemplo: excessiva concentração de poder econômico em algumas poucas empresas, tributação justa e desaparecimento de empregos tradicionais, em meio a muitas outras aflições do nosso tempo.

II. A crise da democracia

            1.        Como dito anteriormente, a democracia constitucional foi a ideologia vitoriosa do século XX. Ultimamente, porém, alguma coisa parece não estar indo bem. Uma onda populista e autoritária tem varrido o mundo, promovendo o que alguns autores têm denominado de recessão democrática ou retrocesso democrático. Os exemplos foram se acumulando ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Rússia, Turquia, Geórgia, Ucrânia, Filipinas, Nicarágua, Venezuela.

            2.        A novidade que tem sido apontada por diversos autores é que a erosão da democracia não se deu pelas armas de líderes militares, mas por presidentes e primeiros ministros eleitos pelo voto popular. Aos poucos, porém, tijolo por tijolo, a desconstrução da democracia foi vindo: concentração de poderes no Executivo, cerceamento da liberdade de expressão, perseguição a líderes da oposição, novas constituições ou emendas constitucionais com abuso de poder pelas maiorias, empacotamento das supremas cortes com juízes submissos, em meio a outras medidas.

            3.        Há causas diversas para a ascensão do populismo autoritário. Procurei sistematizar essas causas em três categorias diversas: causas políticas, causas econômico-financeiras e causas culturais-identitárias. As causas políticas recaem, sobretudo, na crise de representatividade, com visível descolamento entre a classe política e a sociedade civil. Isso se deve ao fato de que o processo eleitoral não consegue dar voz e relevância à cidadania, aliado ao sentimento de que as grandes decisões são tomadas, mesmo, pelo poder econômico-financeiro globalizado.

            4.        Causas econômicas: desemprego ou falta de perspectivas de ascensão no mundo globalizado e da economia do conhecimento e da tecnologia. Causas culturais-identitárias: há um contingente relevante de pessoas que não professam o credo cosmopolita, igualitário e multicultural que impulsiona a agenda progressista de direitos humanos, igualdade racial, políticas feministas, casamento gay, defesa de populações nativas, proteção ambiental e descriminalização de drogas, entre outras modernidades.

            5.        Duas observações finais nesse tópico a propósito da recessão democrática: (i) não se deve desconsiderar, nos dias atuais, o fator China, que representa um modelo alternativo autoritário, tisnado pela corrupção, mas de vertiginoso sucesso econômico e social; e (ii) não se deve descartar tratar-se, tão-somente, de um momento de certa amargura do pensamento progressista devido à prevalência, na quadra atual, em muitas partes do mundo, de ideias conservadoras. Mas assim é a democracia: às vezes se ganha, às vezes se perde.

            6.        O direito público está sendo cobrado para repensar estruturas que envelheceram e desenhos institucionais concebidos para outra época.

III. O aquecimento global

            1.         A mudança climática tem sido identificada como o mais relevante problema ambiental do século XXI e uma das questões definidoras do nosso tempo. Inúmeros autores têm se referido ao tema como “a tragédia dos comuns”, significando uma situação na qual os indivíduos em geral, agindo com atenção apenas ao interesse próprio, comportam-se, na utilização de recursos escassos, de maneira contrária ao bem comum.

            2.         Duas características do debate sobre o clima dificultam o seu equacionamento. A primeira é que, apesar de a grande maioria dos cientistas concordar que o aquecimento global é um problema grave e resultante da atuação do homem, ainda existe grande desconhecimento e ceticismo na matéria. A segunda: os efeitos das emissões de carbono feitas hoje somente serão sentidos pelas próximas gerações, fato que funciona como um incentivo para se adiarem decisões que em rigor são urgentes.

            3.         O conceito central aqui continua a ser o de “desenvolvimento sustentável”, de longa data entendido como aquele que “atende às necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”. Um dos objetivos do desenvolvimento sustentável, aprovado pela ONU em 2015, é precisamente o da “ação contra a mudança global do clima”.

            4.         O aquecimento global está associado ao “efeito estufa”, que pode ser assim descrito. A energia solar alcança a atmosfera da Terra e é refletida de volta para o espaço. Parte dessa energia, no entanto, fica retida na atmosfera pelos chamados gases estufa, dos quais o mais importante é o dióxido de carbono. Esse é um fenômeno natural e necessário para manter a Terra em temperatura compatível com a vida humana. Sucede que fatos da vida moderna, como, sobretudo, a queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás natural), mas também a agricultura, a pecuária e o desmatamento têm aumentado excessivamente a emissão de gases estufa e a consequente retenção de calor, provocando o aquecimento do planeta.

