Usucapião de coisa móvel nas relações de consumo
Carmen Freire*
Historicamente, no direito Romano pré-clássico, já havia a usucapião. Embora existisse antes mesmo da Lei das Doze Tábuas, esta o regulou pela primeira vez na Tábua Sexta. A Lei das Doze Tábuas é o primeiro escrito dos Romanos. Esta se diferencia das outras disposições normativas antigas porque representa o princípio de um sistema jurídico, com normas de direito material e processual. Outras disposições normativas são meras disposições legais relacionadas, sem uma organização racional.
A Tábua de número Cinco, prescrevia:
Encontrava-se também na de número Seis, sobre usucapião:"As terras serão adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse: as coisas móveis depois de um ano".
"A mulher que residiu durante um ano em casa de um homem como se fora sua esposa, é adquirida por esse homem e cai sob o seu poder, salvo se a mesma se ausentar da casa por três noites".
No Direito Romano clássico para se obter a usucapião, necessário atender algumas condições, tais como: ser coisa suscetível da usucapião, ter a posse durante certo tempo, possuir justo título e ser de boa-fé. O prazo era o mesmo da Lei das XII Tábuas, ou seja, 2 anos de posse quando de terra e 1 ano de coisa móvel.
Para o período pós-clássico, a usucapião sofreu alterações e influências, a primeira foi por Constantino, que criou uma forma especial de usucapião, a "longissimi temporis praescriptio", que concedia a usucapião a quem, pelo prazo de 10 anos, estivesse na posse de um bem, com boa-fé, mas sem justa causa.
Outras alterações surgiram também com o Imperador Justiniano, e essas vieram por intermédio de suas "Institutas" (normas), nas quais trouxeram a proibição da usucapião de coisas dotais, a admissão da justa causa putativa (suposta) e a mudança dos prazos para que se alcance a usucapião.
Como dito, Justiniano trouxe a alteração nos prazos, assim, na França, no Código Napoleônico - 1804 - nos artigos 2.262, 2.265 e 2.279, encontra-se a disposição sobre a usucapião para bens imóveis e móveis. Lá é estabelecido o prazo de 30 anos para obtenção da usucapião do bem imóvel. Contudo, será de 20 anos quando possui justo título e boa-fé entre ausentes e 10 anos entre presentes, já para a usucapião do bem móvel, reza o artigo supra citado, 2.279, que basta a simples posse da coisa para valer-se como título.
Na Itália, o Código Civil de 1942, prevê iguais prazos para a usucapião de bens imóveis e móveis. Na forma extraordinária, que independe de justo título e boa-fé, se dá em 20 anos e na forma ordinária, a que exige do possuidor o justo título e boa-fé, se dá em 10 anos.
Nos preceitos do Código Civil Alemão, este prevê a usucapião de bem imóvel em um prazo de 30 anos, independente de boa-fé. Já o móvel, o tratamento corresponde ao "longi temporis praescriptio", do direito Romano, sendo prazo necessário de posse o de 10 anos. A usucapião tinha aplicação apenas para os cidadãos romanos, os estrangeiros não podiam se valer desse instituto. Logo, foi criada a "longi temporis praescriptio", que conforme Jose Carlos Moreira Alves,"(...) quando o proprietário de um imóvel provincial o reivindicasse de quem o possuía por largo espaço de tempo, este se opunha à res vindicatio com praescriptio (...) (Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano, 13. ed.Forense, 2004)".
Em análise ao nosso Direito Brasileiro, temos nos moldes do Código Civil de 1916 (clique aqui) que, para a obtenção do instituto da usucapião este previa para o bem imóvel, em seu artigo 550, a forma extraordinária, ou seja, como já referido, a que independe de justo título e boa-fé, e para tanto condicionava a uma posse de 30 anos. Logo após, em 1955 pela Lei nº. 2.437, este prazo foi reduzido para 20 anos.
Na usucapião ordinária, também já referida, aquele em que se exige do possuidor justo titulo e boa-fé, o prazo era de 15 anos entre ausentes e 10 entre presentes.
Nos dias atuais, após a reforma, o Código Civil Brasileiro de 2002 reduziu ainda mais esse prazo. Note que na usucapião extraordinária o prazo passou a ser de 15 anos, sendo possível ser reduzido se estabelecer no local sua moradia ou realizar obra de caráter produtivo. Na ordinária o prazo é de 10 anos, podendo ser de 5 anos nas hipóteses do artigo 1.242, § único:
"Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico."
Há também outros dois tipos de usucapião regidos pelo nosso Código Civil Brasileiro, estes são previstos nos artigos 1.239, que é o Especial Rural, e artigo 183 da CF c/c com o artigo 1.240 do CC, c/c artigo 9 e 10 do Estatuto da Cidade, que é o Especial Urbana.
Quanto á usucapião do bem móvel, não houve alteração do prazo, ou seja, continua sendo necessário os 3 anos de posse contínua e incontestada, desde que o possuidor preencha os requisitos: justo titulo e boa-fé.
