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Da evolução das normas de proteção animal no plano constitucional brasileiro.

O presente artigo tem como objeto a análise evolutiva das normas de proteção animal no plano constitucional e infraconstitucional brasileiro.

28/10/2022

Embora não haja um consenso doutrinário quanto a sua definição, o Direito Animal positivo pode ser conceituado como o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica.

Em comparação a evolução do movimento no contexto mundial, podemos dizer que o Brasil, anos antes do início do debate moderno acerca das  questões  ambientais e  dos direitos animais, atuou na vanguarda da garantia do Direito Animal, tendo como origem histórica o a  iniciativa  da  União  Internacional  Protetora dos   Animais –UIPA;  organização   não governamental  (ONG)  mais  antiga  do  Brasil,   fundada   em   1895,   e que deu início ao movimento de proteção animal no país.

O movimento se deu a partir de publicação na edição de 4 de maio de 1934, do jornal O Estado de  S.  Paulo1,  manifestação dirigida diretamente  à Getúlio  Vargas,  então chefe do Governo Provisório, abordando a  necessidade  de  criação  de  uma  lei  de  proteção  aos  animais abrangendo todo o território nacional, tendo em vista que “Quase todas as nações do globo possuem leis a respeito, faltando,  no  concerto  dos  países  cultos,  apenas  que  o  Brasil  legisle  nesse  sentido”, ao passo em que finaliza o manifesto, acostando proposta de lei atribuída ao vice-presidente da ONG, Affonso Vidal, e pedindo vênia para “submeter à  apreciação  de  v.  exa.  o  projeto  de  lei  incluso,  rogando  a  v.  exa.  se  digne  a transformá-lo em lei”.

Em atenção ao manifesto, o Presidente Getúlio Vargas promulgou decreto 24.645/34, conhecida como “Lei Áurea dos Animais”2 nos mesmos termos propostos pelo texto de Affonso Vidal. Com a premissa inovadora do regramento visando a tutela  os  animais  não-humanos  em  geral3, considerados  em  si  mesmos, como tutelados pelo Estado4, foi positivada a proibição aos maus-tratos, criada pena de multa a quem cometesse5, e concedeu aos animais a capacidade de ser parte em processos judiciais6, determinando que as autoridades federais, estaduais e municipais prestassem aos membros das sociedades protetoras de animais a cooperação necessária para fazer cumprir a lei7.

Dada esta compreensão, sem adentrar ao mérito da discussão doutrinária quanto a aplicabilidade do decreto 24.645/34 no atual ordenamento jurídico nacional por se tratar de ato emanado pelo Poder Executivo da época sob a égide de Constituição revogada, com o advento da Constituição Federal de 1.988, que alterou a estrutura normativa pátria, destaco que o texto constitucional expressa em seu art. 24, a responsabilidade concorrente dos entes federativos em legislar sobre caça, pesca, fauna, conservação da natureza, e proteção do meio ambiente, ressaltando no §3º a competência legislativa dos Estados no caso de inexistência de lei federal sobre normas gerais, in verbis:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...]

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; [...]

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.  

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.  

Ainda no plano da Constituição Federal de 1.988, o Direito Animal nasceu com a positivação da regra da proibição da crueldade dada pelo art. 225, §1º, inciso VII, ao incumbir ao poder público o dever de proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Almejando contextualizar o princípio constitucional insculpido pela Constituição Federal, destaco trecho do voto do Ministro Celso de Melo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1856/RJ, na qual asseverou:

“a cláusula inscrita no inciso VII  do  § 1º  do  art.  225 da  Constituição da  República,  além  de veicular conteúdo impregnado de alto significado ético-jurídico, justifica-se   em função de sua própria  razão de  ser”,  a qual  seria motivada pela necessidade  de  impedir  a ocorrência  de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só   a do gênero    humano,    mas,    também,    “a    própria    vida animal cuja    integridade    restaria comprometida por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os   seres irracionais”.

Ante a imposição de dever de preservação incumbido ao Estado pela Carta Magna, a matéria foi ramificada entre o Direito Ambiental e o Direito Animal, diferidos pela dicotomia constitucional do supramencionado inciso VII, que é explícito ao delimitar ao campo do Direito Ambiental quando o animal não humano é considerado fauna, relevante pela sua função ecológica, como espécie.

Ao passo em que, dispõe quando o animal não-humano é relevante enquanto indivíduo senciente, portador de valor intrínseco e dignidade própria, daí objeto das considerações do Direito Animal.

