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Marco Aurélio Mello: O voto no caso Raposa Serra do Sol

Em 2009, STF decidiu, por maioria, pela demarcação contínua do território indígena. Um dos vencidos na questão, Marco Aurélio foi autor de um substancioso e sensível voto.

17/6/2015

"O Supremo tem a guarda da Constituição e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as consequências da omissão, de comprometimento da própria credibilidade."

Marco Aurélio Mello

Em 19 de março de 2009, STF encerrou o julgamento da Petição 3388, que questionava a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol em Roraima.

Os ministros decidiram, por maioria, pela demarcação contínua do território indígena e pela saída dos produtores rurais que ocupavam a região. Dando parcial provimento ao pedido, a decisão estabeleceu, porém, condições com o objetivo de garantir a soberania nacional e o controle da União sobre as terras demarcadas. Ficaram vencidos o ministro Joaquim Barbosa, que julgava totalmente improcedente a ação, e o ministro Marco Aurélio, que a julgava inteiramente procedente.

A questão foi levada ao STF pelo então senador Augusto Affonso Botelho Neto em face da União, pleiteando a declaração de nulidade da portaria 534/05, que demarcou a reserva indígena e o decreto que homologou a demarcação. Para Botelho Neto, a demarcação contínua da área indígena, nos moldes da portaria, prejudicava a segurança nacional e os próprios índios.

Jubileu de prata

Neste mês, o ministro Marco Aurélio celebra 25 anos de STF. Desta forma, relembramos aqui o substancioso voto do ministro no julgamento, no qual ele detalhou os motivos pelos quais suscitou preliminar de nulidade do processo e, no mérito, declarou a ação popular inteiramente procedente.

Nulidades

"O direito de defender-se é, antes de mais nada, um direito natural, senão a mola-mestra do processo – o contraditório -, reveladora de predicado da dignidade do homem, fundamento que tenho como síntese dos demais previstos, também, no artigo 1º da Carta Federal. Sem ele não é dado falar em soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político."

Ao trazer a lume os vícios processuais da ação popular no STF, o ministro lembrou a necessidade de citação das autoridades que editaram a portaria 534 e o decreto homologatório. "Cumpre já aqui sanear o processo, citando-se como réus desta ação popular o Ministro de Estado da Justiça e Sua Excelência o Presidente da República."

Discorrendo sobre a ausência de citação do estado de Roraima e dos municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia, Marco Aurélio observou a transgressão dos artigos 1º e 6º da lei 4.717/65. O ministro reconheceu que no precedente, o Supremo reconheceu a desnecessidade de o ente público titular do patrimônio lesado compor a relação processual, malgrado sujeito da lide, considerada a substituição pelo autor popular. Mas afirmou não poder "compactuar com tal orientação” : "A legitimação não se faz unilateral – do substituto processual –, mas concorrente. (...) Mostra-se indispensável para a correta formação do processo que o ente dito alcançado pelo ato lesivo apontado como nulo figure na relação subjetiva processual."

"Há de chamar-se o processo à ordem, reabrindo-se, na extensão cabível, a instrução processual, sob pena de grassar a balbúrdia, sob pena de, sem ouvirem-se as partes interessadas, titulares de direitos, viabilizados os meios de prova visando a revelá-los, ter-se, mesmo assim, sentença a elas oponível."

Mediante análise do processo, o ministro também constatou ter sido o Ministério Público intimado a manifestar–se apenas à folha 388, quando já finda a instrução processual. "Não houve o acompanhamento da instrução probatória nem a abertura de vista para eventual pedido de produção de provas." Para Marco Aurélio, também neste ponto se verifica o desatendimento de formalidade essencial, implicando a inobservância do devido processo legal tão próprio à ação popular. Mais um defeito a ser sanado.

No curso do processo, as comunidades indígenas requereram o ingresso na qualidade de litisconsortes. O plenário, porém, admitiu a intervenção apenas na condição de assistentes. A decisão foi criticada pelo ministro. "Imaginem se a presente ação for julgada procedente, anulando-se o processo demarcatório, não haverá clara nulidade, considerada a ausência da participação dos beneficiários, como litisconsortes? Não é porque o julgamento caminha no sentido da improcedência do pedido que será afastada a observância irrestrita das regras de direito processual, as quais visam, em última análise, a proteger as partes, dando credibilidade ao pronunciamento jurisdicional." Para ele, a citação das entidades representativas das cinco etnias existentes na reserva Raposa Serra do Sol era necessária, sob pena de nulidade do processo.

O ministro também observou a ausência de produção de provas: "há de definir-se, ficando estreme de dúvidas, as terras realmente ocupadas - expressão da Constituição - pelos indígenas no já um tanto quanto longínquo ano de 1988, marco temporal para assentar-se a insubsistência de títulos de propriedade e posses de terceiros, esclarecendo-se as situações fáticas e jurídicas apanhadas pela Carta Federal"; e de intimação dos detentores de título de propriedade.