            5.         As consequências desse fenômeno são sentidas em diferentes partes do mundo. Entre elas podem ser apontados: o aumento da temperatura global, o aquecimento dos oceanos, o derretimento das calotas polares (ice sheets) na Groenlândia e na Antártida, a retração das geleiras (glacial retreat), a perda da cobertura de neve no Hemisfério Norte, a elevação do nível do mar, a perda na extensão e espessura do gelo do Mar Ártico, a extinção de espécies e o número crescente de situações climáticas extremas (como furacões, enchentes e ondas de calor).

            6.         O grande desafio para o direito público nessa matéria é a necessidade de soluções transnacionais, que envolvam a cooperação de todos os países. Isso porque os fatores que afetam o meio ambiente e o clima na Terra, como a emissão de gases estufa e o desmatamento, produzem consequências que não respeitam fronteiras.

Parte III

Os desafios do nosso tempo: limites e possibilidades do Direito

I. Alguns riscos da revolução tecnológica

            1.         A revolução digital e os desenvolvimentos que anunciam a quarta revolução industrial trazem os fascínios da vida moderna e as promessas de longevidade e novos confortos. Com elas vêm, também, inconveniências, ameaças e perigos reais para a vida civilizada e a condição humana.

            2.         O direito público enfrenta desafios que testam seus limites e possibilidades, como por exemplo:

                        a) como se posicionar em relação à liberdade de expressão na internet, diante de situações como discursos de ódio e campanhas de desinformação. As empresas, como se sabe, salvo nos casos de violação das suas políticas de uso, recusam-se a atuar como censura privada;

                        b) no domínio da bioética, diversos países têm regulado as pesquisas com células-tronco embrionárias e a clonagem humana é proibida em mais de 70 países. O comércio de órgãos humanos é igualmente interditado, mas em breve irá deparar-se com os avanços da medicina regenerativa. A manipulação genética é vista por cientistas como algo inevitável em futuro próximo. Como lidar com a perspectiva de criação de super-homens, com todos os riscos de opressão e desigualdade que daí adviriam?

                        c) a inteligência artificial, que já começa a ser utilizada por diversos tribunais pelo mundo, enfrenta a suspeita de que possa reforçar preconceitos e discriminações, porque, em última análise, as máquinas seriam alimentadas com os valores, sentimentos e impressões dominantes na sociedade.

            3.         De todas as vicissitudes trazidas pelos avanços tecnológicos, os riscos para a privacidade têm sido objeto de intenso interesse de legisladores domésticos e transnacionais. Há duas situações a considerar: (i) o acesso a informações pessoais do usuário das redes, como nome, endereço, estado civil, ocupação, declarações às autoridades tributárias, informações bancárias, dívidas etc.; e (ii) informações sobre comportamentos, preferências, interesses e preocupações de cada pessoa, obtidas a partir da navegação online, que permitem o microtargeting e a publicidade dirigida.

            4.         A União Europeia saiu na frente na proteção da privacidade, aprovando o General Data Protection Regulation. O GDPR procura assegurar a soberania de cada indivíduo sobre os dados que lhe dizem respeito, com exigência de prévio consentimento para sua utilização, direito de acesso, de retificação e prevendo o controvertido direito ao esquecimento.

            5.         Nos Estados Unidos, não há lei nacional sobre o tema, apesar de diversos projetos tramitarem no Congresso. O Estado da Califórnia aprovou o California Data Privacy Protection Act, que entra em vigor em 1º de janeiro de 2020. No Brasil, quarto país do mundo em número de usuários da internet, com 181 milhões de usuários, foi aprovada a Lei Geral de Proteção de Dados, com vigência prevista para agosto de 2020.

II. A democracia e seus inimigos internos

            1.        Alguns fatores colocam em xeque as democracias contemporâneas. Três deles são: (i) o arrefecimento do sentimento democrático dos cidadãos; (ii) a desigualdade; e (iii) a corrupção. Os dois primeiros são mundiais; o terceiro, embora presente em graus variados em escala global, é causa dramática de atraso de países emergentes, da América Latina à Ásia, da África aos países da Europa Oriental.