Caso não preencha os dois requisitos, pode-se pleitear o domínio de coisa móvel apenas após 5 anos, e aí nesta situação, depara-se com a usucapião extraordinária.
Atendo-se agora ao tema de forma mais direta, urge tratar da relação de consumo e cláusulas abusivas.
A Constituição Federal (clique aqui) estabeleceu princípios e determinou a defesa do consumidor, nascendo daí o Código de Defesa do Consumidor, pela Lei nº. 8.078/90 (clique aqui). A idéia é de proporcionar a proteção da parte mais fraca da relação jurídica.
Muito embora haja a proteção do consumidor no CDC, existem certas situações, em que por inércia e desinteresse desse consumidor, o mesmo proporciona a perda de seu direito, beneficiando o fornecedor, como é o caso de produtos deixados para reparo em lojas especializadas.
Percebam que é comum, por parte dos prestadores de serviços, constarem no recibo a informação, variante, de que se em 30 ou 60 dias, após o conserto, o produto não for retirado, o consumidor perde a propriedade do bem. Esse comportamento é bastante antigo, visa que um produto seja reparado sem o devido pagamento.
Contudo, é notório que essa atitude é ilegal, por ferir a boa-fé objetiva e a equidade, além de propiciar um enriquecimento sem causa, estando, pois, na presença de uma cláusula abusiva na medida em que estaria diante de uma desvantagem exagerada para o consumidor e um benefício injusto e desproporcional para o fornecedor.
Todavia, surge com toda essa situação uma outra que merece ser solucionada, haja vista que também não tem sentido o fornecedor exercer sua atividade de prestador de serviço, não ser remunerado e ainda suportar o deposito da coisa.
Nos estudos sobre o assunto em tela, nos deparamos com a existência da Lei nº. 370/37, na qual dispõe sobre dinheiro e objetos de valor depositados em estabelecimento bancários e comerciais e que determinam que são considerados abandonados, se não reclamados em 30 anos. Essa Lei foi alterada pela Lei nº. 2.313/54 e regulamentada pelo Dec. 40.395/56, que modificou para 25 anos o prazo dos contratos de deposito regular e voluntários de bens. Passado tal período, aqueles serão recolhidos ao Tesouro Nacional, permanecendo mais 5 anos à espera do proprietário, para então serem incorporados ao patrimônio nacional.
Não obstante, surge a indagação de que se essa atitude do consumidor e caracterizada ou não como abandono, visto que o Código Civil utiliza a terminologia abandono para bem imóvel e ocupação para bem móvel. Ocupação tem o significado de apropriação de coisa móvel.
Deve-se observar a vigência, bem como que essa Lei não trata de qualquer bem móvel, ela especifica os bens.
Daí ter-se que essa Lei não se coaduna com os princípios da ordem econômica constantes da Constituição Federal, visto que aguardar 30 anos para considerar uma coisa depositada como abandonado, afetaria a circulação de riquezas e a função social da propriedade, pois esse longo lapso temporal significa desperdício de coisa para satisfação das necessidades humanas.
Embora a Lei seja, nos dias atuais, a inicialmente desproporcional com os princípios que regem os contratos de depósito, quando se tratar de depósito de dinheiro e objetos de valor em instituições financeiras e estabelecimentos comerciais, por não existir outra Lei que o regule essa matéria, deve ter aplicação dessa Lei.
No entanto, como solucionar a inércia do consumidor que deixa produtos para reparos, mediante contrato de prestação de serviços, nos estabelecimentos comerciais?
Qual o tempo a ser considerado, para que o consumidor perda a propriedade do bem reparado pelo fornecedor?
Há a possibilidade de inserir no contrato uma cláusula de mandato, para em caso de não retirada do bem, o fornecedor possa vendê-lo? Essa possibilidade é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor nas relações de consumo, por ser abusiva, conforme artigo 51, VIII. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que (...) VIII – imponham representante para concluir ou realizar outro negocio jurídico pelo consumidor visto a possibilidade da existência de conflito de interesses entre mandante (consumidor) e mandatário(fornecedor).
Resta a análise da possibilidade de o fornecedor usucapir o produto deixado para reparo pelo consumidor.
Nas relações de consumo, o consumidor que não procura o produto deixado para reparo, perde a propriedade pela posse do fornecedor desse bem móvel, opera-se no caso a usucapião extraordinária (art. 1.261 CC/02) que pode ser requerida independente de titulo e boa-fé.
Logo, se o consumidor deixar um bem para reparo, na posse do fornecedor, por 5 anos, sem procurá-lo, pode o fornecedor promover ação de usucapião extraordinária de coisa móvel e requerer a citação do proprietário, com posterior sentença declaratória, para que esta sirva de Titulo originário de aquisição da propriedade móvel.
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*Titular da Àrea Cível do escritorio Erik Bezerra Advogados
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