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Impactos da portaria 41/20 do Detran/SP nas decisões do TJ/SP e livre concorrência

A polêmica Portaria 41/20 do Detran/SP vem causando insegurança jurídica e riscos à livre concorrência devido à divergência nas decisões do TJ/SP.

14/8/2024

A implementação das placas veiculares padrão Mercosul, no território brasileiro, teve início em 2018. Contudo, principalmente no Estado de São Paulo, foi somente em 2020 que o movimento começou a ganhar força. Com a mudança, surgiram as estampadoras, empresas cuja atividade consiste em comprar as placas mercosul ainda em branco e estampá-las com letras e números para cada carro, podendo vendê-la diretamente ao consumidor final. Sua atividade é prevista na Resolução 780/19 do Conselho Nacional de Trânsito.

Art. 10. A prestação de serviços de fabricação e estampagem das PIV será realizada por meio de credenciamento de fabricantes e estampadores, nos termos desta Resolução, sendo vedada a habilitação de empresas de forma diversa.

Parágrafo único. Para fins desta Resolução serão adotadas as seguintes definições:

  1. Fabricante de PIV - Placa de Identificação Veicular: empresa credenciada pelo Denatran para exercer a atividade de fabricação, operação logística, gerenciamento informatizado e a distribuição das PIV semiacabadas para os estampadores;
  2. Estampador de PIV: empresa credenciada pelo órgão ou entidade executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal (Detran), em sistema informatizado do Denatran, para exercer, exclusivamente, o serviço de acabamento final das PIV e a comercialização com os proprietários dos veículos

Além da estampagem, essas empresas são responsáveis por vincular o QR code de cada placa às informações do veículo emplacado. Assim, para fazer a vinculação, as estampadoras utilizam de um sistema informatizado, desenvolvido e mantido pelo Denatran, nos termos do artigo 6, incisos V e VII, da mesma resolução citada supra. Vejamos:

Art. 6º Compete ao Departamento Nacional de Trânsito - Denatran:
[...]
V - desenvolver, manter e atualizar o sistema informatizado de emplacamento;
[...]
VII - disponibilizar o sistema informatizado de emplacamento para a gestão e controle de distribuição do QR Code e das combinações alfanuméricas, estampagem das PIV e emplacamento;

Tendo em vista esse cenário, diante da necessidade de um sistema informatizado para operar, o Detran/SP assinou a Portaria 41/20, no qual decretou que as empresas credenciadas deveriam arcar com um custo de 0,85 UFESP,  valor correspondente à recepção eletrônica e respectivo tratamento sistêmico, pelo Detran/SP, do pedido de código chave para a estampagem de cada placa e da correlata comunicação da operação de estampagem e emplacamento (art. 10º da Portaria 41/20).

Na prática, o normativo da autarquia estadual fez com que as estampadoras fossem obrigadas a arcar com um custo adicional de 0,85 UFESP (cerca de 30 reais para 2024) para cada placa estampada. Custo esse que, ao final, é repassado ao consumidor final.

Ante esse cenário, de forma nada surpreendente, as estampadoras começaram a insurgir contra essa cobrança, ingressando com demandas judiciais no objetivo de se verem livres dessa exação.

O TJ/SP registrou mais de uma centena de processos sobre o assunto. Nas ações, as estampadoras, a fim de afastar a cobrança feita pelo Detran/SP, utilizam-se de duas teses: uma de cunho tributário e a outra de cunho administrativo.

A primeira tese, de caráter tributário, consiste na tentativa de enquadrar a cobrança, criada pelo órgão, como Taxa, espécie tributária que, por sua natureza, atrairia o princípio da legalidade, corolário do art. 150, inciso I, da Constituição Federal. Por isso, não poderia ter sido instituída por meio de Portaria.

Já a segunda tese,  baseia-se no fato de que a competência para a fiscalizar a regularidade das atividades dos estampadores e a gestão do processo produtivo seria do Denatran, em decorrência do art. 6º da resolução 780/19 do CONTRAN, já citado anteriormente. Assim, o Detran/SP, ao instituir a portaria 41/20, estaria usurpando a competência do Departamento Nacional de Trânsito.

Ao alcançar a segunda instância do poder judiciário, os litigantes paulistas obtiveram decisões integralmente diferentes.

Por um lado, alguns desembargadores optaram por acolher a argumentação feita pelo Detran/SP de que a cobrança seria, na verdade, um preço público e que teria competência para instituí-lo.

