Migalhas de Peso

A "rachadinha" sob o viés jurídico

Ora, no mundo da política, a prática pode ser vislumbrada como uma maneira de contribuição para determinado projeto político, consistindo em verdadeiro dízimo.

18/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A denominada rachadinha consiste em prática na qual o detentor de cargo de confiança compartilha parte de seus vencimentos. Essa conduta se verifica pela nomeação de cargo de confiança ou comissão, pela autoridade que possui o poder discricionário de nomear, passando a receber determinada parcela ou porcentagem dos vencimentos.

No olhar social pode se configurar como conduta antissocial e imoral. Pode-se afirmar que se configura até mesmo um negócio para que o agente político receba vantagem. Prática semelhante ocorre em detentores de mandato político que repassam parte de seus vencimentos para o partido com o intuito de conquistar o projeto político almejado.

Ora, no mundo da política, a prática pode ser vislumbrada como uma maneira de contribuição para determinado projeto político, consistindo em verdadeiro dízimo. De outra prisma, pode ser vista como prática odiosa de obter vantagem da atividade pública ou política.

Um fato é certo. A referida ação não é prevista no mundo jurídico, encontra-se no âmbito da moral ou política. Assim, se a prática ofende o interesse público, haverá necessidade de conhecê-lo como ilícito jurídico ou mesmo crime.

Em que pese o esforço de buscar tipificação nos crimes de peculato (art. 312 do CP), o fato é que a conduta é atípica.

Não há tipo penal que se enquadre na conduta perpetrada. Não há crime sem lei anterior que o defina. Trata-se de um acordo entre particulares, inclusive segundo os ditames do direito privado, amparado na autonomia da vontade, preceito básico. Ora, os vencimentos quando ingressam na conta do servidor não é dinheiro público, mas numerário privado. Daí decorre o direito da livre disposição patrimonial.

Nessa esteira, impossível enquadrar o fato em peculato, pois o parlamentar não se apropria indevidamente dos vencimentos de seus assessores. O art. 312 do Código Penal dita que: "Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio". Da simples leitura do texto legal se verifica que não há adequação típica. A norma faz referência a espécie de apropriação indébita. Ora, o numerário não está na posse do agente público, mas na conta corrente particular de determinado assessor. Não há desvio. Enquadrar "rachadinha" na norma abstrata do art. 312 fere de morte o princípio da legalidade ou taxatividade penal.

O princípio da legalidade no âmbito penal é preceito básico do Estado Democrático de Direito. Não cabe interpretação extensiva na esfera penal. A conduta deve estar descrita anteriormente e precisamente. Os vencimentos ingressam na esfera particular, do subordinado, por meio de conta bancária. Não há desvio, mas simples pagamento de vencimentos. Se o particular concorda em devolver parte de seus vencimentos, não há peculato conforme capitulado. Para a prática da conduta delituosa é imprescindível que haja a posse do valor. Esse é o tipo penal do peculato, ou seja, em razão do cargo, tem a posse de bem público, e se apropria ou desvia o bem, em benefício próprio ou de terceiro. Claramente não é o caso.

Se a sociedade entende que a conduta ofende a coletividade há necessidade de produção legislativa com novos tipos penais, como por exemplo: expropriação indevida de remuneração; transferência indevida de remuneração ou participação em expropriação indevida de remuneração.

Segundo nosso entendimento, a "rachadinha" encontra-se fora do mundo jurídico, em especial, como ilícito penal. O fato é atípico.  Interpretar "rachadinha" como crime ofende a segurança jurídica e o princípio da legalidade, preceitos básicos do Estado Democrático de Direito.

Paulo Hamilton Siqueira Jr.
Advogado. OAB SP 130.623 | OAB DF 36.775.

Anna Paula Vieira de Mello Rudge Siqueira
Advogada, Estrategista, Relações Governamentais, Líder e Gestora.

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