"A ciência dos interessados para manifestarem-se quanto ao interesse, ou não, na demanda, possibilitando-lhes participar da instrução probatória, deveria ter sido determinada de ofício, considerada a singularidade do pronunciamento do Supremo. É a figura da intervenção iussu iudicis expressamente prevista no artigo 91 do Código de Processo Civil de 1939, já admitida pela doutrina e por este Tribunal, e que se encontra presente nos artigos 47, parágrafo único, 48 e 49 do Código Buzaid – o de 1973"

Ao tecer suas considerações iniciais ao caso, Marco Aurélio ressaltou em seu voto a necessidade de interpretação dos dispositivos que conferem proteção aos índios em conjunto com os demais princípios e regras constitucionais, de maneira a favorecer a integração social e a unidade política em todo o território brasileiro.

"O convívio harmônico dos homens, mesmo ante raças diferentes, presente a natural miscigenação, tem sido, no Brasil, responsável pela inexistência de ambiente belicoso."

Soberania nacional

"É preocupante haver tantos olhos internacionais direcionados à Amazônia."

Demonstrando sensibilidade ao tema, Marco Aurélio lembrou notícias que demonstravam a cobiça internacional sobre a Amazônia, contando que Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, em 1989, chegou a dizer com todas as letras que, "ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós".

"Revela-se, portanto, a necessidade de abandonar-se a visão ingênua. O pano de fundo envolvido na espécie é a soberania nacional, a ser defendida passo a passo por todos aqueles que se digam compromissados com o Brasil de amanhã."

Processo de demarcação das terras

A área em que se situam os municípios de Uiramutã e Pacaraima registrava, à época do julgamento, a presença dos índios Macuxi, Ingaricó, Taurepang, Wapixana e Patamona; e também a presença de fazendeiros detentores de títulos de propriedade das terras cadastradas pelo Incra.

Esse contexto, para o ministro Marco Aurélio, não poderia ser ignorado pelo Supremo, lembrando o fato "de índios e não-índios serem todos brasileiros".

Portaria

Marco Aurélio identificou nulidade no procedimento administrativo que embasou a demarcação, por violação dos decretos 22/91 e 1.775/96. Em primeiro lugar, considerando a não participação de todos os interessados. Para ele, ficou demonstrada ofensa ao contraditório e à ampla defesa.

"Surge incontroversa a necessidade de consulta a todas as comunidades envolvidas na demarcação. O estágio de aculturamento talvez tenha avançado de tal maneira que não mais interessa o total isolamento do povo indígena, de forma a viabilizar a vida como em tempos ancestrais. Não cumprir o dever de consulta pode vir a provocar maior lesão aos direitos humanos, pois parte-se da premissa errônea de que todas as comunidades desejam o isolamento."

Em segundo lugar, pelo fato de o relatório do grupo interdisciplinar ter sido assinado por uma única pessoa, a antropóloga Maria Guiomar de Melo, representante da Funai. De acordo com o ministro, as regras concernentes à designação de grupo técnico para elaboração de estudos sobre área a ser demarcada estavam previstas no artigo 2º do decreto 22/91, então vigente quando iniciados os trabalhos de demarcação, e mesmo com a publicação do decreto 1.755/96, com novas regras, a exigência da designação do grupo foi mantida.

O autor do processo alegou que o fato do relatório do grupo interdisciplinar ter sido assinado por única pessoa demonstra a parcialidade e a consequente nulidade do procedimento administrativo e, para o ministro Marco Aurélio, a circunstância de o estudo antropológico ter sido subscrito por apenas um perito é incontroversa. "Aponta-se a nulidade do laudo em razão de ofensa ao princípio da impessoalidade. É que apenas integrantes do Conselho Indígena de Roraima haveriam composto o Grupo Técnico. Embora tenham representatividade, este não abrange todos os índios, sobretudo aqueles que defendem a demarcação de forma não contínua."

"Verificam-se, portanto, irregularidades no tocante ao procedimento administrativo visando a definir as terras indígenas. Não se sabe ao certo: a) as razões pelas quais o laudo foi subscrito por apenas um integrante do grupo, a Dra. Maria Guiomar de Melo - no voto do relator, está consignada a participação do antropólogo Paulo Santilli); (b) se todos efetivamente tiveram ciência de que integravam o grupo; (c) se foram ouvidas todas as etnias interessadas."

