O empreendimento de economia solidária: Comentários ao novo instituto
Testemunhamos a entrada em vigor, por meio da publicação da lei 15.068/024, ao que parecia, de uma nova modalidade de pessoa jurídica de direito privado: o empreendimento de economia solidária.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
Atualizado às 09:18
Para compreendermos o empreendimento de economia solidária, é indispensável revisitarmos conceitos ancestrais como o de economia popular e solidária.
No Brasil, a economia popular e solidária emergiu no final dos anos 1980 como resposta à crise econômica e ao desemprego em massa. Nesse contexto, trabalhadores passaram a se organizar coletivamente em cooperativas e associações, criando alternativas baseadas na colaboração e na autogestão. No decorrer dos anos 1990, o termo "empreendimento econômico solidário" (EES) foi progressivamente sendo adotado no Brasil (GAIGER, FERRARINI, VERONESE, 2018).
Nacionalmente, o principal estudioso do tema foi o austríaco Paul Singer, razão pela qual seu nome foi dado em homenagem à legislação emergente. Em sua obra, Singer definiu a economia solidária da seguinte forma:
A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda. (Singer, 2002, p. 10)
Nesse liame, derivada do PL 6.606/19, em dezembro de 2024, foi publicada a lei 15.068/24, a qual instituiu a Política Nacional de Economia Solidária e criou o Sistema Nacional de Economia Solidária (Sinaes). Tal norma foi responsável também por definir o que seriam empreendimentos de economia solidária, os quais são aqueles que possuem algumas características cumulativas, quais sejam: 1) Organização autogestionária, com gestão coletiva e decisão democrática sobre a partilha de resultados; 2) Envolvimento direto dos membros na consecução do objetivo social; 3) Prática de comércio justo e solidário; 4) Distribuição dos resultados financeiros proporcional às operações realizadas; e 5) Destinação do resultado operacional líquido ao desenvolvimento comunitário, apoio a empreendimentos equivalentes ou à qualificação profissional de seus membros.
São alguns exemplos de empreendimento de economia solidária as cooperativas de reciclagem, grupos de agricultura familiar, empresas cooperativas de crédito, coletivos ecológicos e pequenos e médios produtores de alimentos orgânicos.
Todavia, algumas incongruências foram notadas pelos profissionais do direito, as quais merecem atenção da doutrina a fim de garantir a efetividade e eficiência da novel legislação.
Primeiro, em que pese a alteração legislativa sugerir o nascimento de uma nova pessoa jurídica de direito privado, ao acrescentar um novo inciso ao art. 44 do Código Civil, não nos parece que esta tenha sido a intenção do legislador, uma vez que este, logo no parágrafo primeiro do art. 4º, deixa claro que o enquadramento do empreendimento como beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária independe de sua forma societária adotada pelo negócio.
Segundo, se o empreendimento de economia solidária não é uma nova espécie de pessoa jurídica, quais seriam as espécies que o empreendimento de economia solidária poderia revestir-se?
Ao analisarmos o arcabouço jurídico vigente, nos deparamos com duas espécies de pessoas jurídicas utilizadas para o exercício de atividades econômicas - produção de bens e serviços - as sociedades e as associações.
Não obstante o art. 53 do Código Civil asseverar que as associações civis são formadas pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos, há muito a doutrina e a jurisprudência já pacificaram que essa característica está atrelada a não distribuição de lucros entre os associados e não à vedação de atividade econômica. Isto é, a proibição está relacionada a perseguição do lucro de forma subjetiva.
Assim, é notório que as associações podem e realizam atividade econômica, podendo o empreendimento de economia solidária fazer uso de tal espécie para realização de suas atividades.
No que tange às sociedades, devido à ausência de finalidade lucrativa do empreendimento de economia solidária, encontramos uma restrição no que se refere ao manejo de sociedades empresárias para tal fim.
Dessa forma, resta cristalino que tais negócios podem assumir a forma de sociedade, seja ela cooperativa ou limitada e, até mesmo de associação civil, de modo que a cifra "empreendimento econômico solidário" é apenas uma classificação (§2º, art. 4º, da lei 15.068/24) às pessoas jurídicas que se enquadrarem como beneficiárias da Política Nacional de Economia Solidária.
Destarte, a leitura acurada da norma nos faz constatar que o empreendimento de economia solidária não pode ser considerada uma nova espécie de pessoa jurídica, mas uma qualidade conferida ao grupo de pessoas, formalizado ou não (art. 9º, § 2º, da lei 15.068/24), que atendem aos requisitos mencionados anteriormente e, por conseguinte, são beneficiárias da Política Nacional de Economia Solidária. Essa interpretação legislativa exige práticas concretas, como o enquadramento junto aos órgãos competentes - seja no cartório de registro de pessoas jurídicas ou na junta comercial -, assegurando que tais organizações tenham pleno acesso aos benefícios e ao reconhecimento previstos.
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SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2618989/mod_resource/content/1/SINGER%20-%20Introdu%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0%20Economia%20Solidária%20-%20Livro%20completo.pdf. Acesso em: 26 de dezembro de 2024.
GAIGER, Luiz Inácio; FERRARINI, Adriane; VERONESE, Marília. Economia Solidária no Brasil: Teoria e Prática. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dados/a/FWzKTpw4px5zHBD6GbCtkvF/. Acesso em: 26 de dezembro de 2024.