Migalhas Quentes

Precatórios federais: um calote judicial

Indefinição de índice de correção de precatórios gera insegurança jurídica.

27/2/2015

O pagamento dos precatórios está um verdadeiro pandemônio na Justiça Federal. E parece que estamos longe de um desfecho. Vejamos, em migalhas, como se deu a questão.

Antes de 2000. Não havia previsão para pagamento de atualização monetária nos precatórios. O que se fazia era questionar judicialmente a atualização, criando com isso novos precatórios, num verdadeiro círculo vicioso.

Setembro de 2000. A EC 30 passa a prever a atualização monetária, mas não diz qual será o índice. Diante da lacuna do indexador, leis orçamentárias disciplinam os índices a serem aplicados. O mais usual entre eles é o IPCA-E.

Dezembro de 2009. EC 62 coloca um ponto final à questão do indexador ao prever que a atualização dos precatórios estaduais e municipais será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança. No caso, a TR.

Março de 2013. STF declara inconstitucional a EC 62, mas não modula os efeitos, criando um imbróglio de proporções bilionárias.

Abril de 2013. O ministro Fux, relator das ADIns, toma pé da confusão que se criou com a não-modulação, e determina cautelarmente que os TJs continuem a pagar os precatórios nos moldes da EC, a mesma que um mês antes tinha sido declarada inconstitucional.

Outubro de 2013. Supremo ratifica a liminar do ministro Fux.

Março de 2014. Ministro Toffoli pede vista no julgamento da modulação dos efeitos da inconstitucionalidade. Processo continua ainda com S. Exa.

Outubro de 2014. Efetuando uma correição ordinária no TRF da 1ª região, a Corregedora Nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, misturando o teor da decisão do STF, que abarca apenas precatórios Estaduais e Municipais, entende que o mesmo critério deveria ser adotado no pagamento dos precatórios Federais e determina liminarmente o bloqueio, em todas as instâncias da Justiça Federal brasileira, do pagamento dos precatórios.

Novembro de 2014. A OAB entra com pedido de reconsideração da liminar.

Dezembro de 2014. Sentindo-se ofendida com os termos da petição da OAB, a ministra Nancy Andrighi nega peremptoriamente a reconsideração.

Dezembro de 2014. Desautorizando a ministra Nancy, o ministro Francisco Falcão, atuando como presidente do Conselho da Justiça Federal, desbloqueia o pagamento dos precatórios federais a partir de um critério: desde que os valores das parcelas vincendas façam frente ao ponto controverso entre os índices devidos para eventual ressarcimento aos cofres públicos.

Janeiro de 2015. O presidente do TRF da 5ª região, Francisco Wildo Lacerda Dantas, segue à risca a decisão do ministro Falcão e libera os pagamentos. Em sua decisão, não esconde farpas em relação à corregedora, esclarecendo que a decisão do presidente do CJF vincula a ministra Nancy em face do poder hierárquico. E citando Celso Antônio Bandeira de Mello diz que esse poder hierárquico permite ao presidente do CJF, "dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as decisões dos inferiores, mediante revogação, quando conveniente ou inoportuno o ato praticado”.

Atualmente.

O STF ainda não modulou os efeitos da decisão que considerou inconstitucional, nesse ponto, a EC 62 (o processo está com vista para o ministro Toffoli).

O CNJ até hoje não referendou a liminar da ministra Nancy, embora já tenha havido inúmeras sessões desde que foi tomada.

Apenas o TRF da 5ª região liberou o pagamento dos precatórios Federais.

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Conhecidas as migalhas, vamos ao pão por completo.

Até o ano 2000, quando promulgada a EC 30, não havia qualquer previsão expressa na CF para atualização monetária dos precatórios. O que ocorria era uma sequência infindável de precatórios complementares buscando esta diferença em face dos pagamentos sem atualização.

Intentando corrigir este equívoco, em setembro do referido ano foi promulgada a emenda constitucional e passou-se a dispor que:

"§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente."

A lacuna com relação ao indexador, entretanto, continuou existindo. Como solução para a omissão constitucional, as leis orçamentárias anuais passaram a disciplinar os índices que deveriam ser aplicados. O mais comum era o IPCA-E.

Com a publicação da EC 62/09, todavia, esta lacuna deixou de existir. A regra constitucional instituiu o novo regime especial para o pagamento de precatórios e estabeleceu, então, que a atualização seria feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança. Estamos a falar da famosa TR.

"§ 12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional, a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios."

Antes de completar um ano de vigência, a norma foi questionada no STF por meio de duas ADINs (4.357 e 4.425). Em março de 2013, o Supremo julgou inconstitucionais, em parte, os § 2º, 9º, 10 e 12 do art. 100 da CF, que regulavam o pagamento preferencial, as regras de compensação compulsória e a correção das dívidas pelo índice da caderneta de poupança. Conforme firmado pela Corte, o referido índice não é vinculado à inflação e por isso é sempre menor, não recompondo as perdas inflacionárias.

O parcelamento do pagamento de precatórios em até 15 anos e a efetivação de leilões para priorizar o credor disposto a dar mais desconto (regime especial - art. 97 do ADCT) também foram considerados inconstitucionais pela Corte Suprema. Finda a questão, ficou pendente, entretanto, a apreciação da modulação de efeitos.

Alegando indefinição quanto à forma de cálculo das parcelas, Estados e municípios teriam parado de pagar seus precatórios. Na tentativa de evitar um "calote", o ministro Luiz Fux deferiu cautelar, posteriormente ratificada pelo plenário, determinando que os tribunais continuassem a pagar os precatórios nos termos da EC 62/09 até que o STF se pronunciasse sobre a modulação.

