Migalhas de Peso

"Tudo o que há na Terra perecerá"

A mudança climática apresentada em estudo inédito pela ONU reclama a reinterpretação do art.225 da CF/88.

21/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O título deste artigo encerra o capítulo 6, versículo 17 de Gênesis, passagem bíblica onde se enuncia o dilúvio sobre a Terra.  Contudo, também poderia ser a conclusão final dos trabalhos do Sexto Ciclo de Avaliação (AR6), intitulado Climate Change 2021: the Physical Science Basis, da Organização das Nações Unidas (ONU). Se assim encerrasse o relatório1, utilizando as mesmas palavras do Antigo Testamento, não se estaria fazendo uso de retórica, metáfora ou alarde. Apenas deveria acrescentar que se trataria de uma consequência derivada do impacto da humanidade em todo o sistema climático.

O estudo realizado pela Organização das Nações Unidas é único, inédito e assustador. Mas é ciência e, portanto, baseado em evidências. A hipótese comprovada, então tida como verdade científica, é a de que se a humanidade continuar nessa mesma pegada, não haverá outra saída nesse planeta que não a destruição total do que há na Terra. Para se ter uma ideia, nos estudos realizados pela Organização Meteorológica Mundial, foram usados mais de 14.000 artigos científicos no relatório2, abrangendo uma análise inédita de 50 anos de observação (1979 a 2019). Mas o que dizem os dados obtidos e por que eles são preocupantes?

A observação inicial a ser feita é a de que os estudos preferem o termo desastres e mudança climática ao termo aquecimento global. Mais abrangente, o termo desastre evidencia inclusive os eventos danosos decorrentes de mudança climática ou não.

Os trabalhos que vêm sendo divulgados desde o início de agosto desse ano, analisam as bases físicas das mudanças climáticas do presente, do passado e do futuro e concluem os impactos da mudança climática sobre a Terra. Tem-se, a título de exemplos, que mais de 90% das mortes em desastres ambientais ocorreram em países não desenvolvidos; que o número de eventos extremos como secas, inundações, frio e calor em excesso tem aumentado a cada ano e que se gastou na década de 2010 mais de um trilhão de dólares em decorrência de tais desastres.

A era dos desastres climáticos evidenciada no maior estudo científico sobre o clima no planeta demonstra a presença de incêndios, secas, inundações, aquecimento global, derretimento de geleiras, ondas de calor, elevação do nível do mar e queimadas como eventos cada vez mais presentes na vida dos seres aqui na terra com tendência de aumento à medida que os anos se passam: "o consenso entre os especialistas do clima é que as mudanças climáticas estão mesmo acontecendo e que as evidências geológicas demonstram que tais mudanças podem ocorrer de forma relativamente rápida, dentro de um século ou até de algumas décadas."3

O alerta vermelho foi aceso há tempos, mas com esse estudo inédito se evidencia que a mudança deve ser feita de imediato. E o direito, com toda sua capacidade de ajustamento de conduta, é meio próprio para essa mudança, em especial na imposição de novas regras, novos acordos, novas penalidades.

O direito dos desastres, que se preocupa com o estudo de tais eventos dentro da perspectiva interdisciplinar e não menos jurídica, deve ser pautado ainda na ideia de justiça ecológica e essa seria a proposta que conversa com os estudos da ONU, uma vez que a justiça ecológica não se confunde com a justiça ambiental.

Os dados demostrados nos estudos sugerem que a destruição do planeta ocorre à medida que o "desenvolvimento" econômico se apresenta. A proposta que os cientistas das mais diversas áreas trazem à destruição ambiental é a inclusão do outro não humano, ser vivo que é, em um cenário de unicidade dado por meio da justiça ecológica. "No século XX, o direito e a economia se enfrentam em um novo âmbito do conhecimento: a ciência da ecologia, que descreve a Terra como um sistema vivo de recursos limitados e mostra a necessidade de um novo sistema jurídico-político e econômico para enfrentar a mudança global a qual estamos condenados, apontando a urgência de mudança de rumo em direção à sustentabilidade social e ecológica."4

Daí porque se falar em justiça ecológica e não em justiça ambiental. Justiça ecológica em termos simples, é aquela que protege o não humano, aquela que propõe um redimensionamento do debate entre a pessoa humana e a natureza.5

Enquanto o debate da mudança climática se der a partir de uma visão antropocêntrica, a própria sobrevivência humana (e não apenas essa) estará correndo sério perigo de manutenção nesse planeta. A virada de chave é possível, a partir de uma visão biocentrista. Assim se deu na Constituição do Equador de 2008.6

O Relatório da ONU nos referencia enquanto brasileiros e enquanto humanos que necessitam ser protagonistas de uma mudança de conduta. Isso sugere uma reinterpretação do art. 225 da Constituição Federal que assim deve ser (re)lido: todos os seres têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A partir disso, é possível falar em justiça ecológica e a natureza como sujeito de direito que reclama proteção jurídica.

Aqui, a ideia é de inclusão justamente porque o ser humano, em posição de superioridade, deve pensar e (re)tomar uma posição de (re)equilíbrio que rege a vida na terra. Afinal, a sociedade que é de risco não pode ser agravada em desrespeito à biosfera.

O art. 225 da Constituição Federal de 88, que se apresenta na geografia final do texto constitucional, tem assento nos objetivos da República Federativa, uma vez que é parte do todo contido no art. 3º dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico do Brasil.

Que esta geração não perca a oportunidade de reinterpretar, inclusive, os desígnios divinos e evite as consequências de um dilúvio climático que se avizinha e aprofunda as desigualdades sociais no planeta.

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1 Relatório divulgado no site do Painel Intergovernamental para a Mudança de Clima da ONU. O relatório final somente será apresentado em 2022. Acesso em 2 de setembro de 2021. 

2 CHALTON, Nicola; MEREDITH, MacArdle. A história da ciência para quem tem pressa. 5 ed- Rio de Janeiro: Valentina, 2019, p.196.

3 Teresa Vicente Giménez, Justicia ecológica em la era del antropoceno. Editorial Trotta, Madrid, 2016. Tradução nossa. Página 9.

4 Giovani Orso e Cleide Calgaro sintetizam a diferença entre justiça ecológica e justiça ambiental em seu artigo intitulado Fundamentos da justiça Ecológica: A partir dai' ja' se pode estabelecer uma ideia do que se trata a justiça ecológica, partindo-se para uma diferenciação entre ela e a justiça ambiental, sendo que a justiça ambiental prega a tutela do bem ambiental com fundamento na ideia de natureza como meio de condição de subsistência da vida humana, sendo os seus interesses voltados ao utilitarismo e sua atenção tem como justificativa uma demanda por justiça social entre os seres humanos, voltada ao fato da ausência de igualdade na distribuição dos riscos ambientais em uma mesma sociedade, buscando um resguardo no legado ambiental para as futuras gerações e não uma extensão da dignidade e consideração para com os demais seres vivos"

5 Vide artigos 10 e 71 da Referida Constituição.

6 Bruno Latour, na obra Onde Aterrar- Como se orientar politicamente no Antropoceno ressalta: "agora todos sabem que a questão climática está no centro de todos os problemas geopolíticos e que está diretamente ligada à questão das injustiças e desigualdades." página 12.

Diego Pereira
Doutorando em Direito Constitucional na UnB e mestre em Direito Humanos pela UnB. É Procurador Federal (AGU) e autor da obra Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Juris, 2 ed. 2020).

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