            2.        No tocante ao arrefecimento democrático, pesquisas em diferentes partes do mundo revelam a perda de prestígio dos governos fundados na soberania popular. As razões são muitas e atingem os três Poderes. O direito público precisará investir energia na busca por um desenho institucional capaz de reavivar as instituições democráticas e mobilizar a cidadania.

            3.        Tais inovações hão de passar por uma revisita ao modelo de separação de Poderes – concebido para um mundo pós-medieval e pré-revolução industrial –, por uma revisão profunda das formas de representação política e pela utilização da rede mundial de computadores. A esse propósito, a expectativa de que a internet se tornasse uma abrangente esfera pública digital não se consumou até esse momento. No mundo real, em muitas situações, ela proporcionou “tribalização” (grupos que só falam para si, como “enclaves deliberativos”), campanhas de desinformação e discursos de ódio. Não se descartam, todavia, as potencialidades da internet, manifestadas em experiências de algum sucesso com processos constituintes digitais, como no Chile e na Islândia, e de orçamentos participativos.

            4.        A desigualdade, por sua vez, é a marca dramática do nosso tempo, a agenda inacabada do processo civilizatório. São muitos os fatores que reforçam a pobreza e a desigualdade. Para enfrentá-los, educação de qualidade, serviços públicos eficientes e instituições políticas e econômicas inclusivas fazem parte do receituário universal. Alguns países adotaram o conceito de mínimo existencial, de modo a assegurar a todos acesso a utilidades como educação, saúde e renda mínima.

            5.        Outros países trouxeram para a Constituição um conjunto relevante de direitos sociais, cuja efetivação constitui um dos tormentos dos tribunais constitucionais em diversos países do mundo. A existência de redes de proteção social para os muito pobres também integra o elenco básico de providências contra a pobreza e a desigualdade. Em livro que teve grande aceitação, Thomas Piketty procurou demonstrar que a desigualdade não é um acidente, mas uma característica do modo de produção capitalista, que só a intervenção do Estado pode conter.

            5.         Por fim, a corrupção compromete os valores da democracia, minando sua credibilidade entre os cidadãos. A corrupção tem custos econômicos, sociais e morais. Boa parte das nações do mundo, inclusive as que são hoje mais desenvolvidas, enfrentaram em algum momento o círculo vicioso da corrupção. Interessantemente, embora seja tão antiga quanto a humanidade, a corrupção somente passou a ser vista como uma questão grave nas últimas décadas do século passado.

            6.         E, assim, no plano do direito internacional público, foram aprovados: (i) a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, de Paris, celebrada em 1997, sob os auspícios da Organização para a Cooperação Econômica e para o Desenvolvimento (OCDE); (ii) a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, de N. York, celebrada em 2000, com regras específicas sobre a criminalização da corrupção e da lavagem de dinheiro; e (iii) a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, de 2003,  com texto analítico e medidas amplas para enfrentamento do problema.

            7.         Mais recentemente, em diversos países, juízes e tribunais passaram a tratar os crimes de colarinho branco e a corrupção como delitos graves, punindo-os adequadamente. Em boa parte dos países emergentes, elites extrativistas se protegiam editando leis que minimizavam os crimes que seus integrantes pudessem cometer, além da cooptação que praticavam em relação ao próprio Judiciário. Leis agravando penas dos crimes de corrupção, combatendo a lavagem de dinheiro, regulamentando a colaboração premiada, disciplinando com mais rigor o financiamento eleitoral e impondo regras mais estritas em matéria de compliance começam a se multiplicar em países até pouco tempo devastados pela corrupção.

III. Os esforços contra o aquecimento global

            1.        O aquecimento global decorre, sobretudo, das atividades humanas, como queima de combustíveis e modo de utilização do solo, com destaque para o desmatamento. O fenômeno tem natureza global e as soluções precisam ser buscadas nas esferas internacional, regional e nacional. Elas dependem da atuação e conscientização de organismos internacionais, governos, empresas e indivíduos.

            2.        O regime das Nações Unidas para o enfrentamento da mudança climática assenta-se sobre três pilares:

                        (i) a Convenção Quadro, que entrou em vigor em 1994, foi ratificada por 197 países e estabeleceu princípios abrangentes, obrigações de caráter geral e processos de negociação a serem detalhados em conferências posteriores entres as partes;

                        (ii) o Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 1997 e conta atualmente com a ratificação de 192 países, instituiu metas específicas de redução da emissão de gases de efeito estufa para 36 países industrializados e a União Europeia. Os países em desenvolvimento ficaram de fora dessa obrigação específica;

                        (iii)  o Acordo de Paris, que entrou em vigor em 2016, e conta com a adesão de 185 países, diferentemente do Protocolo de Kyoto, em lugar de fixar limites vinculantes de emissão, previu que cada país apresentaria, voluntariamente, sua “contribuição nacionalmente determinada”. O acordo não distingue entre os papeis de países desenvolvidos e em desenvolvimento.