Em atenção ao entendimento proferido pelo STF com relação ao uso da TR para o cálculo de juros em precatórios, o Congresso editou no fim do ano a LDO de 2014, que dispôs, em seu art. 27:

"Art. 27. A atualização monetária dos precatórios, determinada no § 12 do art. 100 da Constituição Federal, inclusive em relação às causas trabalhistas, previdenciárias e de acidente do trabalho, observará, no exercício de 2014, a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - Especial - IPCA-E do IBGE."

À revelia do estabelecido na LDO, que elegeu o IPCA-E como novo indexador com relação aos precatórios, a ministra Nancy Andrighi, corregedora nacional de Justiça, determinou, por meio de liminar, a exclusão dos juros de mora nos precatórios parcelados em tramitação nos TRFs, bem como a substituição do índice de correção IPCA-E pela TR.

A medida teve por base supostas irregularidades apontadas nos cálculos de RPVs no TRF da 1ª região, assinaladas em relatório resultante da correição realizada na Corte Federal.

Segundo a ministra, decisões, à época, da Suprema Corte, definiam a TR como indexador oficial para atualização de precatórios, considerando que não houve modulação dos efeitos da decisão do STF que julgou parcialmente inconstitucional a EC 62. Para ela, a utilização de outro indexador contrariaria o estabelecido pelo STF.

Insurgindo-se contra a decisão, o Conselho Federal da OAB peticionou requerendo a reconsideração da decisão liminar, invocando como um dos argumentos centrais a LDO de 2014, que elege o IPCA-E do IBGE como índice de atualização monetária dos precatórios da União, e não a TR.

Em documento assinado pelo presidente da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a Ordem sustenta que a decisão liminar que determinou a correção nos cálculos dos precatórios federais estaria equivocada, uma vez que usurpa a competência do CJF e afronta as LDOs da União. Afirmou, ainda, que a Corregedoria Nacional extrapolou sua competência correicional.

Ao apreciar o pedido de reconsideração da OAB, a ministra Nancy mostrou-se ofendida. Disse que “a redação utilizada no pedido de reconsideração não coaduna com os princípios de respeito e ética profissionais”.

Ela salientou ainda que os debates relativos às questões de direito são históricos e salutares à evolução e independência dos Poderes e da própria OAB, mas classificou como "lamentável" a peça processual, que buscava a reconsideração da decisão "de forma agressiva e desrespeitosa ".

Conclusão, indeferiu o pedido e manteve a decisão proferida anteriormente.

A OAB, então, ajuizou ação cautelar (3.764) no STF, três dias após esta decisão, visando que a União aplique a LDO (12.919/13) de modo a evitar a criação de novos passivos de precatórios/RPVs. A questão foi levada ao plenário no dia 18 de dezembro, e os ministros debateram a necessidade de a Corte modular com urgência os efeitos da declaração de inconstitucionalidade parcial da EC 62.

O julgamento da cautelar da Ordem não foi finalizado, mas o relator, ministro Fux, indicou que decidiria a questão monocraticamente, sinalizando que irá no sentido de que os precatórios devidos pela União devem ser corrigidos pelo IPCA. O ministro Toffoli, autor do pedido de vista que suspendeu o julgamento da modulação, comprometeu-se a trazer seu voto logo no início do novo ano judiciário.

Estávamos nesse ponto, quando o atual presidente do CJF, ministro Francisco Falcão, desautorizando a Corregedora, mandou desbloquear os precatórios parcelados.

A liberação foi condicionada à existência de saldo financeiro, em parcelas vincendas, que permitam o ressarcimento aos cofres públicos dos créditos recebidos além do efetivamente devido, em decorrência da aplicação do IPCA-E e dos juros estabelecidos no artigo 78 do ADCT.

Em decisão datada de 7 de janeiro, o presidente do TRF da 5ª região, desembargador Federal Francisco Wildo Lacerda Dantas, determinou que fossem liberados todos os precatórios parcelados que apresentam saldo financeiro em parcelas vincendas, nos termos delineados pela presidência do CJF.

Citando Celso Antônio Bandeiro de Mello, Dantas destacou que a orientação baixada por Falcão vincula tanto a ministra Nancy, que havia ordenado a interpretação anterior, quanto a própria presidência do TRF, em face do poder hierárquico que permite ao presidente do CJF, "dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as decisões dos inferiores, mediante revogação, quando conveniente ou inoportuno o ato praticado, ou mediante anulação, quando se ressentir de vício jurídico".

Até o momento, apenas o TRF da 5ª região liberou o pagamento dos precatórios. As outras Cortes, pelo visto, estão confusas quanto ao verdadeiro conflito de competência envolvendo o presidente do CJF e a corregedora Nacional de Justiça.

De modo que o CNJ deve, o mais rápido possível, debruçar-se sobre a liminar da ministra; e o STF, o quanto antes, precisa modular a questão.

Enquanto isso, a burra pública vai engordando, pois os bancos responsáveis pelos depósitos judiciais utilizam o dinheiro para empréstimos com juros certamente muito maiores do que o IPCA e a TR.

- Confira a liminar deferida pela ministra Nancy Andrighi.

- Confira o pedido de reconsideração de liminar do Conselho Federal da OAB.

- Confira a decisão da ministra Nancy Andrighi negando o pedido da OAB.

- Confira a decisão do ministro Francisco Falcão autorizando o desbloqueio dos precatórios parcelados.

- Confira a decisão do desembargador Federal Francisco Wildo Lacerda Dantas determinando a liberação dos pagamentos.

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