RECURSO DE APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. COBRANÇA INSTITUÍDA PELA PORTARIA Detran 41/20. LEGALIDADE. NATUREZA NÃO-TRIBUTÁRIA. PREÇO PÚBLICO. 1. Trata-se de ação mandamental em que a impetrante requereu a concessão de segurança para obstar a cobrança de tarifa de 0,85 UFESP exigida pelo Detran por cada placa estampada. 2. Legalidade da cobrança a que se refere o art. 10 da Portaria Detran 41/20, voltada ao custeio do acesso ao sistema E-CRV. Estipulação de preço público por envio e recepção eletrônica de códigos-chave pelo Sistema e-CRV. Natureza contratual, de preço público. Mantença da r. sentença. Recurso desprovido. 

Noutro giro, houve estampadoras que obtiveram não somente o afastamento da cobrança, como também a determinação de repetição de indébito, com decisões que condenaram o Detran-SP a devolver os valores cobrados dos estampadores.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. EMPRESA CREDENCIADA COMO ESTAMPADORA DE PLACAS DE IDENTIFICAÇÃO VEICULAR. Pretensão da parte autora de compelir o requerido a se abster de realizar a cobrança instituída pela Portaria 41/20 do Detran, para utilização do sistema E-CRV, bem como a devolução do montante recolhido. Sentença de improcedência na origem. Inconformismo da parte autora. Cabimento. Exação com natureza de preço público, não de taxa, pois não direcionada à coletividade em abstrato. Competência reservada ao Denatran, exercida por meio do sistema informatizado federal (arts. 6º a 9º da Resolução CONTRAN 780/19 e seu Anexo III). Usurpação de competência na Portaria do Detran 41/20, que institui nova etapa (consulta e distribuição de códigos de estampagem) e prevê a cobrança de 0,85 UFESP por unidade de placa estampada. Exigência descabida. Precedentes desta Câmara. Sentença reformada para julgar procedentes os pedidos, condenando-se ainda o polo passivo à restituição de todos os valores comprovadamente pagos pela parte autora, valor a ser apurado em liquidação, invertidos os ônus sucumbenciais. Recurso provido. 

O objetivo aqui não é debater as teses jurídicas analisadas pelos magistrados, mas sim chamar a atenção aos perigos da não uniformização das decisões do TJ/SP.

Ao decidir de forma distinta dois casos idênticos, o TJ/SP põe em xeque a livre concorrência como um dos princípios da ordem econômica.

Ora, de uma lado temos o estampador A, que procurou a tutela jurisdicional e obteve uma decisão desfavorável, há de arcar com um custo adicional de cerca de trinta reais por placa.

De outro, temos o estampador B, que também procurou os mantos do judiciário, mas obteve resultado favorável, ficando livre da cobrança adicional e podendo diminuir os preços para o consumidor final.

O resultado desse cenário é uma das situações que um operador do Direito deve temer: a insegurança jurídica, pois cria uma forte ameaça à livre concorrência e à sustentabilidade das empresas. Assim, com essa postura, é inevitável que permaneça a desconfiança das empresas no sistema judiciário,  gerando desafios para a construção de uma sociedade mais justa e pautada nos princípios constitucionais.

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SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1033016-60.2023.8.26.0053, Relator: Nogueira Diefenthaler, 5ª Câmara de Direito Público, Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 13ª Vara de Fazenda Pública. Julgado em 5 ago. 2024. Registrado em 5 ago. 2024.

SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1088082-25.2023.8.26.0053, Relator: Djalma Lofrano Filho, 13ª Câmara de Direito Público, Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 7ª Vara de Fazenda Pública. Julgado em 7 ago. 2024. Registrado em 7 ago. 2024.4

BRASIL. Ministério da Infraestrutura. Resolução n. 780, de 2019. Disponível em: https://www.gov.br/transportes/pt-br/pt-br/assuntos/transito/conteudo-contran/resolucoes/resolucao7802019.pdf. Acesso em: 12 ago. 2024.

SÃO PAULO (Estado). Departamento Estadual de Trânsito. Portaria n. 41, de 2020. Disponível em: https://www.Detran.sp.gov.br/wps/wcm/connect/bf3d81ec-ac19-4374-8ac8-e00baec25fdb/Portaria%2B41.2020.pdf?MOD=AJPERES&CVID=oW6AyHe. Acesso em: 12 ago. 2024.

Murilo Dellafina
Estudante do último semestre do curso de direito na FACAMP. Estagiário inscrito na OAB/SP. Entusiasta nas áreas empresarial e tributária.

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