Elucidando as matérias oriundas do texto constitucional, nas palavras de Vicente de Paula Ataide Junior9:

Direito Animal e Direito Ambiental não se confundem, constituem disciplinas separadas, embora compartilhem várias regras e princípios jurídicos, dado que ambos, o primeiro exclusivamente, e o segundo inclusivamente, tratam da tutela jurídica dos animais não-humanos. A dignidade animal é derivada do fato biológico da senciência, ou seja, da capacidade de sentir dor e experimentar sofrimentos, físicos e/ou psíquicos. A senciência animal é juridicamente valorada, quando posta em confronto com as interações e atividades humanas, pela positivação da regra fundamental do Direito Animal contemporâneo:

a proibição das práticas que submetam os animais à crueldade.

Como toda dignidade deve ser protegida por direitos fundamentais, não se podendo conceber dignidade sem um catálogo mínimo desses direitos, então a dignidade animal deve ser entendida como a base axiológica de direitos fundamentais animais, os quais constituem o objeto do Direito Animal.”

Tendo a senciência como fator objetivo para a delimitação constitucional da base estrutural do Direito Animal, insurgem-se como supedâneo do direito fundamental animal os princípios da dignidade animal e da universalidade.

Nesse sentido, a partir de uma análise hermenêutica do texto constitucional, denota-se não haver distinção sobre quais espécies animais estão postas a salvo de práticas cruéis, mas consolidou-se o direito à existência digna dos animais, inspirando novos textos normativos infraconstitucionais, como a Lei de Crimes Ambientais - Lei Federal 9.605/98, que, nos termos do art. 3210, passou a considerar o abuso, os maus-tratos, o ferimento  ou  a  mutilação  de  animais  como  crime.

Por fim, finalmente na esfera Estadual, o Código de Proteção Animal do Estado de São Paulo (Lei Estadual  11.977/05)11, ante a omissão federal nesse sentido, inovou a codificação da matéria visando estabelecer normas para a preservação da fauna silvestre e proteção aos animais domésticos no Estado de São Paulo.

_________

1 OESTADODES.PAULO. Proteçãoaosanimais:ummemorialdaUniãoInternacional Protetora dos Animais ao chefe do governo provisório. São Paulo, 4 de maio de1934, p. 5.

2 DIÁRIO  DA  TARDE. União  Internacional  Protectora  dos  Animaes, Curitiba,  n.  11.907,  30 de outubro de 1934. p.7.

3 Embora seja comum citar como  primeira  lei  de  Direito  Animal  no  Brasil  o  Decreto nº 16.590/1924, assinado pelo Presidente Arthur Bernandes, que regulamentava as casas de diversões públicas, o  qual,  em  seu  art.  5º,  proibia  licença  para  “corridas  de  touros,  garraios,  novilhos,  brigas  de galo  e  canários  e  quaisquer  outras  diversões  desse  gênero  que  causem  sofrimento  aos animais.”  (LEVAI,  Laerte  Fernando. Direito  dos  animais.2  ed. Campos  do  Jordão:  Editora Mantiqueira,  2004), o Decreto nº 24.645/1.934 se mostra como a primeira regulamentação geral e específica a garantia do Direito dos Animais.

4 Art. 1º Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado.

5 Art. 2º Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus tratos aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão celular de 2 a 15 dias, quer o delinquêntes seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber. [...]

6 § 3º Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.

7 Artigo 16. As autoridades federais, estaduais e municipais prestarão aos membros das sociedades protetoras de animais a cooperação necessária para fazer cumprir a presente lei.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...]

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. [...]

Vicente de Paula Ataide Junior, Introdução ao direito animal brasileiro, Revista Brasileira de Direito /Animal, e-issn: 2317-4552, Salvador, volume 13, número 03, p. 48-76, Set-Dez 2018

10 Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

_________

DECRETO 24.645/1934: BREVE HISTÓRIA DA “LEI ÁUREA” DOS ANIMAISDECREE 24.645/1934: A BRIEF HISTORY OF THE BRAZILIAN “AUREA LAW” OF ANIMALS - Vicente de Paula Ataide Junior e Thiago Brizola Paula Mendes - Revista Brasileira de Direito Animal, e -issn: 2317-4552,Salvador, volume 15, n. 02, p.47-73, Mai -Ago 2020.

DECRETO Nº 24.645, DE 10 DE JULHO DE 1934.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

LEI Nº 11.977, DE 25 DE AGOSTO DE 2005 - (Texto atualizado até a Lei nº 17.497, de 27 de dezembro de 2021)

Giovanni Titoneli Principato
Advogado, Bacharel em Direito Pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Gestão Pública e Chefe de Gabinete da Procuradoria Geral do Município de Guarulhos-SP.

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