            3.        A destruição das florestas é um dos capítulos mais dramáticos da questão ambiental. Na Amazônia, por exemplo, nos últimos 40 anos, foi desmatada uma área correspondente ao território de duas Alemanhas. A se prosseguir nos níveis atuais, as florestas tropicais podem desaparecer nos próximos 100 anos. As causas são muitas, com destaque para a agricultura, pecuária, exploração de madeira, garimpo e expansão urbana. 

            4.        É importante ressaltar que as florestas tropicais são responsáveis por aproximadamente ¼ da mitigação climática objetivada pelo Acordo de Paris. Isso se deve à sua capacidade de absorver dióxido de carbono da atmosfera, durante a fotossíntese, num processo conhecido como sequestro de carbono. Inversamente, a derrubada de florestas libera na atmosfera o carbono que nela estava armazenado.

            5.        Está prevista para 2023 uma avaliação geral dos resultados obtidos com o Acordo de Paris. Há poucas dúvidas de que serão necessários esforços bem ampliados para o atingimento das metas propostas. O direito internacional, por suas características, tem limitações no tocante à execução de suas normas. Mas o que está em jogo aqui é uma questão de justiça inter-geracional, para não entregarmos um planeta degradado para a posteridade. Já há mesmo quem especule acerca da necessidade de colonização do espaço, em busca de outros habitats.

Conclusão

            1.         Como se viu ao longo da presente exposição, o direito público tem na sua agenda a árdua tarefa de (i) neutralizar efeitos colaterais negativos da Revolução Digital e seus desdobramentos; (ii) reforçar o sentimento democrático e superar disfunções como desigualdade e corrupção; e (iii) enfrentar de maneira efetiva o fenômeno da mudança climática. A verdade insuperável é que a velocidade, extensão e profundidade das transformações do mundo contemporâneo testam os limites e possibilidades de sua atuação. É preciso que o avanço civilizatório e a elevação ética da sociedade venham em seu socorro.

            2.         Em um cenário repleto de assimetrias entre os países, marcado pela globalização, transnacionalidade dos problemas e extraterritorialidade das soluções, o direito público vive um momento existencial importante e encontra-se em busca de novos horizontes. O século XIX foi o século do direito privado – do proprietário e do contratante. O século XX assistiu à ascensão do direito público, o avanço do Estado social e a expansão da jurisdição constitucional. O século XXI convive com as demandas de uma sociedade global que exige, em relação a temas específicos, um direito igualmente global. Não se trata de uma opção filosófica ou doutrinária, mas de uma inevitabilidade: as redes sociais via internet, o monóxido de carbono e as campanhas de desestabilização da democracia não respeitam fronteiras ou soberanias.

            3.         Em suma: processos históricos complexos como os que estamos vivendo não são lineares. Progressos extraordinários misturam-se com riscos dramáticos, combinando medo e esperança. O futuro é imprevisível, não há roteiros pré-traçados e, por isso mesmo, é preciso ter objetivos que nos inspirem e motivem. Subjacentes às ideias deste artigo estão alguns deles: (i) sobrevivência da humanidade; (ii) paz entre as nações; (iii) preservação da democracia; (iv) desenvolvimento sustentável;  (v) busca de igualdade de oportunidades para as pessoas e para as nações; e (vi) redes de proteção social para aqueles que ficaram à margem e de mecanismos de ajuda para os países que se atrasaram. Por fim, num mundo em que já se fala em derrotar a morte e colonizar o espaço, a única bússola segura são os valores perenes compartilhados desde a antiguidade, dentre os quais: bem, justiça e respeito ao próximo, como pressupostos da emancipação das pessoas e da proteção da dignidade humana. 


[1] Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre pela Universidade de Yale. Doutor pela UERJ. Senior Fellow na Harvard Kennedy School.

[2] Utopia designa um sistema social idealizado e próximo da perfeição. Distopia identifica o oposto: um sistema social opressivo, com variados tipos de coerção.

 

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