Prejuízos à economia do Estado de Roraima

De acordo com informações colhidas do memorial da União, a Reserva Raposa Serra do Sol corresponderia a 7,79% do território do Estado de RR. Se englobadas todas as terras indígenas pertencentes ao referido ente, chegaria-se ao patamar de 46% do território estadual. Segundo alegou a União, ainda assim a área não abrangida pelas reservas é mais extensa do que Estados como Alagoas, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Para o ministro Marco Aurélio, a demarcação da reserva indígena em área contínua iria trazer prejuízos à economia do Estado de RR.

A União, apesar de reconhecer o grande crescimento geográfico das fazendas de arroz, alegou no processo que a produção dessa cultura se mantido estável desde 1992, não caracterizando atividade imprescindível ao desenvolvimento econômico do Estado, aduzindo, na ocasião, que a atividade agrária era impulsionada por incentivos fiscais, o que afastaria prejuízo na arrecadação.

No entanto, de acordo com o ministro, a própria União reconhece ser a área de lavoura na região demarcada sete vezes maior, em extensão, do que a observada em 1992. Segundo ele, o ponto de que a demarcação em ilhas implicaria ofensa a tratados de direitos humanos, que garantem a proteção a terras indígenas, merecia ser rechaçado. "Há sim a obrigação de o país demarcar as terras indígenas – o que, aliás, é imposto pela própria Constituição Federal –, mas não existe um modelo demarcatório claramente definido, contínuo ou em ilhas, nem a exigência de se ter como válido um processo que apresentou vícios, desde a elaboração do laudo antropológico."

"Sou favorável à demarcação correta. E esta somente pode ser a resultante de um devido processo legal, mostrando-se imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica – e romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum momento, haver sido habitado exclusivamente por índios. Os dados econômicos apresentados demonstram a importância da área para a economia do Estado, a relevância da presença dos fazendeiros na região."

Marco Aurélio pontuou ser difícil conceber a existência de cerca de dezenove mil índios em toda a extensão geográfica da área demarcada – "uma área doze vezes maior que o Município de São Paulo, em que vivem cerca de onze milhões de Habitantes". Para ele, o enfoque prevalecente na questão até o momento de seu voto era desproporcional a discrepar, a mais não poder, da razoabilidade. "E tudo, repito à exaustão, resultando de um processo demarcatório cujos elementos coligidos se mostram viciados, como se não vivêssemos em um Estado de Direito."

Integração

“A política indigenista nacional sempre foi dirigida à integração.”

De acordo com o ministro Marco Aurélio, desde a colonização, passando pelo Império e chegando aos dias atuais, a política indigenista nacional dirigida à integração sempre foi uma constante. Desta forma, ele questiona: "Como, então, em pleno século XXI, considerados os avanços culturais de toda ordem, cogitar-se de isolamento da população indígena, procedendo-se à delimitação territorial contínua para afastar-se da área os não-índios?"

E observa que, neste caso, "o retrocesso é flagrante, não se coadunando com os interesses maiores de uma nacionalidade integrada."

Instabilidade quanto à segurança nacional

Ao final do seu voto, o ministro ainda passou pela questão da segurança nacional em relação à faixa de fronteira do Brasil com a Venezuela e Guiana e demonstrou preocupação com o fato de o Conselho de Defesa Nacional não ter participado do processo de demarcação da Reserva. "Se é verdade que não há norma proibindo terras indígenas em faixa de fronteira, do mesmo modo é verdade que, na Lei Maior, está expressamente consignada a importância fundamental dessa faixa para a defesa do território brasileiro."

Segundo Marco Aurélio, a União alegou não haver motivos para temer qualquer ato no sentido de se ameaçar a soberania do Brasil, sustentando, inclusive, que a presença exclusivamente indígena em área de fronteira deveria ser vista como estratégia de segurança nacional. Mas, para ele, é público e notório que, em razão das posições ideológicas do atual Chefe de Estado, a Venezuela tem sido o país latino-americano que mais causa tensões no âmbito diplomático, não só em relação ao Brasil, mas também em relação a diversos outros países.

O ministro lembrou que as regiões fronteiriças são mais suscetíveis de turbulências e favorecem o contrabando e a presença de narcotraficantes. Desta forma, revelava-se, pois, imprescindível a participação do Conselho de Defesa Nacional. "Aqui não estamos tratando de qualquer ocupação na faixa de fronteira, mas da demarcação de terras indígenas, o que, para alguns, pressupõe a imposição de uma série de restrições na circulação de pessoas para não prejudicar a vida dos índios, na sua grande parte aculturados."

"Também sob esse ângulo, porque a Lei Maior não foi observada no que revela como formalidade essencial a audição do Conselho de Defesa Nacional, há de julgar-se procedente o pedido formulado, atentando o Supremo para a responsabilidade que possui. É sua a última palavra sobre a Constituição, e não deste ou daquele órgão."

Veja a íntegra do voto.

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